sexta-feira, 31 de maio de 2013

Metáforas sobre a Influenza - Quarto dia



Sinto, no fundo de meu coração,
que as coisas fazem sentido.
Se me perguntassem,
não conseguiria explicar a razão.

É que agora, nesse exato instante,
o mundo parece girar para o lado certo.
As pequenas fibras da existência
parecem unidas por uma mágica indizível.

Esse sentimento passa além de mim mesmo.
Vai além de meu corpo cansado e doído,
além da correnteza de sentimentos que
quase me afogam.

Para fora de meus olhos lunáticos
e de minhas lentes de vidro,
tudo parece numa irremediável harmonia
que não poderia ser contestada nem pelo meu sofrer.

E isso me alegra de um modo singular.
É como uma alegria fora da casca,
ouvida pela parede do ovo.
Uma alegria de existir.

Sinto como se eu tivesse perfurado
algum tipo de membrana
que separa o mundo comum
de um outro mundo, paralelo e poderoso.

Nele, as coisas andam às mil maravilhas.
Fogos de artifício explodem pelo céu,
crianças dançam alegres em praças,
idosos jogam dominó à beira da praia.

E não é só um ver e sonho.
Essa sensação vem da minha carne.
Vem de dentro.
Ironicamente, sinto dor e alegria.

Dor da minha carne doente.
Mas, nesse mesmo corpo ainda enfermo,
uma linha possante desregula minhas sensações.
Essa estabilidade em abstrato.

Sinto que meu sangue carrega algo
que pode mudar o planeta inteiro.
Sinto milhões de pássaros alçando voo
em meus braços e pernas.

Estou maravilhado.
E não sei dizer por que.

Caio Bio Mello
31/05/2013

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Metáforas sobre a influenza - Terceiro dia



            Eu não sei se consigo escrever muito agora. É muita correria aqui e tudo é muito imprevisível. Eu prometi que escreveria para você, então estou escrevendo. Enfim, não sei nem por onde começar. As coisas andam complicadas por esse lado. Nós estamos conseguindo tomar os campos mais abertos ao leste. O sul já é nosso. Mas ninguém disse que as coisas vão ficar mais fáceis daqui para frente.
            A Guerra da Influenza já chegou no seu terceiro ano. Muita gente morreu aqui, é verdade. Eu nem sei como estou me aguentando. Ficar muito tempo no campo de batalha... É... É como se as coisas fossem perdendo o sentido aos poucos. Você não sabe mais quem você é. Também não sabe muito bem quem são essas pessoas que te cercam.
            Mas, por outro lado... Você só sabe de verdade quem são as pessoas quando elas estão morrendo. Eu me lembro bem desse dia: estávamos nós, três homens do exército, no campo de batalha. E alguns soldados da Influenza começaram a nos atacar. Foi de repente. Tudo muito rápido. Eu nem sei te dizer em quantos eles eram. Foi assustador. Uma saraivada de tiros e o primeiro de nós morreu.
            Eu e o outro sobrevivente nos escondemos num armazém antigo. Foi um jogo de tocaia. Fomos matando um a um. Ninguém mais sabia quem era a caça e quem era o caçador. Mas uma hora esse meu companheiro acabou sendo baleado no peito. Ele tinha certeza de que ia morrer. Eu podia ver nos olhos dele. E, sabe... Essa proximidade muda as pessoas. Ele chorou. Muito. Parecia uma criança descontrolada. Disse que tinha terminado o namoro antes da guerra, mas que sentia muita falta de todo mundo. Sentia falta do seu pai, da sua mãe, do seu irmão... Ele não parava de chorar!
            E eu tive que ser forte. Tive que ser firme e salvar nós dois. Continuei matando aqueles malditos da Influenza de todos os modos que eu conseguia. Quando acabaram minhas balas, matei um sufocado. Eu vi os olhos dele cegando enquanto morria. Não sei dizer também quanto tempo nós ficamos naquele armazém. Mas nós ficamos um bom tempo. Era fechado, eu não sabia do dia e da noite. E nós conseguimos. Lutamos, eu e meu companheiro chorão. Permanecemos vivos.
            E eu acho que a vida é isso mesmo. Continuar vivendo. Aqui na trincheira, a gente aprende isso logo cedo. Se você não se mantém equilibrado... Vai morrer. Seja de bala, seja de faca, seja de loucura. Um pouco a gente já morre a cada dia, só queremos ter certeza de que vamos deixar uma marca para alguém.
            Quando esse meu companheiro se recuperou, ele voltou a ser o mesmo combatente de antes. Sim... Ele voltou a ser forte. Ou seja, no final, só eu conheço ele de verdade. Talvez a futura esposa dele (já supondo que ele vai voltar vivo para o Brasil) nunca o conheça tanto quanto eu conheci. A gente precisa ver as carnes das pessoas para conhecer elas de verdade. Isso eu aprendi também.
            E aqui... Aqui faz muito frio. Esse país maldito parece um inverno sem fim. De manhã, é frio. De tarde, é frio, de noite, é frio. É sempre frio a qualquer hora e a qualquer lugar. Hoje mesmo, mais cedo, o sol decidiu botar o bico para fora um pouco! Juro... Parecia um milagre. Me lembrou – bem de longe – as praias do nosso país. Que saudades do mar, do verão. Saudades de ver gente!
            Essa é uma guerra muito estranha. Não que eu já tenha visto várias guerras na minha vida, sou ainda novo, mas com certeza tem algo de errado nisso. Eu me sinto como se estivesse no meio de uma cidade. Os cidadãos todos não se comunicam. Todos rezam eternamente para um só deus: o deus-guerra. A máquina. E ninguém mais entende de nada.
            E nós temos livros. Isso eles enviaram com a gente. Um saco cheio deles. Já li bastante coisa nesses dias... Eu preciso ocupar minha cabeça. Manter as coisas funcionando, sabe? Cabeça vazia é a oficina do diabo. E Deus que me livre! Já é tanto sangue, tanta morte. Eu não consigo dormir direito. Acordo no meio da noite. A garganta seca. Os olhos bem abertos. E lembro de todos aquele que matei. Um a um, eles vão desfilando na minha mente. É um Carnaval funesto. Nele, as fantasias são as próprias vísceras. Intestinos, pulmões, rins... Já vi de tudo.
            A comida também é sempre igual. Não tem muito como variar. Sopa. Odeio sopa. Mas é rápido, é fácil e dá pra aguar pra fazer durar por mais tempo. Por isso, eles servem sopa para todo mundo a toda hora. Quem me dera fazer um churrasco... Daqueles que eu fazia quando era mais novo, na casa de praia. Da sacada, a gente via o mar... Que vista linda.
            Espera. Tem alguma coisa lá fora! Depois eu conti-

                        granada!

BALA                                    BALA
            BALABALABALA                         BALA

BALABALABALABALA                                                 BALA
                        BALA BALA

O silêncio sobe as escadas.
Bandeiras de cores verde, amarelo e azul
são estendidas sobre os caixões.

Corpos-fuzis, pobres.
Estertores balísticos de jovens defuntos.
Assim é a guerra:
sedenta, tortuosa,
enferma.


Caio Bio Mello
30/05/2013

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Metáforas sobre a influenza - Segunda noite



Volta pra cama, Bio.

Não, não quero. Me deixa.

Por que cê tá de pé perto da janela?

Me deixa, Influenza. Se eu me deitar com você, cê vai me fazer acordar no meio da madrugada com a garganta doendo. Eu vou pular da cama, sem ar. E você aí fazendo graça.

Nossa, quanta agressividade pra um cara só. E tem mais: eu sei o que cê tá procurando na rua... Gente.

Olha, H1N1, cê não ajuda ninguém e não serve de companhia pra ninguém. Pelo menos na rua tem coisa acontecendo.

Mas a janela tá aberta. Entra frio. Dá dois minutos e cê já vai começar a tremer. Ainda mais logo depois de comer. Te bate aquela sensação de fraqueza... Dor no corpo.

Me deixa, doença.

Ah, não deixo. Daqui até domingo: só eu e você. E quem sabe uns dias mais? Quanto menos cê dorme, mais eu aperto. Esse é o nosso jogo. Cê não pode dar mole nem nos quarenta e cinco do segundo tempo.

Cê me fodeu, cê sabe disso. Sabe disso.

Para de baixar o nível, Bio! Só tem a gente aqui nesse quarto. No máximo cê tá ouvindo um barulinho lá na rua. Um ônibus, um caminhão... Esse mundo todo aí fora e só eu e você aqui dentro. É a solidão, né? Nessas hora, até a doença parece gente boa.

Não, nem assim. Nem de longe! Sai, sai da cama, vai!

Ai, ai! Não me derruba, que mal educado! Que absurdo! Doeu.

Cê vai sofrer também, maldita.

Dá nada, não. Eu espero só dez minuto depois que cê dormir – e te acordo com um nó na garganta! Hahaha!!

Caio Bio Mello
29/05/2013

terça-feira, 28 de maio de 2013

Metáforas sobre a influenza – Primeiro dia



O coração é um trem
alimentado a carvão.
Possante no seu bater de trilhos
e quente em seu motor.

As veias, por dentro,
procriam aranhas.
Teias entopem meus pensamentos.

O corpo treme num estado
pós-maratona.
O inverno sem fim perfura as paredes
e se deita nas cobertas.

A boca de um vulcão é a garganta.
(nenhuma palavra será dita)
O tempo é rídiculo, descoeso
e sem qualquer limites.

O descanso é sagrado.

Caio Mello
28/05/2013

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Pedido

Salva-me, Poesia.
Busca-me. 
Arranca-me de mim. 

Vem, cuida de meu coração 
como só você sempre soube fazer. 

Tira-me desse mundo escuro 
que não sabe mais sorrir nem fazer piadas. 
Salva-me do frio e da solidão. 

Eu imploro: não me deixes jamais
parar de sonhar. 

Perdoa se errei. Sou humano. 
Às vezes eu me esqueço, é verdade. 
De vez em quando, confesso,
eu vejo só asfalto e mágoas. 

Entenda que meu corpo padece. 
Meus olhos cinza deixam de refletir a vida
e então... Fraquejo. 

Tenho medo, Poesia, muito medo. 
Uma angústia que me corrói a alma 
e me seca a boca. 

E, quando me afogo em medo,
lembro que sou um monstro. 
Então meus versos se calam, meus olhos se fecham
e o universo faz silêncio. 

Admito que sou fraco. 

Por isso, Poesia, imploro para que sejas paciente. 
Entende teu poeta. Ama-o. 
Aqueles que escrevem o fazem por incompletude. 

Nesta madrugada, contigo, estarei iluminado. 
Mais uma vez feliz e novamente confiante. 
Minha alma se inspira em ti, Poesia. 

Vem, cuida de mim hoje à noite. 

Caio Mello
23/05/2013

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Ode ao inconformismo




Perderam-se os homens em alfarrábios,
amalgamando termos bestiais.
Criam ter arquétipos geniais
que revolveriam âmagos sábios.

Os débeis obcecados por calúnias
não predisseram seu próprio porvir.
Na bestialidade deixaram-se ir.
Foi o esclavagismo na pecúnia!

Largai vossas fés, quadrúpedes bestas!
Crede na única possível resposta.
Vinde ter a única coisa que se herda.

Aceitai minha mais nobre proposta.
Dizê-la-emos de segunda a sexta.
Avante! Mandaremos tudo à merda!


Caio Mello
19/05/2013