terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Trafeguleiro



O hábito funesto do asfalto.
O que se gastou não foi o tempo.
Fomos nós. Ali.

Três peões perdidos naquele imenso tabuleiro,
no meio das engrenagens desenganadas.
Um engasgo? O cavalo corta em sete.

Mas nós permanecemos.
Sem eixo, nem beira, nem caminho que fosse.
A torpe urbe, recôndita de si mesma,
atrás de uma janela embaçada.

O tempo elástico e repentino,
num átimo, se perdeu no meio do verbo.
O cliente um vinte dois a nos espreitar.

As veias e artérias se entupiram. Nada transitava.
Nada! O vento morreu num canto silencioso.
E aquilo tudo começou a transbordar. O sangue rasgando o piso,
invadindo o corpo e segredando as almas.

A falta de sentido. O rei, quem seria?
Três peões ainda ali. Mesmas janelas escutavam
o ranger de engrenagens mal construídas
e roídas com o tempo.

Quem se rói é a alma e não o corpo.
O débito do dia, a chuva nossa de cada tráfego,
o conta-gotas do terno puído.

O caos começou a se render
quando os peões, aos urros e aos murros,
por razões desregradas, burlaram as leis da diagonal
e seguiram dominando em frente. Sem nexo.

O rei-tempo, conta-almas, ignoto imovediço,
cedeu passo ao que já não se vence,
pois o que não se conta é o que conto hoje.

Caio Mello
19/02/2013



Para você, Felix


quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

O samba do oceano



Amor,
o que aconteceu comigo?
Eu caí de pé na pista, um perigo!
Solto assim não vai dar
o coração se perde no mar.
Essa tal de quarta-feira foi chegando,
os dias passando e eu feliz.
Como saber o que tu fez? O que eu fiz?

No meio da madrugada, perdido,
sem a sanidade e já rendido.
Eu disse vou festejar
e a vida solta ali no bar.

E tu sorriu assim de lado,
sem me dizer se estava errado.
O mundo virou caravela
dizendo aos cantos hoje é ela,
mas sem saber do dia
raiou madrugada na alegria
e eu... O capitão sem oceano.
Bem, tu me disse, está no plano
que a terra há de nascer
mais uma vez! Mais uma vez!

Mais outro lar e vem outro dia
eu vou me afogar.
E nessa nossa batalha naval
eu te disse tudo bem, meu bem
é Carnaval.

Caio Mello
13/02/2013

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Lancinante



O vazio  e um silêncio desconexo
digladiam-se no espaço sideral.
As paredes vão ficando cada vez mais curtas,
cada vez mais estreitas.

O corredor é escuro.
No fundo, olhos estrábicos encaram o vácuo.
A vista de quem? (a vida de quem?)
A dor ausculta os corações partidos.

Cinza. Preto. Cinza. Cinza. Preto. Cinza.
Bolas de gude rolam sem controle.
Dentes rangem por detrás do armário.
Um choro seco é ouvido na esquina.

Mariposas perdem suas asas ao voar em direção ao poste.
Gatos pretos devoram os insetos.
As entranhas bipartidas inundam a noite.
O menino não gosta da cena.

O conjunto é frio.
Um corpo deformado se cria.
A carne putrefeita tem cheiro de vômito.
Ódio. Ódio de sim mesmo. Ódio do mundo.

Um desejo profano de se decepar.
Arrancar de si o pior de tudo.
Aquela porra de circo armado.
Infeliz palhaço de quem todos riem.

A graça é momentânea, mas a mácula é eterna.
O corpo não dura, não cheira nem cresce.
Morrer é fácil: basta largar o último sopro
nos ombros de quem ainda vive.

Ei-lo, frente ao mundo. Inútil.
Um falso. Fantoche esquálido em braços alheios,
fazendo a eterna dança do tu-que-ri.
Ri tu, ri tu, que eu não vou mais rir.

Todos se riem dele, todos o sufocam.
O cimento é muito quieto.
A água não dá trégua: inunda os pulmões.
Não há mais respostas.

Não há sequer lágrima para verter da face.
É ridículo.
As manias criam teias infinitas.
Os sonhos só são doces nos olhos.

Sonhar um sonho é fácil.
Difícil mesmo é contruí-lo,
erguê-lo do chão,
fazê-lo ganhar força e seguir firme.

A solidão, por vezes, invade a alma.
E as palavras entortam a vida, vergam a razão.
Os maníacos descendo o rio na barca-manicômio.
PALAVRASPALAVRASPALAVRASPALAVRAS

Ei-lo, novamente. Maldito personagem.
O terno envolvendo o defunto em seu leito de morte.
Aquele rosto pálido que paga contas todos os dias,
que monta relatórios e guarda as risadas.

O medo de tudo enquanto o corpo se esfacela.
Medo da vida, da morte, do emprego, do futuro, do passado...
Ao invés de diminuir, ele aumenta.
O corpo torna-se uma aberração.

Aberração, a vida.
Incongruente, nada mais se sustenta.
Como saber o verbo sem poder crê-lo?
Como, ao ver o primeiro raiar da aurora, seguir adiante? Adiantaria?

Sem mais respostas, as dúvidas criam raízes.
E o corpo se torna pó.

Caio Mello
04/02/2013


sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Viajantes



Eu vejo passar diante de meus olhos
constelações inteiras.
Estrelas, planetas, galáxias, o universo indomável.
Eu vejo tudo, estou presente em todos os lugares.

Eu sinto cada suspiro, cada sorriso,
cada sussurro de coração.
Todos estão juntos ao mesmo tempo.

Não há passado, nem presente, nem futuro.
Não há nada que nos separe.
Somos todos um só momento
num só dia.

Porque, quando estamos imersos no espaço sideral,
não há dia nem noite.
Deixamo-nos flutuar pelo infinito eterno.
Nossas almas se misturam e se tornam uma só.

Atravessamos a imensidão com a fúria dos buracos negros,
com o brilho e o calor das estrelas,
com a vivacidade do planeta Terra.

Nossa própria existência dilui-se em prol de um bem maior.
Somos grandes, somos poderosos.
Vivemos num eterno gozo.
Finalmente, aprendemos a celebrar a vida.

E nossa festa não tem fim.
Em abraços, beijos e dias incontáveis.
Saboreamos tudo que nos é concedido.
Amamos mergulhados em uma paixão imensurável.

E o amor se multiplica com facilidade.
Nosso coração arde em chamas num incêndio apnéico.
Amamos nossos familiares, nossos amigos,
nossos irmãos, nossas mulheres.

E nunca mais olharemos para trás.
Jamais sentiremos novamente aquela ponta de solidão
que nossa alma jorra em nossa face
quando as cordas perdem o tom.

Não lembraremos do não-aproveitar antigo.
Não saberemos mais da morte.
Ninguém verterá mais uma lágrima sequer
e não haverá mais luto.

Apenas júbilo.
Eterno. Multifacetado.
Criativo. Infinito.
Inocente.

Caio Mello
01/02/2013