domingo, 29 de julho de 2012

Peregrinação


Nascer é ato simples de estar no mundo.
Somos rebentos que vêm com a aurora.
O segundo passo nos vem de fora:
montar algo que vai ser mais profundo.

Mas nós vivemos pensando no agora,
nesse poço negro de tão imundo.
Calculando sempre cada segundo,
esperando a morte que não demora.

Achamos a curta vida uma afronta,
sempre somando os nossos vários anos.
Tristes de nós, não sabemos viver.

No erro de cálculo talvez percamos
a vida, que com ponteiros não se conta,
que se esvai no eterno do nosso ser.

Caio Mello
29/07/2012

Confissão


Amigo,

Como vão as coisas por aí? Eu sei que a gente já não se vê há algum tempo. A vida tem sido bastante corrida, o tempo tem sido bastante escasso... Mas eu queria que a gente se encontrasse de novo, sabe? Só pra botar um pouco de graxa nas engrenagens. Eu tenho passado bem, ando fazendo as coisas que tanto gosto. Fiquei lembrando outro dia das artes que a gente já fez. A gente na minha antiga casa de praia... Todo mundo na varanda cantando. Aquilo sim que era diversão! As conversas sem fim que a gente tinha... E falávamos sobre o universo. Era um falar doce sobre o mundo. Como se a gente pudesse discutir sobre o infinito, ver a transparência nas coisas. Era tudo muito simples. Naquele tempo a gente tinha muito mais em comum, eu acho. Sabe, eu andei pensando. A vida é muito longa né? Tão sem começo nem fim. Sem meio, nem direção. A gente via as mesmas coisas na escola, discutia sobre trabalhos, vivia com as mesmas meninas. Então, era tudo muito igual. Mas aí, acho que as coisas foram passando. Cada um foi pro seu canto, cada um foi estudar uma coisa. E a gente se viu nesse meio de tudo, nós dois. Os assuntos começaram a ficar mais distantes, as palavras já não eram mais as mesmas. As pessoas foram surgindo, crescendo. Por outro lado, sempre tem aqueles que desaparecem. Eu admito que fiquei muito feliz porque certas pessoas sumiram do mapa. Tem gente que marca tão fundo nossa alma, que machuca tão forte nosso coração, que a gente não quer encontrar nunca mais na nossa vida. Claro que esse não é seu caso! Aliás... É muito por causa disso que eu to te escrevendo. Porque eu acho que a gente acabou se afastando. E foi a vida que fez isso com a gente. E eu decidi que isso não é o que eu quero. Eu quero continuar perto, quero continuar falando as mesmas besteiras, quero falar sobre a vida e sobre o mundo. Como sempre falamos. E isso é muito fácil de resolver. A gente marca um barzinho agora, senta com a galera e começa a dar boas risadas. Simples assim! Já pensou? E, ainda por cima agora que a gente trabalha, o mundo fica muito mais fácil. Vem todo o pessoal, a gente bebe alguma coisa, ou vai pra algum lugar. A vida pode ser feita de fases. Pode mesmo. Algumas dessas fases unem ou afastam as pessoas. O mundo gira sem fim. Eu, você, todos nós, vamos morrer enquanto as mesmas ondas vão continuar batendo nas mesmas rochas. Todo o tempo que passamos aqui, tudo o que fizemos, não vai passar disso. Uma água qualquer numa praia qualquer (talvez na minha antiga casa de praia) vai continuar lá. E nós vamos apodrecer debaixo da terra. Então, por que não aproveitamos? Por que não fazemos alguma coisa fantástica? Eu acho que, por fora, podemos até ter mudado. Mas aquilo que define as pessoas não muda. Quem somos, do que somos feitos, nunca vai mudar. Por isso que a gente não pode deixar de se ver. Porque seria um desperdício estúpido na minha vida abrir mão de você. É uma falta de razão estupenda. Você me conhece muito bem. Aquele carnaval... Acho que faz uns quatro anos. Você contou sobre uns momentos legais na frente de todo mundo. Mas depois que tudo aquilo passou, a gente sentou, pegou uma cerveja, e você me contou de verdade qual tinha sido o seu melhor momento. Você abriu ali o jogo pra mim. E eu fiquei super impressionado. Você interpretou muito bem na frente das pessoas. Até me fez acreditar que aquilo que você tinha contado pra todo mundo tinha sido o seu melhor. Mas pra mim... Pra mim veio o privilégio de saber mesmo quem é você. Eu sei quem você é! Eu te conheço, te sinto, te entendo. E, se sei sobre tudo isso, por que vou te deixar sumir assim tão fácil? E eu não to te cobrando nada. De verdade. Não acho que cobrar vai resolver qualquer coisa. Eu sei que você também tem as suas dificuldades, também tem seus momentos ruins. Eu sei que guarda muita mágoa. Poxa... Toda aquela história da sua família. É foda. Foda mesmo. Só espero que consiga superar tudo isso. Nós todos somos fortes, nós todos temos peito de aço. A vida nos prepara armadilhas enormes, nos faz sofrer sem fim. Mas é assim com todo mundo. A gente tem que conviver com isso, tem que aprender a lidar. Eu juro que não sei diretamente como você se sente. Se eu soubesse, eu seria você. Porque tem certas dores que a gente só sente quando é na pele mesmo. Quando a gente fecha os nossos olhos de noite. E, ali, sem ninguém pra falar nada, é que a dor vem mesmo. É bem naquela hora que o nosso peito aperta e a gente tem medo de continuar vivendo. Por isso, eu não to aqui pra cobrar nada. Eu sei que a sua fase na vida tá te apertando. Mas também sei que você é muito forte. Uma das pessoas mais fortes que eu conheço. E que, por isso, vai conseguir passar por tudo isso sem se perder. Eu sei que você tem pulso firme, que sabe lidar com o circo que virou nossas vidas. Eu nem queria falar sobre essas coisas fortes. Só entrei nesse assunto pra te mostrar que eu não vim aqui bater cartão pra te cobrar porque não saiu comigo nos últimos meses. Não mesmo. A gente é amigo, porra. Por que eu te cobraria? Eu to aqui pra te fazer um novo convite. To aqui pra te dizer que eu to com saudades. Enfim... Era mais ou menos isso que eu queria te falar. O que você acha da quinta-feira da semana que vem? Aquele bar lá perto da minha casa. Me avisa quando for melhor pra você e a gente acerta a data. Se cuida, cara, por favor.

Abração,

Caio

29/07/2012

quarta-feira, 25 de julho de 2012

A independência dos sonhos


Os sonhos não foram feitos para se tornarem realidade.
Eles são uma realidade diversa.
Não importa o que fazemos: se jogamos eles num canto da sala,
se levamos eles ao limite, se batalhamos cada dia.

Eles vão continuar existindo.
Estão, ao mesmo tempo, dentro e fora de nós.
Podemos preencher-nos com nossos sonhos
ou permanecer vazios.

Os sonhos são o nosso estofo.
São eles que dão forma ao nosso corpo, à nossa alma.
É como o algodão que vive nas entranhas
dos bichos de pelúcia.

Os sonhos não podem ser tocados diretamente,
não podem ser medidos, não podem ser calculados.
São a medida mais perfeita do caos.
Mesmo assim, geram harmonia em nossas vidas.

Ignorá-los é como ignorar uma perna
e decidir deixar de andar.
É possível viver sem eles.
Eles também podem viver muito bem sem nós.

Podemos sufocá-los, colocá-los em pequenos frascos de vidro,
guardá-los na estante mais alta do armário de nossa personalidade,
moê-los em pó e jogá-los ao mar, cortá-los em pequenas rodelas...
Podemos até engoli-los. Mas não podemos destruí-los por completo.

Em outra dimensão, talvez nas estrelas, talvez fora da Via Láctea,
eles ainda vão pulsar. Continuarão existindo.
É impossível matar um sonho.
Um sonho só morre quando quem o sonha também deixa de viver.

Isso quer dizer que há dois tipos de suícidio possíveis:
ou matamos a carne e esvaímos o sonho
ou matamos o sonho e secamos a carne.
Ambos independentes, porém indissociáveis.

Toda mente sonha. É inegável.
E os sonhos são altamente flexíveis.
Podem ser permeados de dragões, monstros, magos e selvas.
Ou podem ser completamente objetivos e cheios de cifras.

Eles são o reflexo mais direto da personalidade de um indivíduo.
Com o que sonhamos? Com nós mesmos.
Sonhamos com o nosso futuro, com a nossa paz,
com a nossa meta final.

Viver é ter como meta atingir o sonho.
E o sonho é a parte da utopia que está mais perto de nós.
O sonho nos une, nos conforta,
nos cria desde a infância.

Nós também criamos nossos sonhos.
Damos crença, fé e apoio desde o nascimento.
Desde o dia em que pensamos nossa primeira ideia,
já estamos sonhando.

Cada sonho é único. Não há, no mundo inteiro, dois sonhos idênticos.
Cada mente, cada ser, cada indivíduo vislumbra as estrelas de um modo diferente.
E sonhar é ver que somos feitos de estrelas,
é o ato de juntar a carne com a imensidão.

Não basta apenas deixar o sonho próximo.
É preciso nutri-lo, alimentá-lo. Dar-lhe esperanças.
O sonho também deve ter com o que se alegrar.
Ele deve manter-se forte.

E toda vez que deitamos nossa cabeça e fechamos os olhos,
entramos no outro mundo para encontrar os sonhos.
E eles se deitam, também, entrando em nosso mundo.
Por trás das pálpebras fechadas, encontram as pessoas.

Caio Mello
25/07/2012

terça-feira, 24 de julho de 2012

O relógio que não sabia contar as horas


E das suas engrenagens
vinha presto todo o tempo
dotado de grandes peças.
Era um rugir bem distante,

como se o mundo-relógio
fosse contar-lhe os segredos
debaixo do bater pinos.
Rudimentar mecanismo

girava bem calculado.
Passo bem antes de passo.
Perna bem antes de perna.
Ferro bem antes de ferro.

Ele, mero espectador,
não sabia o que dizer.
Não sabia o que vestia
e nem como se portava.

Bastava colocar óleo
diariamente nos olhos
e mantê-los bem abertos.
O espetáculo da vida

rodopiava depressa.
Não podia perder tempo,
nem mesmo piscar os olhos.
Cada pino, cada peça,

cada prega, cada válvula
durava bem um minuto,
depois vinha imensidão
que levava tudo embora.

Dava corda toda noite.
Dava verso todo dia.
Dava aço pele dura
Dava pluma pela sede.

Não podia fazer contas.
Batia pinos sem números
e vezes sem seus tamanhos,
tão perdido quanto cobre.

E girava sem sentido
a bater feito ponteiro
nesse tão grande relógio
que nunca soube das horas,

mas sempre pôde contar
num cálculo bem preciso,
o bater e o badalar,
o destino das pessoas.

Caio Mello
24/07/2012

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Pedidos por carta


Que o mundo seja feito de belezas.
Que a vida seja leve e o dia, um regozijo.
Que o querer bem seja o bem-querer.
Que a falta de vontade seja efêmera.

Que os corpos se enlacem serenamente no fim de tarde.
Que o frio aproxime os corpos.
Que o calor extirpa as roupas dos corpos.
Que a solidão morra só.

Que as caixas de chocolate se multipliquem
Que as dores no corpo doam em si mesmas.
Que as dores da alma deixem o mundo.
Que as cicratizes esmoreçam.

Que os olhos busquem as vistas e os soslaios.
Que os papéis sejam pequenos barcos.
Que os cargueiros encham-se de rosas.
Que as rosas se multipliquem pelos campos.

Que o silêncio só anuncie-se quando for necessário.
Que a aurora seja ao meio dia e às seis horas da tarde.
Que as vistas matenhma-se abertas.
Que as mãos não se desenlacem.

Que o bem vença o mal.
Que os olhos encham-se de lágrimas.
Que as lágrimas formem um oceano!
Que a água salgada contenha boas memórias.

Que as memórias não se percam em nossas carnes.
Que as carnes nunca deixem a vida.
Que a vida nunca deixe as carnes.
Que a conjunção carnal seja um toque de divindade no mundo real.

Que o terceiro tom do despontar da manhã seja dourado.
Que a quinta estrela do Cruzeiro do Sul seja ainda mais brilhante a partir de hoje.
Que o céu inteiro ilumine-se eternamente.
Que a lua carregue um semblante de paz.

Que os guerreiros lutem pelo fim das armas.
Que as armas fiquem roucas e percam os dentes.
Que as balas amoleçam e percam a capacidade de perfurar a carne.
Que os ferimentos curem-se muito depressa.

Que os médicos tornem-se Midas da saúde.
Que os engenheiros construam sensações.
Que os arquitetos desenhem nossa alma.
Que os juízes decidam pela justiça.

Que os poetas continuem em contato com os cosmos.
Que a Via Láctea continue sempre infinita.
Que a eternidade seja resumida num só beijo.
Que o beijo dure menos de um segundo.

Que a vontade não se perca frente às obrigações.
Que a loucura revele nosso lado mais meigo.
Que as flores continuem em busca de mais cores.
Que as abelhas fabriquem mel de paixão.

Que os relógios desistam de calcular futilmente o tempo.
Que o bater das horas seja impenetrável, indizível.
Que os dias transcorram na mais perfeita insensatez.
Que as noites sempre sejam divididas a dois.

Que a união impeça que um casal se separe.
Que a ficção ganhe vida no mundo.
Que o mundo ganhe vida na ficção.
Que os sonhos sejam um mundo mais real do que o nosso.

Que possamos ver, nas estrelas, uma parte de nós mesmos.
Que os astros nos guiem pela viagem na imensidão.
Que a vida seja um abraço.
Que o afago seja uma continuidade da palma de nossas mãos.

Que as crianças finalmente ensinem os adultos a viver.
Que os adultos sejam humildes para escutar.
Que os desejos mais íntimos não sejam sufocados.
Que a liberdade impere no globo.

Que os devaneios sejam tidos como expressões.
Que o pequeno seja grande, com vistas para o intangível.
Que o avesso do verso seja o dorso de um animal.
Que a serenidade cure a pele.

Que o corpo saiba se regenerar das batalhas.
Que a dor encrustada no peito vaze como a água com detergente.
Que as mais diversas cores dominem o mundo.
Que o mundo seja fraco demais para impedir essa invasão.

Que a pele rejuvenesça.
Que os idosos tenham a chance de começar de novo.
Que a verdade seja a musa nua dos olhos do artista.
Que a Arte seja genuína.

Que a rotina seja mais genuína.
Que a reflexão abra caminho em nossos músculos.
Que o coração não dê nem mesmo sequer uma batida sem propósito.
Que o propósito constante de um coração seja de amar incondicionalmente.

Que sejamos certos de nós mesmos.
Que nós tenhamos a certeza da chuva na terceira quinta-feira do mês.
Que o mês tenha sete fins de semana.
Que a dedicação diária ao engenho seja voltada à conquista incessante da alegria.

Que se busque, no ócio do trabalho, a labuta da arte.
Que o deslumbramento nunca caia no esquecimento.
Que os ossos deixem de ser tão duros e tão enferrujados.
Que os olhos não se cansem nunca de ver.

Que o mar continue sempre imenso, com a onda necessária.
Que percebamos a importância dos nossos detalhes.
Que todos saibam se desapegar de necessidades desnecessárias.
Que possamos viver a vida sem ter de comprá-la.

Que os pedidos sejam atendidos por corações infindáveis.
Que os versos cresçam, multipliquem-se.
Que este poema nunca tenha fim,
crescendo a cada sonho adicionado por uma nuvem sem fim de sonhos libertos.

Caio Mello
18/07/2012

terça-feira, 17 de julho de 2012

Aperto


O poema sufocado
não consegue sair de seu quarto.
Fica preso entre a estante de livros
e a cama.

A janela possui grades.
(furtos, roubos, assassinatos)
A porta permanece fechada.
Fotos de crianças fantasiadas na mesa.

Os móveis de madeira antiga.
O dia ainda persiste, nem as estrelas do teto podem brilhar.
O lençol da cama muito bem estendido
soslaia o poema.

Um copo de água pela metade permanece na mesa de cabeceira.
Raquetes de tênis dentro do armário.
O poema solta um espirro.
Canetas num copo de plástico.

O travesseiro por debaixo da coberta.
A pilha de camisetas dentro do armário.

Tudo numa pequena bola vidro.
Ela tem, em seu ventre, água e neve.
O poema não respira lá dentro.

Caio Mello
17/07/2012

domingo, 15 de julho de 2012

Saudoso


A mente perdida
Não sabe onde ir
Vivendo outra vida
Começando o fim
Máscara de plástico
Confetes de leite
Presa entre janelas

Como se tudo que visse fosse noite
porque o dia se passa sem percepção;
num cálcuro errado de se ganhar
ao mesmo tempo que se perde.

São tristes figuras
Que cobrem os olhos
Que cegam as vistas
E o corpo se nega
A seguir em frente
A manter o ritmo
Diz ele sinto muito, mas tua jornada está nos levando para meandros diversos daqueles combinados. Dize-me: o que fazes? Para quem lutas?Para quando lutas? És teu presente tangível ou teu futuro ignoto? Serás a mesma pessoa, então?

A mente não sabe a resposta.

Permanece oblíqua
Enquanto seu corpo
Vai perdendo forças
Desfaz-se por dentro
Falha novamente
Querendo provar
Que o seu maior erro
Foi acertar tudo

Quem sabe?
Quem sabe um dia voltamos para o circo?
Quem sabe o palhaço nos fará rir?
Com as bochechas pintadas e o nariz vermelho,
arrancará o ar mofado de dentro dos nossos pulmões
e, talvez, nos fará felizes.
A sanfona tocará rente aos nossos ouvidos
e ouviremos as músicas mais simples e mais doces
enquanto veremos os leões fazendo acrobacias.
E a trapezista será como um anjo, lá no alto
a nos agraciar com seu show.

Mas enquanto isso
Nesse fim de tarde
Iremos dormir
E o sonho, de noite,
Será sobre máquinas

Caio Mello
15/07/2012