quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Antieuclidiano



Carlos,

se abrisses teus olhos,
serias Drummond?

Se ainda andasses,
se pudesses sentir na pele
o novo mundo que surge...

O que diria, Carlos?
Talvez o enfastiado olhar
translúcido das ruas estreitas.
Talvez a descrição minuciosa
das tantas pernas que já não de bonde andam: metrô.

Tua flor, tua náusea.
O novo tempo de homens ainda partidos.
Carlos, podes dizer de teu túmulo
que a vida continua?

Tua voz faz falta.
Tuas palavras vivem ao eterno.
Mas já não têm o mesmo timbre.

E nós, quaisquer viventes que desnorteiamo-nos,
buscamos teus dizeres.

Mas, Carlos, a vida continua besta.
As pessoas continuam com sete faces.
Também os poemas.

O que dirias do vestido na parede?
Talvez não mais fugiria de casa o pai,
quem sabe a mãe desta vez...
Não te assustes: as coisas se alteram.

E o cheiro forte da memória.
Porque de tudo resta um pouco.

A tua pedra virou mártir, o teu sol.
A tua pedra virou montanha, Carlos.
E tua colina virou Drummond,
um vulto enorme a ser gauche na vida.

O anjo, mesmo que torto,
era abençoado.
Mostrou-te tanta coisa...

Sinto saudades de um homem que nunca conheci,
que nunca sequer soube meu nome.
Meus heróis são velhos, feios, fracos.
Usam óculos e têm medo da chuva.

Meus heróis sabem muito bem ouvir o coração
e mostrar para a alma do que ela é feita.
Falam eles de tudo... Até dos leiteiros.

Os ferozes padeiros do mal.
Carlos, já lançou-se o leite longa vida.
Seria, então, talvez o carteiro?
A cidade continua no tom da aurora.

Por fim, em meus momentos lúgrubes,
petrificado pelo quotidiano banal,
deparo-me com a pergunta que nunca deixaste calar:
trouxeste a chave?

A minha poesia desdobra-se, agoniza.
Não, talvez nunca terei a chave.
Eu queria saber tanta coisa ainda....
Como faço, como busco?
Em vão tento me explicar. Os muros são surdos.
Preciso de ajuda, preciso de inspiração.
E agora, Drummond? Quando voltarás?

Caio Mello
31/10/2012

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Frieden

Ich fühle mich einsam. 
Die Welt ist einsam. 
Ich fühle mich langsam. 

Ich bin alt. Ich bin alt geboren. Zu alt. 
Leute kennen mich nicht. 
Nur...
Nur der See sieht mich. Nur der Nacht. 

Aber ich habe keinen Schiff und ich bin keine Stern. 
Ich bleibe hier, in mein Leben. Die ganze Zeit. 

Ich denke an den Zukunft, aber ich bin blind. 
Ich muss alles verstehen. Alles versehen! Alles leben! 

Ich freue mich nicht. 
Freude? Ich habe es gelosen. 
Möglicherweise kann ich jetzt noch schreiben. 
Aber niemand lisst meine Wörter. 

Niemand. 

Ich fühle dunkel, ich bin dunkel. 
Ich fühle etwas. Und es tut mir weh. 
Ich tu mich weh. 

Das Leben... Warum? Ein Abenteuer? 
Ich sehe es nicht so. 
Es ist alles gleich. 

Caio Mello 
23/10/2012

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

A guerra



E meu coração me bate bem corte
Neste reduto, sentimentos gangue
A me negar o que pede meu sangue
Como canhões bem na boca do forte

Quem sabe de mim? Quem sabe da morte?
Hoje brotarei de novo no mangue
Lamber de volta o verme que me lambe
Abrir os nervos de novo na sorte

Vencerei carne, vencerei loucura
Eu vencerei o que nunca se vence
Ninguém ouvirá as rochas chorando

Pois o que se perde a ninguém pertence
Carne pútrida enfraquece ao meu mando
Finalmente, mundo, da vida a cura.

Caio Mello
22/10/2012

domingo, 21 de outubro de 2012

Paura contemporânea



A geração do medo.

A geração do medo?

A geração... Do medo.

A geração do medo.

A geração do medo!

A geração. Do medo.

A geração do... Medo?

A geração do medo...

A geração do medo.

A GERAÇÃO do medo.

A GERAÇÃO DO MEDO.

A GERAÇÃO DO MEDO!

Do medo.

Caio Mello
21/10/2012

sábado, 20 de outubro de 2012

Férias - Parte I



            Eu precisava reencontrar dentro de mim algo que eu pudesse chamar de certeza. Algo que eu pudesse chamar de verdade. De todos os expurgos que já construíra, este seria o maior. Naquele tempo, faltavam-me verdades sobre o mundo. Talvez, de fato, sempre faltarão uma série de verdades sobre o mundo. Mas eu queria saber sobre o meu mundo. A introspecção através da busca. Eu queria me perder em mim mesmo, nessa massa líquida a que chamam de consciência.

            Peguei meu carro e fui para a minha casa na praia. Cheguei lá pelo meio-dia numa semana como qualquer outra. Era uma praia distante, deserta. Como era um dia útil, não havia ninguém na região. Sempre gostei muito de praias isoladas. Em certos momentos, o silêncio é mais do que necessário. O sol estava forte. Preparei um bom almoço para mim mesmo. Comi tranquilamente, em porções pequenas e numa velocidade razoável. Era preciso fazer as coisas naturalmente. Não muito rápido, não muito devagar. Nada de aflições. Eu precisava me ver em abstrato. Depois do almoço, fui nadar no mar. Sozinho. A água da tarde estava quente, muito boa para se relaxar. A areia entrava-me entre os dedos do pé, como pequenas bolas de massagem. Pássaros voavam, borrando o sol por instantes.
            No fim do dia, voltei para casa. O corpo estava cansado, mas não estafado. Eu precisava estar em equilíbrio. Tomei um banho rápido, fui para cama e dormi.

            Abri os olhos. O quarto estava iluminado apenas por uma vela. Estava escuro, provavelmente de noite. Olhei no meu relógio. Meia-noite. Olhei novamente no relógio. Percebi que ele havia parado, provavelmente acabara sua bateria. Permaneci na cama apenas por mais dois minutos. Não poderia ficar tempo demais.
            Abri a porta do meu quarto. Aquela não era minha sala, definitivamente. Eu estava em um lugar diferente. A lua cheia cobria um campo enorme. Talvez uma pradaria, não sei. No horizonte, alguns vaqueiros conduziam suas vacas montados a cavalo. O cheiro de dama-da-noite encheu-me a mente. Meu pé direito formigava, recém-levantado do torpor do sono.
            Percebi que um velho sentava-se na porta de meu quarto. Por sinal, o meu cômodo era uma casa independente largada no meio da pradaria.

‘Garoto, boa noite. Que bom que você acordou. Fazia um tempo que a gente precisava se conversar.’

‘Quem é você? Onde eu estou?’

‘Provavelmente você espera que eu diga alguma coisa bem típica como “você está me fazendo as perguntas erradas, faça-me as perguntas certas”, mas não é nada disso que eu vou te falar. Na verdade, não faz a menor diferença falar ou não quem eu sou. Aliás, se sou um tipo de deturpação da sua própria personalidade ou se sou um ser humano completamente independente também não vai fazer a menor diferença. O que importa é que, nesse momento, eu sou. Em abstrato ou em concreto, ou de modo reflexo. Mas eu sou. E sobre onde você está: você está onde queria estar. Montou em sua mente um lugar distante e sóbrio o suficiente para pensar em sua vida.’

‘Eu não quero pensar em nada.’

‘Não quer? Então acorda!’

            Abri meus olhos. Sete horas e três minutos no relógio. Levantei-me. Preparei um café-da-manhã. Passei três horas andando pela praia. Depois voltei para casa e li um trecho de um livro. Almocei rapidamente. Passei a tarde toda no mar. Nadei para além da arrebentação e voltei antes do sol se por. Jantei apenas algumas frutas. Dormi novamente.

            Abri os olhos. Duas e meia da manhã. O relógio ainda funcionava, eu podia ouvi-lo ruminando o tempo no seu bater de pinos. Estava escuro, mas eu consegui ver as estrelas da janela do meu quarto. Podia ouvir as ondas do mar. Saí para ver o que acontecia. Nada. Absolutamente nada. Nem aquele velho do dia anterior.
            Se bem que o raciocínio era muito confuso. Eu posso deveras ter visto uma pessoa andando a um quilômetro e pouco de minha casa. Posso mesmo ter ouvido alguém cantar. Mas é difícil delinear o momento da abstração, o líquido da realidade. Acho que nunca vou conseguir definir ao certo coisa alguma. Melhor seria mesmo se eu simplesmente voltasse para a cidade e aproveitasse as minhas férias de outra forma. Que ideia absurda de se isolar do mundo para tentar me organizar. Ninguém organiza nada. Somos todos órgãos, usados, puídos, rotos. Não somos nada.
            Lembrei-me de uma dia na minha infância. Meu pai carregou-me em seus braços fortes e fomos juntos para o mar. Ele tinha a pele bem queimada de sol, coleção de dias quentes oriundos de seu serviço. Nossa vida nunca fora simples, nós sempre precisamos de algo a mais. Sempre precisamos batalhar a cada dia por um pouco de paz. Todos lutamos. Todos temos que lutar.
            Percebi que estava quase cochilando sentado na praia. Entrei na casa novamente. Limpei-me e dormi quase instantaneamente.

            Abri meus olhos. Ouvi alguém mexendo nas panelas na sala. Levantei-me tranquilo, troquei-me. Escovei bem os dentes, fiz a barba. Olhei-me no espelho por alguns instantes. Nada novo, nada velho. O presente.
            Encontrei o velho no fogão preparando nosso café. Ele me disse:

‘Pronto, agora que você está acordado acho mais fácil da gente se conversar. Você tinha me dito que não queria conversar naquela noite. Agora está de dia e tudo fica mais fácil, você não acha?’

‘Sim, eu acho. Eu estou procurando... Na verdade, não sei muito bem o que procuro. Se você é mesmo uma parte de minha mente, eu acho que você mesmo podia me ajudar a limpar o que eu penso. Que tal?’

‘Você tá maluco? Quem falou que eu sou uma parte da sua mente?’

‘Bom... Então vejamos... Eu decidi tirar essas férias porque senti que faltava alguma coisa na minha vida. Faltava aquele sabor no fim do trago de cachaça, você entende? Talvez a alusão à bebida seja infortuna, mas a analogia do gosto residual é ótima. Falta aquele deslumbramento. O quotidiano ficou meio sem graça, meio...’

‘Quotidiano demais?’

‘Isso mesmo! A gente quer ocupar cada segundo que tem. A gente quer mostrar que o importante é racionalizar o mundo. Queremos cobrir tudo que existe com aquela certeza de que não perderemos nada. Nada! Mas isso é uma grande mentira, uma falácia a ser superada pelo homem moderno. O mundo não pode ser controlado. Ele pode ser deduzido, pode ser sentido. Pode fazer sentido. Mas não pode ser integralmente descoberto.’

‘Então isso quer dizer que você tirou essas férias nessa casa de praia porque quer achar alguma coisa? Alguma coisa nova?’

‘É. Talvez seja isso...’

            Eu estava relutante, mas o velho parecia ter muita certeza no que dizia. Além disso, fazia bastante tempo que eu não tomava um café da manhã tão bom quanto o dele. Estava tudo perfeito. Sensacional. Eu estava cansado. Decidi deitar-me na rede que ficava perto da porta da casa. O velho foi ler na praia.

            Abri os olhos. Era hora do almoço. O velho não voltava mais da praia. Porém, uma moça muito bonita voltou para casa. Sentou-se em meu colo e me sorriu. Estava ainda molhada, de biquini, como quem acabou de sair do mar. Sua pele estava queimada pelo sol. Não parava de sorrir. Olhou-me no fundo dos meus olhos e disse:

‘Sabe... Deve ser exatamente isso que você sente falta. Do amor. Amor na sua vida, amor nos seus dias, amor nas suas tardes. Você não tem família. Sua mãe morreu já faz tempo. Seu pai morreu no ano passado. Você é novo e solitário. Novo. Solitário. Isso não faz bem pra ninguém. É preciso ter amor na nossa vida, é preciso ter certeza das coisas, é preciso precisar. Precisão. Entende?’

‘Você fala bem demais para uma menina tão bonita.’

‘Menina não, mulher. Evite trabalhar com esteriótipos. A minha beleza tem que te atrair, não te subjugar.’

            Beijou-me suave nos lábios. Fomos tomar banho juntos. Deitamos na cama, passamos horas e horas e horas fazendo sexo. Seu corpo era uma escultura, uma obra de arte, um desejo reprimido. Talvez eu realmente estivesse precisando de amor. Muito amor. Adormeci, cansado.

            Abri os olhos. Passei a mão na cama à procura de seu corpo nu. A cama. Vazia. Bateu-me um pesar forte. Eu queria encontrá-la de novo. Não estava com fome nenhuma. Mesmo assim, preparei-me um chá especial. Tomei, tranquilo.
            Saí da casa. Um dragão estava parado no meio da praia. Escamas lindas. Era vermelho. De um vermelho bem forte. Maravilhoso.

‘Oi.’               

            Ele me disse, simplesmente. Repondi:

‘Oi.’

‘Sabe, muitas vezes as pessoas ficam com pesamentos muito fixistas. Ela querem ter a garantia de que pensam. Querem saber que estão vivas. Mas o que é ser vivo? O que é estar vivo? Eu sou vivo? Estou vivo? Tenho vida? Sou um dragão. O quão real isso pode ser?’

‘Não há a menor chance de você ser real.’

‘Ah, é mesmo? Então me explica isso melhor. Só estamos eu e você nessa praia. Mais ninguém. Tudo o que você vê, tudo o que você sente faz parte de você hoje. As coisas podem até continuar no estado físico das coisas quando você morrer. Mas será que elas existirão de verdade? Será que a realidade, de fato, não se limita tão somente a você mesmo? O distante mundo do abstrato está cada vez mais próximo do mundo do concreto. Você é a sua própria mentira. Eu tenho certeza de que sou de verdade. Por isso, sou de verdade.’

‘Chega dessa retórica barata. Você é uma besta mitológica.’

‘Há monstros nas peles dos homens. Há criaturas recônditas nos meandros mais alucinantes. Há seres duvidosos em cada um de nós. Em cada um de nós. O mundo é um grande circo. A normalidade é só uma repetição mais recorrente. Você definitivamente deveria respeitar mais o diferente. Não somos todos iguais, nem de perto.’

‘Você quer dar uma volta?’

‘Sim, obrigado pelo convite.’

‘Então, que tal andarmos um pouco pela praia?’

‘Acho agradabilíssimo.’

Caio Mello
20/10/2012