quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Dia dos namorados

Um. Dois. Três passos.
Sim.
Essa era a distância exata.

Avoca a cava
            enquanto cavoca.
A cabeça da pá submergindo repetidamente.
                        Um respiro a cada terra.

Mas atenção! Há de limitar-se
à profundeza do profano
            o suficiente para encontrar o humano.

Sim. Bem rasinho. Dois palmos
                        (mas foram tantos planos)
Algo surge no meio da terra e dos gravetos.
            Pequenos pontos
brancalgo(dão).

Ele se ajoelha, como se bravejasse a reza.
            Mas não há cristão, nem carpideira.
Hoje não é dia do Senhor.
É dia de festa.

Com gestos delicados,
ele vai desquebracabeçando o vulto.
            Agora já se veem os braços, as pernas, o tronco.

A última etapa é emergir o rosto.
            Ele sente o cheiro,
                        um misto de terra fresca e saudades.

Desesparramada, estava ela lá.
Parecia exatamente como da última vez que haviam se visto.
            (o efeito da saudade)

Ele levanta uma pálpebra com o indicador e a outra com o polegar,
            num gesto fugaz concomitante.
No fundo de ambos os globos oculares,
            já não existe o pretume (aquele de costume).
Há uma névoa cinza.
            Tão cinza
            e tão névoa
            como se uma aranha fizera do olho morada
            e ali pitasse um fumo.

Oi, querida, disse ele.
            Caçou-a em seu colo, trazendo seu rosto junto ao peito.
O curioso é que, antes, ela parecia ser leve como pluma.
                        Agora, o peso era outro.
Mas não se comenta o peso de uma mulher, pensou.

Abriu a porta do carro, estacionado ao lado.
            A vaga-luz interna do veículo varreu a terra revirada.
Uma cova reaberta, útero puerperal.

Sentou-a no assento de passageiro.
            Colocou o cinto de segurança
                        (todo cuidado é pouco quando se ama).
Entrou também no carro. Girou a chave e o motor pipocou.

Vem, meu amor, tem um bar novo que quero muito te mostrar.
E acelerou.

Caio Bio Mello
16/01/2020