sábado, 26 de março de 2016

Inox


Ela caminha de um jeito sério, os ombros arqueados e as pernas concatenadas. O rosto íntegro, bochechas rosadas e redondas. O sorriso curto deixa a boca discreta nos breves momentos de descontração.

O corpo.
A união entre a fúria animalesca e
o prazer da carne.

Destroçá-la, desfazê-la.
O ato severo de puxar os cabelos,
colar o rosto e ouvir o fôlego curto
próximo às primeiras gotas de suor.

Eu quero ouvir.

            Os olhos são penetrantes, eles invadem a minha alma perdida. [Eu sou mera perdição, descaminho, um pseudumano se imiscuindo com o mundo, tentando provar para mim que existo] Não retruco, não discordo. Ela me reprova, sempre. Discorda de meus atos, de minhas posturas, de meu estilo de vida. Pré-piedade.

Que sabes da vida, poeta?

As vigas, as dobras, armas do ferro
são as curvas da moçarquitetura.
Ver tal deliciosa criatura,
presa no meio de um gemido berro.

Sentir nos dedos a quente cintura...
O ciclo de metal eu nela encerro,
quero ter a carne, o resto desferro:
a liga tem recôndita doçura.

Vou desmontar, tirar os parafusos,
deixá-la nua, vou sentir que existe
perto da alma traço de humanidade.

Essa mulher dentro de mim persiste
é mais que desejo, é necessidade,
são sonhos diversos, todos profusos. Ela está ali, séria. Os gestos calculistas. Não se importa, nada é relevante.

            Nada faz sentido, também não é necessário.
                        É fato: o quotidiano continua silencioso.
As braçadas continuam as mesmas, os caminhos continuam iguais.
                                   O estômago ainda revira quando chega a fome.
Mas eu não posso evitar. É natural. Uma atração maior que eu.
            Quando se aproxima, vejo o mundo paralelo,
aquilo que existe dentro do existir.

            Enquanto isso, ela me reprova, ao servir-se de mais um copo da bebida laranja.

Caio Bio Mello
26/03/2016

sexta-feira, 25 de março de 2016

(Sem título)

Eu estou preso 
em uma garrafa 
hermeticamente fechada. 
Quando acabar o ar, 
morrerei sufocado 
em meus próprios pensamentos. 

sexta-feira, 18 de março de 2016

Haicai matinal

Já cedo, de olhos abertos,
O sol da manhã 
Me leva aos caminhos certos.

Caio Bio Mello
18/03/2016

quarta-feira, 16 de março de 2016

Erva daninha

Isso que no meu jardim
não me pertence
                        me apetece
            me enlouquece.

É fruto, revolução,
o claustro despudorado
                        essa nova sensação
(não vejo nada de errado)
o sabor da negação
                        que cresce aqui do meu lado.

Venho carpir com paciência
o dia – no labor comum da pessoa-padrão...
Eis que me surge, de supetão,
o detalhe proibido, a armadilha.

E como brilha.
Essa beleza recôndita que se diz séria
é tão rara quanto a arara-azul.
Andam as duas vidas em pares,
mas deixam em seus rastros,
assim pelos ares,
            um sentimento de permanência.

De soslaio a potência
vejo brotar em ramos no meu jardim.
Com correspondência
não me importo, estou despido                     do sentir
            despedido das funções humanas.
Tenho carnes, tenho ganas.

Tenho calos em meus dedos de arar o solo
do dia a dia. Um café e olhos furtivos
balançam na fumaça suave.
                        (sinto o cheiro das manhãs)

Elas correm sempre com ar de deboche
            (uma flor que cedo desabroche
verá o término de uma era antes de mim)
como se tivessem longos compromissos
com os galhos, os caules, as chuvas.

Mas eu sou o sereno da manhã.
Discreto. Paciente.
Furtivamente desnecessário.

Não ouso cortar-lhes as folhas, muito menos as rosas.
            Não posso, sou humilde jardineiro.
As plantas crescerão fora de meu comando:
a mim não cabe decidir o que floresce
e nem vai se decidir ao meu mando
                        o que perece.

Noto, com assombro, como se avolumam.
            Que erva daninha!
Por que insistem em invadir a vida minha?
                        Só quero poder cuidar de meu jardim
porque, no final da tarde,
quando volto trôpego de cansaço,
é só ele quem cuida de mim.

Caio Bio Mello
16/03/2016

quarta-feira, 9 de março de 2016

Ponto de vista

Parei de pensar
que sou a causa
da minha vida,
passei a perceber
que sou a consequência
dos meus erros.

Caio Bio Mello
09/03/2016

domingo, 6 de março de 2016

O voo do jacaré

Em homenagem ao jacaré Sandro
Eu voltei a ser pássaro
o sobrevoo tranquilo
de uma chuva suave
seguida do sol acolhedor.

Tocar a terra, a grama.
De asas abertas, o horizonte me sorri.

Descanso, olhos fechados.
O momento, por si.
Deixei o concreto, o asfalto, o aço.
(sentimento abjeto)

Assim nada no lago o jacaré
livre das amarras, do preconceito.
Ele não se importa com qual a fé
que professa mesmo qualquer sujeito,

nem em saber quando viver até.
Bem na água do lago, ali é seu leito:
seja Amazonas ou igarapé
qualquer trecho de rio, solto é perfeito.

Por ser mais réptil, menos sub-reptício,
dar às coisas devido novo início.
Por ser mais terra, planta, mais carnal.

O novo começo de raiz.

Limpar do sangue o deletério vício
de viver sempre regrado artifício.
Viver a vida no estado animal.

A construção acolhedora da terra,
a arquitetura magnânima                               das formigas e dos cupins
            a morada dos sonhos, das estrelas.

Como rosa, vento, inseto, asa:
eu voltei para casa.

Caio Bio Mello

06/03/2016