sábado, 3 de agosto de 2024

A bailarina de pano

Pequena e bela
de sutis traçados por fina linha
esvoaçava em juvenis mãos.
 
Mas, num enlaço ríspido,
romperam-lhe os pontos
da perna direita.
 
Atribuíram a pecha
de canhestra desfigura cambaleada
e a enterraram no fundo do armário.
 
No rasgo da silensolidão
ela paciente tateou o escuro
por séculos e ísolos.
 
Suas mãos de algodão
amealharam estofo, linha e agulha.
Encheu-se do tecido do mundo
e se libertou dali dançando para si própria.
 
Caio Bio Mello

01/08/2024

Perene anverso

Encramunhado
em ti
agora vejo isto só.
 
Desconheço se é o que resta
ou o que reveza ou
desbanja e abandona.
 
O avesso é versão vista?
Ou o betume vasto
se expusera já
a mim recôndito?
 
Assim, basta e basto.
Asco.
Seja têmporo ou temporão,
igual será – te asseguro:
os grãos que entregaste são de sal
e frutos sufocam em terra seca.
 
Caio Bio Mello
03/08/2024 

domingo, 14 de abril de 2024

Oração ao mar

Singrai
Vós que sois ar e espuma
Alheai-me do parco espírito
Inumado em sepultura
 
Dai-me
Profundezas e corais
As desrazões pujantes
De querer-ser a mim
 
Abençoai-me
De profundezas e azuis
E pélagos cálidos
 
E não permitais
Ao velho corpo
Apartar-se das águas
 
Para enfim o derradeiro leito
Marinho ser a vós
Entregue e bento
 
Caio Bio Mello
06/04/2024

sábado, 9 de dezembro de 2023

Órbita

Sou 

O pírico-atômico

Da reentrada lunar

Rompante em cacos 

E cores cristais 


Sou 

O arco-incêndio

Banho de vista 

Encharco primaveril

Onírico presságio 


Serei

Caótica profundeza 

Semente estratosférica 

Pulverizada


E nos sítios e areais

E nos rostos e risos 

Arderei sereno 

A fecundar a vida 


Caio Bio Mello 

09/12/2023

Vulgo

Vejo-te sempre 

Em várias vias da vida. 

Não me vês, porém, 

Ao que a vida te negaste 

A vista. 

Viso-te muito 

Não me vês, por sorte,

Porque se pudesses me avistar 

Vertiginar-te-ia 

Ao ver-me assim 

Varado pela vida,

Vagante 

No silêncio das desventuras. 

Melhor assim:

Mais vale a fábula que vislumbras

Do que a visão que envenena. 


Caio Bio Mello 

25/11/2023

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Sit tibit terra levis

Ouço o rosnar dos tambores
E o roucar
              Dos inumados
 
Arranhando caixões
No vão esmero
              De desencobrir
O peso derradeiro
Da terra
              Que lhes sepulcra.
 
Mal sabem:
Leve é a terra e pesado o ar.
 
Caio Bio Mello
09/11/2022

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Salpícula

O grânulo são
Embraseia ao tocar a água
E na imensidão se radícula
 
Desincorpora
E desperta
Pertencente ao cosmo
Abissal dos mares
 
Já não carrega o árduo
Fardo de salgar ou dessalgar
 
Apenas toca os lábios
No beijo suave
Da imensidão.
 
Caio Bio Mello
21/07/2022