sábado, 26 de dezembro de 2015

Jorge

Eis o cavaleiro da armadura reluzente
no dorso de sua cavalgada.
Em sua mão, a espada que brilha
e afogueia pela imensidão, desprovida de ar.

Em meio às estrelas
            Infinito céu
Brada sua luta
            Contra o fim das coisas
Pelos inimigos
            Ordem no planeta
São pequenos pontos
            Vistos qui de cima
Problemas miúdos
            Reunidos em pingos
Espada que corta
            Fatia silêncios
Crateras lunares
            E Jorge segue rumo, na profusão
do sidero-beija-flor, passeio público
conhecedor dos lunáticos

[Os pés tocam a areia
olhos volvidos para o céu
anoitece, um doce véu se propõe
o que haveria lá em cima?
Para além mar, além céu?]

Um dragão que não é garras,
não é carne, nem é fogo.

É de começo, meio e fim dragão
As escamas nascem dentro de artérias
Povoam o sangue como bactérias
Dominam e dobram o coração

Desverdade: esse monstro existe não
Nem é recheado dumas matérias
Existe só no sonho, nas pilhérias
É guarda, sopro, lato, concepção

Uma construção que o guerreiro forje
Demônio de sonho, fado e segredo
Assim por mil séculos a lutar

Mas e quem poderia adivinhar?
Que esse bicho, de tal simples brinquedo,
Só convive dentro do próprio Jorge.

Caio Bio Mello
26/12/2015

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

(flores)Ser pétala

Botão a desnudar, puerinfinito!
Esse neoprincípio de mil cores,
que brilha pirotécnico arco-amores
da cromatologia do bonito.

(flores)Ser que desabrocha bendito:
o raiar dos mundos multicolores
o sonho dos sidero-beija-flores
o nascer que floresce favorito.

Florabrir-se com olhos para o mundo,
esse novo caminho de voz doce
puerilhado em mansosa descoberta.

Para o ser que foi sem saber que fosse,
ao simples nascer em que se liberta,
semeados lábios – sorriso fecundo.

Caio Bio Mello
25/12/2015

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

A bailarina de piche

Havia diversos boatos (mitologias)
sobre sua origem.
Uns diziam que seu criador
morrera antes de completar sua obra.
Outros, afirmavam que ela havia brotado do lodo,
ou de algum submundo inaceitável.

Seu corpo inconstante mutava-se
a cada minuto.
Sua pele de betume
nunca poderia reluzir
como as lantejoulas das demais bailarinas.

Por isso, a companhia
mantinha a bailarina de piche atrás dos palcos.
Ela não poderia, jamais, participar de uma apresentação.
Seu corpo grotesco – que mal conseguia se manter uno –
não pertencia à glória e ao público.
Ele deveria viver em segredo.

No princípio, a pequena acreditou no
que os outros lhe diziam.
Todos repetiam o mesmo tom:
“Ninguém gostaria de te ver,
piche não atrai e você não sorri direito”.
Repetiam, em uníssono, a sua feiura.
E, por um tempo, chegou mesmo a crer
que era horrenda.

Ela ficava atrás dos palcos, escondia o rosto,
puxava as cordas, acertava a iluminação
e fazia o inimaginável para não ser avistada
pelo grande público.
Para ocultar o horror de seu corpo viscoso.

Porém, algo em seu peito borbulhante
lhe dizia o contrário.
Ela tinha um instinto, um pressentimento,
de que a beleza, a vida e a morte
não são decididas por outras pessoas.
Ela seria quão bela desejasse ser,
independentemente do que lhe dissessem.

Ela tinha certeza disso.

Durante o verão, a companhia se encontrava com dificuldades
financeiras e investiu em propaganda e, por isso,
colocou todas as bailarinas (as mais belas)
nas ruas para angariar espectadores.

Naquela noite, a casa estava quase lotada,
o esforço, enfim, dava alguma resposta.
Não havia espaço para erros no espetáculo,
cada passo deveria ser frio e calculado.

O primeiro ato correu tranquilo, as bailarinas
se congelavam em poses mil,
pernas para o ar, rodopios tímidos
e aplausos abafados.
Mas havia algo que faltava ao público...

Então, de espanto, entre o primeiro e o segundo ato,
todas as luzes
se apagaram e o palco quedou-se inerte.

Quando os holofotes se reacenderam,
todas as lâmpadas estavam voltadas para uma figura,
pequenina e solitária,
que permanecia no meio do palco gigantesco.
Ao fundo, o som da vitrola ribombou automático.

A bailarina de piche, então,
realizou rodopios, piruetas,
esticou os braços, revirou os dedos.
A cada salto imenso que buscava,
seu corpo caía ao chão e se desmantelava.
Mas ela não temia – sabia que sua química
permitia a recomposição em instantes.

Ela era selvagem. Sorria e corria.
As outras bailarinas, atônitas, buscavam nos pés dela
o que nunca haviam encontrado em si: liberdade.
A bailarina de piche não tinha pudores,
não tinha medo de errar, não sofria pela imprecisão.

Pelo contrário: ela queria ser imperfeita,
desejava ser incompleta.
Transparecia a dança do fundo de seu coração de breu e paixão.

Tanto saltava que parecia alada.
Seu corpo era ágil como um puma negro.
O público, de início estarrecido, passou a se deliciar
com a performance. Ninguém jamais demonstrara tanta coragem.

O corpo de piche era, sim, capaz de brilhar.
Nem todo belo é lindo – o belo é sincero
e, ao final do espetáculo,
a bailarina de piche foi ovacionada.
Ela permanecia, gloriosa,
em meio às infinitas poças de sujeira
que se espalhavam pelo palco.

A noite foi um sucesso e a companhia
arrecadou como nunca. Cada nova
apresentação da bailarina de piche seria uma casa cheia!

Porém, para o estarrecimento de todos,
a pequena afirmou e repetiu que nunca mais
faria qualquer apresentação, para qualquer público.
Ninguém foi capaz de demovê-la.

E, todas as vezes que a questionavam por que parou no auge,
ela respondia de pronto:
Eu não nasci para brilhar,
mas sim para existir. E eu existo.

Caio Bio Mello

22/12/2015

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Entre dois silêncios 
Sempre existe
Uma palavra 

Antipoiesis

O poeta é incapaz de conter seus sentimentos.
Está sempre aberto ao mundo,
sempre conectado de um modo que não pode explicar.

Não se trata de estética, de sonoridade,
nem de qualidade artística.
Sejam os versos bons ou ruins,
esse estado permanece.

É um permanente contato com algo interior,
amarrado às tripas e à alma.
Há momentos nos quais o desejo é apenas pelo silêncio
e pela serenidade.
A vontade de conseguir fechar o vidro,
silenciar o barulho.

Mas isso é impossível
As palavras, sejam feias ou belas,
elas consomem. O corpo é enferrujado por dentro.

Antipoiesis: o efeito deletério do eu-lírico.

É estar sempre aprofundado nos sentimentos,
nas ideias, ensimesmado.
A incapacidade de permitir a ocorrência
natural dos eventos.

Uma inaptidão, que brota muitas vezes
à noite, quando o poeta deixa-se deitar
para (tentar) dormir.

São milhões de pássaros, uma revoada,
um rio caudaloso durante uma enchente.
Os objetos se amontoam
em pilhas e estantes.

A antipoiesis é o lado sombrio
e profano da criatividade, ignota à estética.
Ela não é bela. Ela existe.
É como um órgão novo no corpo,
que afeta a respiração, a circulação e o ciclo do sono.

Mas, por outro lado, é consequência lógica
da poiesis. Se existe o belo, deve haver o profano.
É natural que se pense na existência
do terrível quando se cogita o maravilhoso.

E esses dois mundos existem
e se digladiam no coração pulsante,
às vezes como rosa, outras, como guerra e sangue.

Uma vida de extremos.
Repentes de felicidade, rompantes de tristeza.
Um dia de sol, outro de lua.

Por ordem causalista,
mantém-se o equilíbrio – e para dar-se o contraste,
devem os extremos coexistirem
no claustro de um mesmo peito.
Só é capaz de descrever a alegria
quem já vivenciou a tristeza.

Então, é preciso respeitar a antipoiesis
e deixá-la consumir o corpo, em pequenas doses.
As marcas e cicatrizes são o cimento.

Somente assim, em tal aceitação tormentosa,
ao advento da poiesis,
terá o poeta a capacidade
de alcançar o lirismo mais puro e mais selvagem
que jamais poderia sonhar.

Caio Bio Mello

21/12/2015

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Pela primeira vez

Como um silêncio
            que esmorece
se desmemora
                        cresce renasce (a)bru(p)to

translucidez eu corr(upt)o
                                   remoenda
            nascimento

saudades do menino tão lindo
                        que ainda nem conheci
            rebento sereno tal gota de chuva

Amar tanto sem conhecer?
                        Esse metassentimento que atravessa
perpassa superior a mim
            que sou e ressou novosser
                        (nem o impede o Oceano)

Salvaste a teu tio ao vir ao mundo
            Teus olhos tão profundos
                                   São maiores que tudo
Que devoram e se deliciam
            Assim macio e doce

És a Persogaláxia que procurei produzir
            em panalegorias (todas encatômbicas)
Eu não soube descrever não soube escrever não soube ver
            e tu, pequeno, nasceste perfeito
                        nessa facilidade fascinante
                                               de                                           ser.

Enlaçou-me – deu risos aos meus lábios
            pueroliberto, levitado e preenchido
Meu Deus, meu Deus, que olhos são esses?
                                   Pequenos e novos,
mas parecem saber do mundo há séculos
e séculos e séculos esséculos esséculs
            num doce e simples tocar
com seus dedos de menino.

Caio Bio Mello

14/12/2015

As rosas da noite

Eis o meu jardim de rosas negras.
Elas vivem no descampado sombrio atrás de minha casa.
Brotam selvagens numa sequência desordenada
(nunca tive coragem de organizá-las).

Cada novo botão que floresce
é o umbigo do mundo.
                                   Um reprincípio
            ao nascer assim já deserta.

Nascem solitárias
nunca precisaram
qualquer minha ajuda,
a brotar do chão
tal qual espontânea
geração da terra.

Elas crescem por si, desenvolvem-se sem aviso
nem trégua nem previsão.
Multiplicam-se galopantes.

Eu as alimento com minha carne, com meu sangue.
Quanto mais tecido, mais escurecem.
Em dias de desvario, creio ter visto veias pulsantes
em uma pétala robusta.
                                                           Posso ouvir sua pulsação...
Mas não.
                        É irreal.

Sei que todas estão em estado catatônico,
naquele derradeiro salto antes do fim.
Talvez isso que mais me incomode.
Estão todas quase mortas, mas vivem assustadoramente.
Elas proliferam. Moribundas.
Acho que nunca cheguei a ver uma sequer
murchar e perder as pétalas.

[Estrela solitária
no caminhar do Universo
brilha seus raios sem planeta
que a circunde
gasta sua luz
nos confins da imensidão do vácuo]

Ao abrirem suas pétalas,
desabrocham
pérolas da cor da imensidão
do céu da Pauliceia (desestrelado).

E, contente, coleciono minhas pedras preciosas
num quarto empoeirado de minha casa,
na esperança de, um dia (quem sabe?)
minhas rosas conversarem comigo – de novo.

Caio Bio Mello
14/12/2015

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Das razões pelas quais achamos que somos fracos

A maior prisão que existe é a da alma.
Vala comum dos medos.
As nossas ideias são nossos próprios muros.

Nossa carne é costurada por uma teia de angústias
que urdimos diuturnamente.
Nosso próprio preconceito nos limita.
Dizem-nos que não podemos fazê-lo
e, com o tempo, também passamos a acreditar.

Sequer percebemos que, para mudar,
o primeiro espaço a ser vencido é o individual.
É preciso definir quem somos
para depois pensarmos quem queremos ser.

Nossa personalidade é acorrentada
pelos piores pesadelos.
Impedimo-nos de sermos plenamente satisfeitos
porque a mediocridade é cômoda.

A faceta sombria da dúvida nos perturba
e, então, permanecemos na luz da incompletude.
Jamais podemos nos deixarmos no marasmo da mesmice,
na repetição de ideias – na morte da irreverência.

Somos eternamente inacabados
e o benefício do caos nos completa.
Os maiores sonhos nasceram para não ter fim.

A miríade do mundo.
As pétalas das rosas que caem ao chão
na lascívia helicoidal.

O medo é deglutível.
A verdadeira serpente é tentarmos sufocar as ideias
e adormecermos por uma era.
O ofídio rasteja por cima do corpo e, presto,
enlaça o torso.

Em instantes (o fluir do anos),
o monstro envolve ao ponto de impedir os movimentos.
As costelas se rompem.
Sem mais nem menos, sem prelúdio nem epitáfio,
uma única abocanhada devora as estrelas,
que perdem o brilho
no mar do suco gástrico.

Caio Bio Mello

07/12/2015

domingo, 6 de dezembro de 2015

A colecionadora

Ela colecionava seus canudos
atrás da casa num vermelho armário.
Guardados, eram favas de apiário,
na lógica de tal sonho absurdo.

Enorme coleção sem conteúdo
que ela admirava: lindo cenário!
Encontrava-os em qualquer horário
sem nada com eles fazer, contudo.

Passou anos (décadas) nessa busca
para encher o armário até o seu teto.
Já velha, era feliz da coleção.

Mas morreu sem ver um filho, nem neto,
e, moribunda, teve a conclusão
de que a vida por tão pouco se ofusca.

Caio Bio Mello
06/12/2015

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Entrementes

O som abafado das ruas
chama a atenção do lixo,
que loda em sequência concatenal
a caminho do expurgo.

Caio Bio Mello

04/12/2015

Guelra

O menino de noventa
que possuía sonhos tão tão profundos
aprofundou-se em tudo,
mas esqueceu o mundo e, quando se deu conta,
estava no último oceano da última curva do Universo
debaixo de quilômetros e quilômetros de pura água.

De lá, podia ver curtos raios de luz esgueirando-se
para poder chegar em qualquer curva
de correnteza que se permitisse.

Com essa pouca luz e infinitos sentimentos
(que não faziam sentido algum),
ele percebeu que não veria mais a superfície
em toda sua vida.

De mãos atadas, enfim,
nadou como um peixe
e guelreou assim que possível.

Três meses atrás, ele foi fisgado por um anzol grosso
e hoje, congelado, está em exposição no Oceanário de Lisboa.

Caio Bio Mello

04/12/2015