terça-feira, 20 de novembro de 2012

Dos direitos da Humanidade



Faz-se saber que, a partir dessa data, concede a Poesia os seguintes direitos e deveres a todos os seres humanos:

1.      É lícito fazer pausa diária de uma hora nos seguintes momentos: a) do primeiro raiar do tom da aurora até o sentimento de ter o rosto aquecido pelo sol matinal b) do primeiro raio de luz que se perca atrás do horizonte (seja ele de pedra, água ou sonho) até o derradeiro adormecer do astro;
2.      Todo homem de guerra deverá também guerrar contra sua própria tristeza, posto que a paz social inicia-se pela paz individual;
3.      A alegria será sempre celebrada, sempre lembrada por qualquer meio de veiculação possível. Seja através do contato físico, do som, de imagens, de mensagens ou gestos;
4.      A vida será um bem eterno e solidário de todos. Obrigam-se os demais pelo falecimento de cada um;
5.      O almoço jamais será refeição realizada solitariamente. É vedado às pessoas comer às pressas, limitando-se a engolir o que deveriam saborear;
6.      É lícito a cada um amar do jeito que entender melhor. A título de lei complementar, o amor nunca poderá ser definido. O conceito pode, simplesmente, ser respeitado e propalado. Cada indivíduo saberá o seu próprio significado do termo;
7.      É lícito a todos tirar um dia de folga por mês para visitar seus mortos. Para relembrá-los, para senti-los;
8.      O pranto deve ser respeitado, jamais tomado como ato vexatório. É de direito comum o sentimento de perda, de incompletude;
9.      É proibido definir o conceito de felicidade. A palavra não pode ser explicada com qualquer vinculação, seja relacionada com bens de valor pecuniário ou não;
10.  Haverá um canal em rede nacional de monopólio de cada Estado. Nele, será obrigatória a veiculação de imagens de todas as pessoas nascidas no país no mesmo dia. O nascimento deverá ser celebrado;
11.  É lícito aos enfermos exigir, em seu velório, que haja celebrações de toda sorte. Se assim for o desejo do indivíduo, haverá manisfestação de alegria e contentamento em nome do celebrado. Todavia, é vedada a proibição do choro.
12.  Às crianças será concedido o direito irrestrito à imaginação. Será de obrigação estatal o fornecimento de brinquedos a todos os menores de até cinco anos de idade, respeitando-se na qualidade dos presentes o limites orçamentário de cada região. O estímulo à liberdade será obrigatório;
13.  Entrará em vigor, a partir desta lei, revogando-se dispositivos em contrário, feriado nacional no dia 1 de Janeiro no qual está vedado o trabalho. Estarão livres para fazer o que bem entenderem os indivíduos, desde que respeitados os direitos fundamentais e demais direitos de outros. Fica liberado o trabalho solidário;
14.  Em relação ao feriado de 1 de Janeiro, é dever do Estado o estímulo à reflexão. Deve-se, através de propagandas e cursos prévios, fomentar a ideia da vida, do infinito, da imensidão e do estar-no-mundo;
15.  A cada pessoa será concedida propriedade de uma árvore, sendo de total responsabilidade do indivíduo cuidar do bem-estar da planta. Independe a espécie do vegetal;
16.  O mundo será de patrimônio coletivo e individual de todos os seres humanos, sendo a fração individual uma ficção jurídica;
17.  Todo indivíduo é obrigado, diariamente, a reafirmar seu amor por seus queridos;
18.  É direito do cidadão e dever do Estado o combate ao ódio e à tristeza. Todavia, se o indivíduo decidir isolar-se por conta própria, é vedado a qualquer um impedi-lo de forma agressiva. Mensagens que tentem demovê-lo serão aceitas.
19.  A desistência infundada e inesperada será vedada;
20.  A perseverança deve ser louvada pelo seu conceito, pelo seu fruto e pela sua origem.

Esta Carta deverá ser interpretada através dos princípios da igualdade entre as pessoas, da defesa da liberdade individual, do conceito bruto de sociedade e dos direitos fundamentais da humanidade.

Caio Mello
20/11/2012

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Lili e Lalá



Disseram-me
que a vida é curta.

Eu respondi
que a vida é um ovo.

Parte I – A Família

            Lili era uma garota muito bonita. Tinha catorze anos de idade e grandes cachos morenos. Ela morava com seu pai, Alberto, e com sua mãe, Gabriela. Seu pai era já mais velho, advogado de respeito na cidade que vivia imerso em seus cabelos grisalhos no auge de seus setenta anos. Sua mãe era mais nova, um sorriso ainda agarrado à juventude de seus quarenta.
            A menina sentia-se muito sozinha, pois não tinha irmãos. Sua única companhia era a sua cadela Lalá. Um vira-lata vistoso, com pelo dourado. De longe, até parecia um pastor alemão. Grande, bonita, Lalá entretia a menina em suas tardes. No colégio, Lili fazia muitos amigos, mas nenhum deles conseguia chegar sequer as pés de Lalá. O animal tinha algo de belo dentro de si, de poderoso. Lalá compreendia Lili de um jeito muito simples. Sentava-se ao lado da menina e ouvia por horas as histórias mais mirabolantes que Lili criava. Sereias, monstros, pássaros, deuses... De noite, os pais deixavam Lalá deitar na cama junto com Lili.

Parte II – O Sonho

Alberto, o que trazes na mente?
Trazes o sonho, o dizer, o desejo?
Estás, mesmo, vivo?
Consideras a vida o distinto sabor de teus dizeres?

Para. Olha o mundo ao redor.
Escuta o que diz teu peito.
Esta vida tão longa, tão completa, tão nonsense.

Viveste agora já o suficiente para quebrarmos a ordem
natural do mundo.
Vivemos. Vives. Vês.

Agora terás a chance de vivenciar
o que muitos ignoram.

Abre teus olhos para nunca mais fechá-los.
Estás livre.

Parte III – O Acidente

            Lili estava na sala de sua casa sentada, assistindo televisão. Lalá dormia a seus pés, com os olhos bem fechados. Gabriela entrou na sala.

Oi minha filha, tudo bem?

Tudo mãe... Eu to aqui assistindo tevê com a Lalá. Mas eu acho que ela já dormiu...

E por que vocês não vão um pouco lá fora brincar? Tá um dia lindo hoje.

Pode ser!

            Lili acordou Lalá e levou-a para a rua. As duas brincavam no jardim da casa. A residência ficava numa região um pouco mais afastada da cidade. Condomínios de alto padrão.

João vinha dirigindo seu carro
pela rua estreita.
Não podia enxergar direito.
Muito uísque, cachaça boa...
Quem sabe do sonho quando estamos acordados?
Quem sabe se estamos acordados de fato?
O que é o sonho?
A direção parecia tão longa...
As curvas pareciam tão curtas.
Muito.... Suaves.

Lalá
            Lalá
                        Lalá
                                   Lalá
                                               Lalá
                                                           Lalá
Lá onde os meus olhos já não se enxergavam

As vistas se perderam.
Um borrão dourado cruzou a apertada rua.
O pé, desreflexo.
Dentes cerrados.
Mãos buscavam desconexamente
a marcha
o freio
o espelho
e o poste.
O veículo chocou-se rapidamente.
Um último ganido.

            A menina chorava. A primeira visão concreta de sua vida. Sua amiga, sua companheira, morta. Como a vida poderia ser tão cruel? Foram anos de treinamento, foram anos levando a cadela para passear, foram anos de carinho... Tudo isso perdido em segundos. Os séculos de natureza, milhões de anos de Universo e a vida tão frágil. Tudo aquilo que parecia muito bem desenhado, muito bem construído perdera-se com apenas uma roda. O homem estranho batera o carro. Saiu cambaleando, perdido. Vomitou no chão. Por que ele falava tão enrolado? Por que ele não conseguia pensar direito? Será que fora o impacto da batida?
            Gabriela escancarou a porta da casa e gritou por sua filha.

Lili! Lili! Minha filha, minha menina!

            Mas Lili não respondia. Ela não estava nem um pouco machucada. Não cortara nem sequer a ponta de seu dedo. Mas por dentro... Havia um rasgo no seu peito. O mundo não fazia o menor sentido. Como as coisas poderiam funcionar daquele jeito? Como a lógica do universo poderia ser tão cruel? Nada se encaixava.
            A dor.

Parte IV – O Funeral

Uma pá de terra
outra pá de terra.
Os pelos dourados
a noite os encerra.

Vão descendo lágrimas.
Não chore Lili,
sorri outra vez.
Não fiques aqui.

Procura de novo
de novo, de novo
a vida nascendo:
nascendo de um ovo.

Parte V – Alberto

            Era domingo, sete horas da manhã. Lili estava sentada na mesa da cozinha, mexendo seu cereral com uma colher. Sua mãe estava tomando banho. Ao seu lado, seu pai lia o jornal. No chão, não havia mais ninguém.
            Alberto olhou para a porta. Gabriela ainda estava no chuveiro, ele podia ouvir a água descendo. Olhou ainda mais uma vez para ter certeza. Dobrou, cuidadoso, o jornal. Olhou para o rosto da filha.

Lili, olha pra mim.

            A menina levantou os olhos.

Oi, pai.

Lili, se eu contasse um segredo pra você, você saberia guardar esse segredo muito bem?

Sim, pai, você sabe que eu nunca conto nada pra ninguém. Lembra daquela história da gente roubar a pizza do vizinho? Eu nunca contei pra ninguém, nem mesmo pra mamãe. Você pediu, eu não contei.

            O pai começou a sorrir, lembrando-se da história.

Que bom, que bom. Então, eu preciso te contar uma coisa... Você já parou pra pensar sobre a vida, minha filha? Já parou pra pensar na ordem natural das coisas?

Eu sei lá, acho que não. Não gosto de ficar pensando sobre essas coisas. Ainda mais depois do que aconteceu.

E se eu te contar que a vida não precisa seguir numa direção só? E se eu te falar que as coisas podem mudar de sentido de vez em quando?

Se você fala, eu acredito, pai.

Eu posso inclusive te contar que... As pessoas não precisam nascer só uma vez. Ela podem nascer várias vezes, continuar vivendo e brotar de novo. Assim como brotam as plantas. A gente só precisa ter cuidado com o que faz. Então eu quero que você, nessa noite, feche seus olhos e pense com bastante força na Lalá.

Pai, não vamos falar sobre ela, por favor.

Calma, Lili. Faz o que eu to te pedindo. Quando você for dormir hoje de noite, pensa o máximo que conseguir na Lalá. Pensa nela de volta.

            E assim fez Lili. Quando a menina foi dormir naquele dia, pensou em Lalá o máximo que conseguiu. Pegou-se repentinamente chorando pela morte de sua amiga. Chorou tudo o que podia, até suas costelas doerem de tanto soluçar. Ela chorava baixinho para que sua mãe não ouvisse. Queria fazer como seu pai lhe tinha dito, queria chorar sozinha a morte da cadela.

            Alberto fechou os olhos.

Nossa vida é cheia de labirintos,
nada na contramaré do oceano.
Nós somos feitos de papel humano,
mas dos animais não somos distintos.

Nosso tempo é só aquilo que eu sinto,
o tempo é esfera, ele não é plano.
Ele é um engodo, ele é um engano.
A nossa morte é da vida um instinto.

Se sendo engodo, por que começar
tal crime de fazer cessar a vida?
Melhor tê-la esticada como elástico.

Caminho para sempre sem partida,
como se a vida nos fosse de plástico.
Viver o avesso do labirintar.
           
            No dia seguinte, Lili foi acordada por latidos no seu quarto. Por latidos. De Lalá.

Caio Mello
19/11/2012

sábado, 17 de novembro de 2012

Estações



Primavera

Ela lança seus braços para cima.
Ela dança.
Seu corpo belo, suave...
Um sorriso forte e decidido.

Como um raiar de dia,
como um começo novo. Um princípio.
Ela é o sentimento de comer um pedaço de biscoito
logo depois de tomar uma xícara de café bem forte sem açúcar.
Ou melhor: ela é.

Como um detalhe.
Não precisa de muito. Não precisa de muitos.
A sua beleza é rara, interna.
É uma beleza quase selvagem esculpida
numa menina urbana.

Ela acorda de manhã, ainda esparramada na cama,
e já está maravilhosa.
Não precisa de roupas. Não precisa de acessórios.
Não precisa de cinco horas para se produzir.

Ela acorda e está pronta para o mundo.
É como despertar sem nenhum alarme.
Aquela manhã tranquila de domingo,
seus olhos vão gradualmente deixando-se abrir para a vida.
Um primeiro foco, um primeiro cheiro...
E então, os pés voltam para o universo.

Ela é o avesso. A parte contrária.
O desregrar de um mundo paralelo.
Modelo de si mesma, desafio para as outras.

Usa uma camiseta colorida.
No rosto, um olhar meigo.
Seduz devagar, simplesmente.
Deixa uma vontade bem no fundo do peito.
Bem debaixo do pulmão.

Um ar quase arrogante, decidido.
Mesmo assim, envergonhada.
Uma pureza profunda, profana, prolífera.
Montanhas, pradarias, doces, quitutes.
Doce de leite.

Perfeita porque incompleta.

Inverno

No enterro de um pastor-alemão chamado Rex, oito homens vestidos de preto cantam todos juntos. Estão todos taciturnos, todos de preto. De perto, tristes. De longe, sérios.

Já perdeste carne
Já ganhaste terra
Chegaste ao limite
No fundo do poço

Sem bolas azuis
Nem cantos antigos
Nem versos recentes
Nem dias amenos

Deixas as entranhas
Ganhas oceano
Planejas voltar
Não sabes nadar

Olha o teu enterro
Pensa teu defunto
Desfruta teu choro
Desterro da vida

Perdeste o horário
Passaste o limite
Morreste de fome
Por comer demais

Chegam ao evento inúmeros documentos do escritório do cão. Uma pasta com os gráficos do desempenho da empresa em 2010 começa a falar:

Rex, foste como um pai para mim. Construíste meu conteúdo. Disseste o que eu deveria fazer em minha vida. Passaste diversas tardes de domingo ao meu lado. Emociono-me a cada dia, pensando nas noites românticas que passamos no escritório. Você, nervoso com seus prazos, alheio à realidade, escrevia-me com um furor inigualável. Sinto-me lisonjeada de ter tido mãos tão suaves a me escrever.

Um caderno de notas:

Rex, sinto tua falta. Ainda me restam algumas folhas em branca. Meu bojo será eternamente uma lacuna por ter te perdido tão cedo assim. Morreste cedo. Talvez até são demais... Morreste na batalha da vida, na qual estamos todos inseridos. Morreste entre uma linha minha e outra. Aquela frase vai para sempre ficar sem fim. Lembro-me de te ver admirando a vista na janela. Tão bonita a vista daquela janela do trigésimo andar... Mas tu gostavas de tê-la fechada. Não entendo por que...

Chega a cadela viúva:

Rex, vais tarde. Largaste tudo para trás logo cedo. Largaste coisas demais. Tudo demais. A tua gravata era tudo que tinha. O nó no pescoço. O nó na garganta. Por fim... O nó nas tripas... Foste. E ponto.

Joga-se terra no buraco.

Escuridão.

Equinócio

Tudo tem quatro lados. Tem quatro lados tudo.
Tudo.
A vida, oblíqua. Obtusa. Hipotenusa.
O arquétipo do palhaço.

Ele finge ser normal.
Usa máscaras. Gesticula.
Marionete.
Imita a elite, mas jamais será parte dela.
Perdido, ignoto. Subjugado. Sujo. Submúndico.
Raquítico. Dissoluto.

Ele fica na roda da vida.
Constante morte pairando na tela de um computador.
Os prazos, os relatórios, as entregas.
Quotidiano.

Sôfrego nadador antimaré.
Morre a cada dia.
A cada sopro perdido.
A cada dia mal vivido.
A cada morte planejada.
A cada plano morto.

Mas o palco é arte. Todo dia, sorriso novo.
Novas piadas, novos clientes.
Entretenimento.

Triste o palhaço que não tem o direito de ser triste.

Outono

A nossa mente flutua
entre o que desejamo ser e o que já somos.
Somos porque temos de ser.
Ou porque temos ânsia pela vida,
ou porque temos medo da morte,
ou porque fomos coagidos a viver.

Há, para tudo, uma obrigação.
Direito do cidadão, dever do estado.
Sim... O direitobrigação de viver.
A vedação do suicídio.
A negação da morte.
O impecílio suicida.
Agressivo, porém incompleto.

O parâmetro inacabado de todos nós.
Somos feitos da mesma massa.
A massa da nossa alma. A alma atômica, recém-formada.
Ainda graduanda do holocausto.

A vedação da alegria plena.
Os padrões. A moral. A ética. Modos. Moda.
O corpo desfalecido com o peito aberto.
Na cirurgia, ossos padecem.

Pré-Rex.

Solstício de inverno

Não vejo mais o dia.
Não vejo.

Vejo a noite eterna.

Longa.

Gélida.

Meus pés tremem. O coração palpitante.
Mal posso esperar... Preciso ver o dia.
Preciso ver o dia. Preciso!

A fé, a precisão, a necessidade, o vício.
Nós, todos... Sentimos muito.
Perdemos o ânimo, o hábito, o hálito...
Perdemos nossa virgindade.
Somos todos gastos. Castos? Putos.

Verão

No fundo, enxergo o oceano.
Deleito-me com o simples olhar.
Desconecto-me do universo.

Eu não sei. Eu sou.
Sou as estrelas.
O sol, o céu, o sal, o seu.
As mãos abertas.
Pés cruzados.
Cruzamos os portos, Gibraltar rumo à Terra Santa.
Cruzamos o continente.
Oiapoque ao Chuí.

No fundo de mim, espero enxergar a vida.
Linda, maravilhosa.
Não economizo vida.
Gasto-a.
Queimou-a aos montes porque é maravilhosa.
Vou engolindo-a rapidamente.
Sobram-me poucas opções.
Tenho-a nos meus dedos
e ela me tem na mão.

Desfaço-me
Nasci de novo.

Caio Mello
17/11/2012