quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Sit tibit terra levis

Ouço o rosnar dos tambores
E o roucar
              Dos inumados
 
Arranhando caixões
No vão esmero
              De desencobrir
O peso derradeiro
Da terra
              Que lhes sepulcra.
 
Mal sabem:
Leve é a terra e pesado o ar.
 
Caio Bio Mello
09/11/2022

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Salpícula

O grânulo são
Embraseia ao tocar a água
E na imensidão se radícula
 
Desincorpora
E desperta
Pertencente ao cosmo
Abissal dos mares
 
Já não carrega o árduo
Fardo de salgar ou dessalgar
 
Apenas toca os lábios
No beijo suave
Da imensidão.
 
Caio Bio Mello
21/07/2022

Circunmundo

Ouço-te
Nas ranhuras dos tijolos
E sinto-te vibrar
Como se eu próprio fosse sulco
 
Desnecessito de olhos para ver-te
Pois me basta pulsar
E eu pulso
 
Este sangue que é meu
É teu também
Fúria de extravasão
 
E só eu sei
Do dia que há de chegar
Em que outros poderão sentir-te também
Nem que seja pelo medo
 
Quando estiveres
Nas ruas de lodo rubro
Marcando as calçadas com entranhas dos corpos inertes
Que teimam em não ver.
 
Caio Bio Mello
18/09/2022

Fender

Por anos limou o Rio
As pedras e sulcou trilha
Para espraiar no mar
 
Súbito vieram afobadas pessoas
Que subiram ágeis barragens
E sufocaram o fluir da correnteza
 
Esperou o paciente Rio
A noite pesar nas pálpebras
E ao cair o sono
O Rio correu água nos corpos
 
Preencheu os pulmões de lodo
Embaçou os olhos de lama
Rasgou caminho na carne
 
E na manhã seguinte
Viu-se o leito de morte dos afogados
E o leito do Rio a reespraiar no mar.
 
Caio Bio Mello
20/07/2022

Perfídia

Quando menina
Espetava alfinetes
Nos sapos da lagoa
E ria-lhes o sofrimento.
 
Quando adulta
Beijou um sapo
Que se tornou
Um homem
Com rosto mutilado
E marcado de furos
De alfinete.
 
Caio Bio Mello
11/07/2022

Sol

Eis que te dei meus desertos

E me pediste os oásis
Como se todas as colinas de areia
Não te satisfizessem.
 
Mostrei-te então meus camelos
A coleção de dromedários
Os tecidos e as casas
Mas insististe nos oásis.
 
Neguei-te então as visitas
Mandei trancar os portões
E fiz correr a notícia
De que oásis não se compartilham.
 
E nessa mentira guardei meu segredo
A verdade é que oásis não há
Pois vivo sem irrigação
E me dessedento com pó e ventania.
 
Caio Bio Mello
11/06/2022

Líquida

A areia

Não arreda

Envereda
 
Arraia-rei
Arrasta reza
 
Preza
 
Arraê é
Grão e pedra
 
Arranha
Arraiga tamanha
 
Façanha.
 
Caio Bio Mello
09/06/2022

Conquista

Pesco

Entre sal e ondas
O anzol esvoaçante
Nunca perfura a água
 
Fisco
Minha garganta
E o tranco me faz
Cometa rasgante
 
Espaço-sidero
Viajante da esfera azulada
A força atrativa
Me gravita
 
Caio
Incandescente
Mergulho e me detrito
Em pequenos detalhes de clarão
Na órbita de um olhar
 
Sou
Astro, peixe e luz.
 
Caio Bio Mello
22/09/2022

Aterrar

O fruto

Da descoloração do desterro
Puxa a seiva saliva
E cresce pútrido
Em folhas de queratina
 
Brotam pétalas
Enrijecidas com pólen denso
Que perfuma o ar de morte
 
Veem-se no tronco as marcas de um passado
De arranhos e arreganhos
Que sulcaram fundo na madeira
 
E o conjunto grotesco vertigina
Pois já não se sabe mais
O que é raiz ou caule ou flor
Ou chão
Ou nada.
 
Caio Bio Mello
22/09/2022

Gaiar-se

Retumbar do pulso
Epicêntrico

Argila e agulha
De sístoles e diástoles

Tinta urdindo
Os enredos da história

Orvalho diamante
Nas cerejeiras

O fermento, a fúria
O adubo

Montanhas em toques e passos
De caminhos em fogo e alma

Núcleo de magma
E constelação

O céu e o inferno
E o todo. Sempre.

Caio Bio Mello
08/05/2022

quinta-feira, 21 de abril de 2022

Pélago

Navega
em teus oceanos
com vento, vela e viço.
 
Sê fluxo e sol.
Não negues o sabor
que te trazem as correntes.
 
A tua gota flutua
como a valente saúva
se remonta no maremoto
do formigueiro.
 
Não domines ou subjugues.
E nem te deixes arrastar na vaga
porque o ronco do mar é fome.
 
E nunca esqueças
que o segredo recôndito
das águas
chama-se pertencimento.
 
Caio Bio Mello
15/04/2022

Mare et portum

Liber librorum
Aquece letra pernoitada
In aurei coloris
Aqui cintila o que sinto
 
Nella mia grafia
Vedo le stelle
E cada letra
Cada-da-dência
Ou densa ou senda
 
For whom
The story is written
A gota e o oceano
O circo-lar
Por segundos e séculos
In verbis o estar
 
Eu, servo, sorvo
Augenwörter
Pintando o breu
No entremundado
Do eu.
 
Caio Bio Mello
09/04/2022

O rio de largas margens

Helicoidal
Agridoce
A foice cóide
Foi-se
Desjugulada
No claro-escuro
Do redemovinho
 
O turbilhão
Já não mais
Arfa.
 
Caio Bio Mello
19/11/2021