sábado, 30 de outubro de 2010

Murilo e Lorena

Lorena estava sentada na mesa da sala de seu apartamento, tomando um café. Olhava para a xícara, já quase vazia, imaginando que as ondas se propogavam no líquido como os pensamentos corriam pela mente. A mesa, verde e redonda, parecia aconchegante naquele momento, servindo de apoio para um par de braços cansados depois de mais um dia de trabalho. Ela era da área de recursos humanos de uma grande empresa de automóveis. Mas, com toda certeza, não queria pensar no assunto no presente momento. Queria poder não pensar em nada.
Uma chave fez rosnar a porta. Após um leve girar de barulho de trincos, a maçaneta empurrou a madeira. Murilo entrou no ambiente, com seu corpo alto e seu olhar sério. Ele, à primeira vista, parecia estar preocupado. Mas seus passos não pareciam condizer com sua feição. Estes pareciam candenciar-se como se estivessem dotados de uma premissa calculista. Friamente calculista.
Murilo deixou o molho de chaves ao lado de sua carteira em cima da mesa da sala. A mesa dava para a cozinha em que Lorena estava, mas não havia porta separando os dois ambientes. Ele não havia dito uma palavra desde que entrara. Nem havia ela. Murilo desabotoou as mangas de sua camisa, tranquilamente dobrando-as. Seguiu para a cozinha, levantou o queixo de Lorena suavemente com seu indicador e deu-lhe um beijo breve nos lábios sujos de café.

Tudo bom com você, Lo? Tá com cara de cansada. Hoje o trabalho deve ter sido duro.

Sim, foi bem cansativo.


Murilo sentou-se em frente à moça, olhando-a nos olhos. Ela segurou a xícara de café, sorveu o conteúdo já semigelado, mantendo a vista em seu namorado que surgia por cima da cerâmica. Murilo cruzou as pernas, inclinou-se para trás e cruzou também os braços atrás da cabeça. Estava pensando se tomaria café ou não.

E você, Mu? Tá com cara de pensativo. Eu daria muito dinheiro pra saber o que se passa aí dentro. Lorena sorriu brevemente, só com o canto direito de seus lábios. Mas aí eu acho que perderia a graça, né? A diversão tá no jogo do sabe-não-sabe.

É, também acho. Mesmo assim, eu não tava pensando em nada de especial. Acho que isso estraga um pouco a brincadeira, né? Eu só tava pensando se ia tomar um café ou não. Mas aposto que eu fiz cara de quem tava pensando numa cura pra AIDS. Ou foi só o seu instinto de psicóloga aflorando nesse momento?

Pode ser. Pode ser que não. Acho que um pouco dos dois. Tipo, acho que não dá pra gente ficar diferenciando o que é do que devia ser.


Murilo parou por um instante. A conversa parecia ter se desmontado brevemente. Ele se decidiu por tomar o café. Nesse ponto, Lorena já havia terminado o café. Ele levantou-se, foi até a máquina de café, pegou a xícara que estava secando no escorredor, terminou de secá-la e serviu-se.

Lo, cadê o açúcar?

Tá aqui na mesa, amor. Vem, eu ponho pra você.


Murilo sentou-se de novo. Lorena pegou a xícara de café, trouxe-a para si. Colocou uma colher de açúcar. Ficou em dúvida. Ele não disse nada. Colocou mais um terço de colher. Depois mais meia colher.

Linda, por que você tem que servir açúcar desse jeito? Você bebe café todo santo dia. Uma hora ou outra você já devia ter aprendido quanto açúcar tem que por pro café ficar razoável.

Ai, deixa de ser chato, vai. Você e seus cálculos. Mil gráficos, mil dinâmicas de grupo para ponderar a possibilidade de um ataque terrorista no Brasil que faria a Bolsa cair mais de mil pontos.

Nossa, calma! Eu tava só falando do café.


Murilo levantou-se, piscando ligeiramente os olhos diversas vezes. Foi até a gaveta, caçou uma colher para mexer o café e voltou para a mesa. Lorena deslizou a xícara até ele. A mesa parecia ter crescido de tamanho em poucos segundos. Silêncio. O tintilar da colher batendo na xícara falava mais do que os dois juntos. Ele tomou um gole do café. O sabor fez-lhe reter as bochechas como se tivesse tendo uma contração involuntária. Lorena aprumou-se em sua cadeira, olhando-o de frente. Cerrou a face.

Nossa, aposto que você fez essa carinha só porque fui eu que pus o açúcar. Se tivesse sido você, o café estaria bom.

Deixa de doce, vai, Lo. Se fosse eu, eu teria colocado uma colher e meia como eu sempre faço todo santo dia de manhã quando a gente toma café juntos. E sempre fica o mesmo gosto. Você que nunca reparou.

Eu que nunca reparei? Eu que sempre acordo mais cedo do que você e já vou arrumando o café. Você fica na cama se remoende sei lá do que.

Ah, esse papo de novo? Você vai me desmerecer de novo? Semana passada foi a mesma coisa, é o meu trabalho que não presta, é eu que não sei cuidar dos meus sentimentos, é eu que só penso no trabalho, é que não consigo dividir o que é amor e o que é necessidade.

Amor, sério, deixa pra lá. Não quero entrar nesse assunto de novo, eu tava meio magoada naquela semana.

Magoada? Você tava na TPM, isso sim! Meus amigos só quando bebem conseguem falar as coisas na minha cara. Você não tá muito longe deles, não. Só que não precisa de bebida pra soltar o verbo, precisa de uma dose de hormônios alucinados pra começar, né?

Murilo, se controla, sério. Cê tá me tratando como se eu fosse um monte de carne, como se eu fosse um animal que não sabe se balizar a não ser através de instintos. Vamos parar por aqui.

Não, sério, agora já começou. Tem que ter um fim. Cê não pode só ficar escondendo, deixando as coisas por debaixo do pano e dizer que tá tudo bem. Não tá tudo bem, cê sabe disso! Saco.

Você teve um dia tenso no trabalho, ralou o carro essa semana, tá com a cabeça cheia de coisas. Olha o jeito como cê me tratou só por causa de um café. Talvez isso tenha a ver com a ideia que seu pai-

Para com isso, Lorena! É isso que me irrita em você, caramba! Nossa, que desespero! Olha só pra você mesma. Tudo o que eu faço faz parte de uma grande análise psicológica que cê faz de mim. Sabe como eu me sinto? Sabe? Parece que eu sou um rato de laboratório, girando em círculos para passar sede e fome e você poder me dar comida só quando estiver escrito na tabela “como os ratos reagem quando estão com fome”.

Ah, tá! E depois sou eu quem desmerece o trabalho dos outros! Murilo, cê é um bruto, mesmo. sabia?! Tudo que eu estudo em psicologia, tudo que eu monto de teorias, de análises, comentando como lidar com o meu próprio relacionamento sem ter que necessariamente passar por um crivo formal, nada, nada disso faz sentido pra você? Acho que não, né. Aliás, acho que você nem sequer presta atenção no que eu falo. Deve passar na sua cabecinha machista que isso é coisa de mulher, que não serve pra nada.

Aí você tá exagerando, sério. Eu não sou machista, cê sabe disso. E não me venha com aquela análise que “toda nossa sociedade é machista”. Cê que tá me chamando de bronco.

Bronco, que seja! Porra, Murilo. Tudo pra você é engavetadinho, tudo quadradinho, cabendinho em caixinhas imaginárias. Até quando você mastiga você é metódico, caramba! Nhac, nhac, nhac, engole. Sempre o mesmo barulho. Sempre! Corta em pedaços iguais, analisa os pedaços, e depois come. Que saco! A vida parece óbvia perto de você.

E a sua obviedade é não fazer sentido nunca, Lorena. Meu, tô ficando cada vez mais sem paciência com você, sério. Mas essa loucura vem de família, sabe? Se eu tivesse conhecido seu pai antes de você, a gente não taria junto agora. Já pensou? Aquele ortopedista alucinado, só ficava brisando a ver navios. Porra, que saco.

Agora vai meter o pau na minha família? Pois saiba que a casa em que cê dorme foram eles que ajudaram a custear! E o seu pai? Que que aquele pé-rapado perdido no mundo deu pra gente até agora? Um abraço e um olho torto pro meu lado.

Quer saber?! Eu vou embora. Não quero ficar nisso a noite toda. Amanhã a gente se fala com mais calma. Vou pra casa do velho pá-rapado que cê tá tanto xingando, nessas horas só ele mesmo que me entende. Merda.

Ah, agora vai fugir, é? Cê reclama que eu não ponho o assunto, reclama que eu não quero discutir nada e agora vai embora? Embora? Cê é um cagão, isso sim! Não tem coragem de me aguentar por uma noite inteira depois de brigar comigo. Fujão. Bunda-mole. Se você ainda for o homem pelo qual eu me apaixonei, você fica. Não posso acreditar que cê tá virando um covarde.

Que covarde, que nada. Deixa de ser doente. Miolo-mole. Cê é muito casca-grossa, quer resolver tudo na hora. A gente tem que sentar e pensar com calma, saco. Não adianta sair por aí dando patada. Não vou deixar que essa bosta descambe por causa de uma porra de um café. Eu to saindo.

Vai, bundão, vai mesmo. Vai. Amanhã a gente vai ver quem vai me ligar depois de uma noite de sono muito mal dormida. Brigada, sério mesmo. Cê acabou de arruinar minha semana. O trabalho já tá foda e cê ainda me vem com essa agora. Haja paciência, viu. Estúpido.

Tchau.


Murilo agarrou apressadamente seu molho de chaves e sua carteira. Olhou para a mesa. Os olhos de Lorena estavam vermelhos e ela estava ofegante. Mas não dizia nada. Ele olhou para a xícara de café na mesa, completamente cheia. Correu até a cozinha, agarrou a xícara, virou o café na pia e lavou-a apressadamente. Olhou fundo nos olhos de Lorena enquanto soltava um longo suspiro. Duro. Era duro como rocha. Areia eram os fatos. Abriu a porta e foi embora sem dizer nada.
Lorena levantou, arrumou as mangas da camisa. Tremia por dentro. Até suas pernas tremiam. Mas, por fora, parecia um bastião da liberdade. Tentou servir-se de mais café, mas suas mãs tremiam demais. E também havia o açúcar. Ele encarava-a taciturnamente. Ela guardou-o no armário num movimente abrupto. Sentou-se deixando lágrimas verterem sobre sua face, mas impedindo que os soluços dominassem o seu corpo.

Caio Mello
30/10/2010

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Mundo mariado

Maria não queria muita coisa, afinal, ser criança não era muito difícil. O mundo ainda era uma gigantesca caixa de brinquedo, com nuvens brancas e fofas. A garota corria até suas pernas doerem pelos vastos caminhos que encontrava pela frente. Via o horizonte e queria prendê-lo entre seus dedos, queria entortar a vida com a palma da sua mão. Maria via o mundo com olhos jovens, cheios de cor e vida, sem ainda entender plenamente os meandros que se constróem com o tempo. Tempo? Tempo nessa idade era um empecilho. Adultos não tinham tempo para ela. A comida não chegava a tempo. Diziam que ela ainda tinha muito tempo. Tempo, tempo, tempo. Para que?
O que irritava Maria era o chão seco. Duro. Por que o chão tinha de ser tão seco? E ele era... Como ela poderia explicar? O chão era de pedrinhas bem pequenas que não se encaixavam direito. Vários buracos se abriam no chão batido. De dia, tudo era marrom. De noite, tudo era cinza. De vez em nunca, verdejava um detalhe desnecessário.

A cerca no canto da casa
guardava em seu ferro corroído
o silêncio de homens passados.

Fui eu, hoje não sou mais.
Foi quem? Foi Deus, tempos atrás.
Foi tu que viveu sem paz.

Maria entendia muito das coisas. Sabia quando tinha que se calar, sabia quando podia falar, sabia sair correndo para não levar bronca nem sopapo. O mais importante era saber ficar bem quietinha quando a barriga começava a se mexer sozinha. Maria tinha certeza que tinha um bicho gigante na sua barriga que só se mexia de vez em quando. A menina comia, o bicho parava. Quando faltava comida, o bicho ficava pulando e resmungando. Maria já tentara falar para sua mãe da sua dor de barriga. É normal filha, tu vai sentir isso a vida toda. Então, desde já é bom tu saber.

No topo do céu,
jazia o sol, sereno e celeste
em seu sopro solar.

Arfava a terra em seu silêncio sepulcral
e cantavam suas entranhas:

Não tem carne que fique nesta terra!
A morte vem logo, ela não erra.
Suspirem, oh, homens de pele pouca
que, daqui, só vão tirar vida louca.

Maria até ia para o colégio. Mas as aulas eram muito chatas. O teto da escola era furado, a professora faltava pelo menos uma vez por semana, não tinha água lá perto e também não tinha material escolar. E as letras, então! Eram letras demais. Pra que juntar tanta letra? Quanto menos se fala, melhor. Ficar se perdendo em letras não dá em nada. O bom mesmo era ficar em casa de tarde, vendo passar pela porta da frente o tempo.
A garota tivera mais dois irmãos. Mas agora só tinha ela. Isso era bem ruim. Não tinha ninguém com quem brincar. Talvez era para isso que servia a escola, para trazer amigos para quem não tem irmão em casa. Mas os amigos também não podiam ficar brincando por muito tempo. Eles moravam muito longe.
Qual seria o tamanho do mundo? Maria via terra para todo lado! Para que tanta terra?

O mundo, de seu espaço infinito,
virava os olhos para sua própria carne.
Seu ventre descampado de terra móida.

A seca, berne devorando a carne do mundo.

Os olhos tão pequenos da menina
embalavam a alma do globo
e faziam-no tremer por dentro.
Será que aquilo um dia teria fim?

Maria passava horas olhando as coisas. Não tinham tantas coisas para serem olhadas, mas, cada vez que ela olhava para as mesmas coisas, via detalhes diferentes. Do tipo, a cerca. Um dia, a cerca parecia mais feliz, mexendo seus arames entortados. Noutro dia, parecia a cerca a mais triste coisa de todas as coisas. Quieta, cabisbaixa, silenciosa. Os tijolos é que quase sempre pareciam ser iguais. Eles eram tão duros!
A garota também inventava mil histórias para si mesma. Inventava que conquistava um mundo novo, cheio de comida e água. Sonhava com mil amigos, fazia-os viver as aventuras mais poderosas, enchia-os de carne e força. Sonhar era a única coisa que a impedia de enlouquecer. Sonhar fazia o tempo passar, as coisas passarem, a fome passar.

E Maria sonhava.
Em poucos segundos,
já estava voando para o topo do Universo.

Brincava com as estrelas que via de noite da janela da sua casa.
Sorria, dava risada, comia nuvens com sabor de açúcar.
Construía uma casa feita de tijolos que soubessem cantar
e cantava com eles suas músicas prediletas.

Balançava os braços e o vento balançava também.
Sorria e sorriam as gotas de chuva.
Tudo era simples, tudo era próximo.
E o tempo, no mundo de Maria, desexistia.

E voando pelo espaço afora,
a menina esbarrou no mundo sem querer.
O mundo chorava.

Que foi, Mundo? Por que você chora?

Maria, sonha Maria.
Sonha hoje tua alegria.
Sonha como eu sonharia.

Mas não sonho, Maria.
Eu sei que tu sofres,
sei que passas fome
sei há quanto tempo não come!

Não posso mudar, sou fraco.
Não posso melhorar teu corpo parco.
Não posso outros homens fazer
são esses que vão te crescer.

Quando cresceres, Maria,
verás. Entenderás por que choro.
Eu fui fraco, ainda sou fraco.
Que me perdoe a minha terra.

Maria voava, despreocupada.
O mundo devia ter perdido seu coração
dentro de um qualquer buraco de terra.
Afinal, para que tanto sofrimento?

Meu mundinho, não fique tão nervoso.
Tu é belo, maravilhoso!
Tá vendo? Eu to bem!
A comida? Consigo viver sem.

Eu sei sonhar.
Sei nadar, construir meu mar.
Mundinho, não esquece de amar.

Tu esquece de mim.
Não fala que é mentira.
Tu só pensa nesse tempo, nesse futuro teu.
Pensa em mim, só por hoje.

Pensa que eu to aqui e tu também.
Pensa no meu sorriso.
Pensa na cerca lá perto de casa.

Olha, eu não consigo te mostrar o que é certo,
mas posso te dar a mão.

Vem, eu te ajudo!

Caio Mello
27/10/2010

sábado, 23 de outubro de 2010

Multilado Mutilado

Ele abria os braços numa convulsão de incerteza. Seu corpo doía enquanto as ilusões passavam-lhe pela mente. Era revolto ou estava revolto? O ser era subjugado por sua vontade incessante de buscar a meta-síntese de toda sua ideologia. Ele fora idealizador de suas ideias? Fora ele quem construiu seus pensamentos? Todos de pé, cantando juntos a plenos pulmões hinos calculados para levar multidões à loucura. Utilizavam-se dos sentimentos individuais para tornar uma massa em um instrumento uníssono. Gritavam, berravam, suavam juntos. Ele havia parado para pensar sobre o assunto há não muito tempo. Os debates que havia tido com seus colegas, todas aquelas discussões fervorosas travadas no calor dos diálogos teriam sido pré-modeladas? Ele fora incitado a crer incondicionalmente. E, talvez, não o percebera.
Sentia-se pouco, morto, defunto de alma plastificada no turbilhão de corpos loucos. Pensa. Mata. Culpa. Pensa. Mata. Pensa. Mata. Matáquina. Máquina. Vazio. Belicado. Sons loucos de balas rosnando ao vento da terra. Terra? Terra de quem? Terra de nós. Vários nós que acabou tendo em seu raciocínio. A chuva descia-lhe pelos olhos enquanto arfava.

Sentia falta de casa.
Mas não entendia mais o que era casa.

Todos
modos
somos
loucos
e nunca mais ser.

Ver os gráficos.
Ver os dados. Maquiados.
Veros dados. Verdados. Verdades.

E tudo parecia mais concreto ao se aproximar da totalidariedade do Governo. Este era tudo, estava em todos, via tudo. Ele falhava, ofegava. O frio fazia-lhe tremer o corpo inteiro, com medo de puxar outro suspiro dentro daquela roupa molhada. Fazer o dever. O dever de fazer concatenava-se com sua vontade de seguir batalhando. A meta-síntese! Sim! Não poderia nunca abrir mão dela. A Revolução alçaria voo em seus braços e não haveria um homem sequer que não tremesse frente ao seu ideal.
Os outros eram ruins. Não era uma questão de ponderabilidade. Governos não são ponderáveis. São objetos que, de tão complexos, não podem ser formatados em visões subjetivas. A verdade do Governo era baseada em estatísticas. E seus homens eram estáticos. Mas não podiam ser estáticos! Como assim? Uma ideologia perfeita jamais poderia condizer com a imperfeição dos homens.

Matar os homens.
Sim, todos eles!
A ideologia era perfeita,
os homens que falhavam!

A máquina governamental era inquestionável.

Livrar-se de toda a população.
Livrar-se da carne e da imperfeição.
Matá-los para salvar a nação.
Os homens, todos, insensatos são.

Enquanto digladiava com seu raciocínio imperfeito, chilreavam os arredores com vontade. Ele já não tinha vontade. Estava num estado de torpor perene, constante disparar do peito sem limites. Ser era atirar. E a bala, alçada pelas mãos do Estado, tomava vida própria e tornava-se uma mártir da Revolução. Sim! Viva o Governo! Se os homens são tão imperfeitos, ele tinha amplas possibilidades de deixar de existir sem que houvesse sérias consequências para o andamento saudável do Estado de que era súdito.

Agarrou sua arma com força.
Respirou fundo.
Levantou-se.

Gritou,
correndo em direção à
noite.

Caio Mello
21/10/2010

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Cascata distraída

Quisessem os laços me dizerem o que sou e o que deixei de ser. Hoje sou muito, sou forte. Mas o que é ser? Ser é um estado, um regozijo, uma força, uma tendência introspectiva de expulsão do âmago inconstante. Ato de amar a vida, amar a si próprio, existir. Continuar respirando quando a morte poderia ser a outra opção. Mas, também, o que é a morte? A morte é só uma pergunta: o que vem depois? E, se tivesse resposta, faria a vida inteira peder a graça. E ter graça é o ponto crucial da máquina de sonhos em que vivemos. Vivemos porque somos feitos de estrelas. Somos do mesmo produto que o céu inteiro, num jofro infinito de cadências incalculáveis. Nada cabe num cálculo. Afinal, as contas servem somente para apaziguar a lógica do homem. Na verdade, não preveem a doença, não impedem a morte, não param os aviões de cair, não param os carros de bater. O aço se amassa e enlouquece. Foi para isso que ele foi feito. Os moldes são torneados para deixarem de existir. E, se hoje existo, é mera coincidência da vida sobre o que poderia ter sido. Mesmo assim, minha existência é calculada, é perfeita, é o elo que transpõe o abismo que há entre os sentimentos e o mundo concreto. Viver é conseguir sentir o amor, é conseguir pulsar o sangue para fazer com que as faces fiquem rosadas. Somos porque devemos ser. Ser o somos; e o que seríamos se não fôssemos não importa.

Um dos caixas eletrônicos torna-se vago e ele vai até ele.

Caio Mello
12/10/2010

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Os pontinhos

A terra fica numa esquina do Universo,
lá perto do acaso, do lado da felicidade
e de uma estrela.

Pequenina, sempre sorridente,
uma quase esfera bem azul,
um tanto tímida,
com suas nuvens brancas e fofas a borboletar.

Ela anda de um lado para o outro
num ritmo muito à vontade,
nunca girando mais que o necessário.
Jamais parou.

E os cometas se espantam
ao passar perto do globo cor-de-mar.
Muitos pontinhos pulam
de cá para lá, de lá para cá.

Como é que cometas conseguem ver pontos tão pequenos?
Perguntou uma estrela, certa vez.
É porque eles guardam
os desejos dos pontinhos.

Mas são tão pequenos!
Como podem desejar algo?
O vasto Universo não parece
se importar com eles.

E daí? Os cometas se importam.
E a terra vai seguindo sua vida.
Ela sabe que tem pontinhos,
pode senti-los.

Mas nada além disso.
Não machucam, nem dóem.
Qual é a força de um mísero ponto?

Há alguns anos, os cometas
segredaram para a terra que
um pontinho queria dominar o mundo.

Os pontos são curiosos.
Tão pequeninos, tão normais
e, mesmo assim,
com vontades tão grandes!

Todo mundo está dentro do mundo todo.
Montes e montes de pontinhos.
Alguns deles até se enrolaram em papel
higiênico e fugiram da terra por um
centésimo de segundo. Não fez a menor diferença.

A bola cor-de-tinta olha para o infinito.
Tudo é tão grande e tão cheio de coisas.
Astros discutindo sobre os mais diversos
assuntos. E ela ali, por vezes só.

Mas tudo bem. Com seus pontos nunca se sente sozinha.

Caio Mello
12/12/08

Condomínio

Senhores condôminos,
é com grande pesar que comunico, a Vossas Senhorias, que vosso vizinho veio a falecer hoje de madrugada. A distintíssima senhora Gramática, cuja à qual residia no apartamento 412 haviam catorze anos. O corpo de nossa enobrecida conterrânea, virá, a ser enterrado, neste domingo as treze horas e aos quinze minutos. O problema pelo qual ela veio a desfalecer parecer ter sido do coração, observaram aos médicos legistas, talvez algum estresse vivido pela vossa bem-aventurada companheira de edifício. Peço a todos uma devida compreensão e de carinho, pois ela era querida pela grande maioria daqueles em que aqui vivem. Mesmo já senhora de idade, reclamando de dores no peito e visão embassada, nossa ilustre amiga não se deixou abater-se ao longo do decorrer de todos esses anos. Com chuva, com sol, à qualquer momento, poder-se-íasse ver em seus doces e velhos lábios um sorriso doce e afável. Peço que todos compareçam no já citado velório para deixar sequer, ao menos, uma flor perto do caixão de nossa amada defunta.
Sinceramente e antencioso,
José Pedro (síndico interino e condômino fervoroso).

PS: a vaga da falecida pode ser alugada na garagem, a preços módicos a serem discutidos.

Caio Mello
24/11/08

Um elogio ao mestre

A rosa
do Guimarães
é rosa,
é prosa
poderosa.

Caio Mello
08/10/08

Editorial para a primeira edição da Revista Carcará da Academia de Letras do Largo São Francisco

O Carcará é filho do sertão nordestino, renascido da terra batida e do chão seco. Esse que nunca sobeja, passa voando baixo com a vista aguçada. Assusta o povo de olhos miúdos, tem mais coragem do que homem. Anda perto das casas com seu passo comedido de gavião. O voo não é perfeito. Não é deslumbrante, mas serve exatamente para sobreviver. O que bota medo no sertanejo não é a força selvagem do Carcará, mas é a personalidade que insiste em se manter sempre bruta, sempre pronta, sempre ávida por viver e nascer mais uma vez. Gera-se do medo, então, uma vontade de ser carcarado. Um desejo primitivo de ser também temido pelo povo, de viver num ódio intrínseco, numa frenética cadência de sobrevivência – e de renascimento. Desejamos pegar, matar e comer os prédios, o asfalto, os livros, o sertão sudestino inteiro na nossa própria ânsia de sermos também Carcarás, de sermos todos sertanejos. O pássaro voa por entre as Arcadas, explode em tinta e papel, pousando nas mãos do leitor. As linhas guardam-lhe o espírito forte. A transmutação do Carcará da Academia de Letras tem o intuito de presentear o Largo com um farol para a Literatura, para a Arte e para a liberdade de expressão. Cada texto é vinculado ao seu autor, cada opinião é individual. Mas o conjunto das opiniões individuais transforma-se no coletivo da defesa por um espaço de diálogo que não se obrigue a ser comedido, que não filie seus autores à imperatividade de qualquer diretriz ideológica que pudesse ter a revista. Desse modo, das cinzas do chão esturricado da nossa terra, nasce mais um par de asas para a criação e para a inspiração da nação franciscana.


Caio Mello

Setembro de 2010