sábado, 26 de março de 2011

Imensidão

Toda a praça estava cheia. Pessoas e mais pessoas a se perder de vista. Um povo inteiro, unido, coeso, forte. Bandeiras dançavam ao sabor do vento, crianças voavam no ombro de seus pais, rostos surgiam no meio da multidão. Todos ali, juntos. Prontos para ouvir. Serenos, como se a tarde fresca fosse um momento único numa vida inteira. Impressionante era o silêncio respeitoso que se abria naquele momento. Era uma orquestra completa aguardando ser regida.
Ele subiu no palanque. Tal qual maestro, levantou os braços com as palmas voltadas para si. Seu rosto tinha um semblante de prece, serenidade contemplativa. Ele começou:

Queridos, venho aqui dizer-lhes algos que vocês já sabem. Não trago nada novo para seus ouvidos. Já estamos juntos há muto tempo, e desde muito já sabem vocês minhas motivações. Mas o que venho pedindo e fomentando em vocês está ainda recôndito e precisa ser libertado. Eu procurei atingir em cada um essa transformação simples, porém paulatina, de abertura. O que eu trago é uma mensagem de liberdade. Somos presos por nós mesmos. Não procurem em falhas a libertação. Não procurem em lutas, nem em discursos demagógicos, nem em seus maiores medos. Vocês têm de entender a realidade como um todo coeso. Vejam como as coisas se montam em teias, em tecidos suaves que buscam a maciez. Observem o mundo. E mais: deixem-se ser observados. Só assim serão livres. O que mais limita a personalidade das pessoas é o medo. Medo de errar. Medo de perder. Medo de chorar. Mas todos choram, todos sofrem. Além disso está a capacidade de reerguer-se. Está o poder de seguir em frente mesmo com tantas adversidades. Lutem contra o medo. O medo, aliás, não fomenta somente a inércia. Ele também inibe a criação. Por favor, criem. Preciso de vocês, preciso que criem, preciso que sejam livres. O que existe dentro de nós é lindo, mas pode se perder pelo próprio raciocínio. Não pensem que são pouco. Sonhem, sonhem muito, sonhem todas as noites, sonhem durante o dia, sonhem durante o trabalho, durante o banho, durante o sexo. Lembrem-se das estrelas! Somos feitos de estrelas, de imensidão. O nosso sonho não tem fim, nossa vontade só é inibida por nós mesmos. Não se esqueçam que a liberdade não tem limites, ela volta-se para tudo e para todos. Liberdade não significa oprimir a vontade alheia para impor a sua própria. Longe disso, a liberdade mostra-nos a capacidade de sermos juntos e ao mesmo tempo. Somos livres entre nós, somos diferentes e aceitamos isso. Unidos seremos mais. Agora, há um detalhe que precisa ser ressaltado nesse momento: cuidado com o que desejam. Há certos momentos que exigem menos infinito. Limites precisam ser impostos para que não se perca a objetividade da vida. Quando as coisas começam a se unir, como um bloco homogêneo, cujo raciocínio diverge muito do mundo real, quer dizer que estamos abstraindo demais. Não fujam do mundo, não é isso que lhes peço. Pensem no mundo, vivam o mundo, respirem o mundo. Sejam terra, água, lágrimas e desejos. Entortem as coisas com seus desejos, mostrem à realidade a fraqueza da física, construam paralelismos e analogias antes impossíves de serem vistas. O intangível é a nossa meta. O que não se pode ver é o que precisa ser visto. Vejamos.

Caio Mello
26/03/2011

Bares, rodas e palavras

A intangibilidade semântica dos costumes.
Nós, eles e todos.
Regras falhas de descoesão que nos juntam
subjugam e não fazem valer.

As palavras.
Que têm elas por dentro?
Talvez nada,
talvez mero jogo de símbolos num nãodizer maior.

Eu não digo nada.
É tudo um jogo, simples jogo.
E tudo fica só fachada
indo de porta cada em cada.

Homencaco pedaço de vidro
homemacaco dançando
ao som do tamborim
assim assim assim.

Não sabe quem ele é
nem de onde vem
nem pra onde vai.
Sorrir sabe bem.

Sorri, faz gestos,
agrada o povo
todo mundo aplaude
e joga moedas.

E o Oceano sempre
a nos olhar, sério.
Costa ébria manchada
de fundo negro. Pré e pós.

Norte sul a lesto oeste
tudo a mesma peste
vontade de ser
e deixar sendo.

No coração talvez um vazio
um não sei o que
que vem não sei de onde
que me acorda no meio da noite.

Já não durmo mais.
Não há como dormir.
Na rua, pleno domigo,
serras e caminhões.

Barulho metálico
e piadas na frente do bar.
Algumas crianças chutam bolas rasgadas
na lataria de meu carro.

Eu finjo não ver
elas fingem inocência.
Querem transgredir.
Querem fazer palavras novas.

E me provam que aqui não se diz nada
não se ouve nada
e tudo se mistura.
O lirismo das coisas mistas.

E meu coração arde-me o dia inteiro
não penso não penso não penso
fico num bolha finestra
olhando o povo passar. Passo também, percebo.

Sinto-me mutante, desnecessário,
afogado em algum líquido
que me parece muito
com o ar.

Respiro. Respiro? Acredito que sim.
Uma buzina rasga o céu.
O laranja vai regredindo,
sobra um breu. Sobro eu.

As palavras começam a me negar
significados.
As cores começam e se misturar
com as coisas.

Perco-me na realidade numa velocidade
impressionante.
Preocupo-me com o grau de descoesão
que estou atingindo.

Estou chegando a deslimites perigosos.
Seria condição minha?
Seria condição social?
Nasci descoeso ou tornei-me descoeso?

Não encontro mais respostas
tudo o que me vem
são milhões de perguntas
e uma maior que todas.

Uma que me explode
que me devora
que, se elucidada,
talvez não faria tanta diferença.

Muita coisa faz diferença,
mas hoje fica difícil de ver.
Talvez amanhã.
Talvez amanhã as palavras voltem a ser como antes.

Por enquanto,
segue o desmontado desleixo.

Caio Mello
26/03/2011

Numiver

Estou preso num buraco, nesse buraco bem fundo. Estou ficando já parco esquecendo-me do mundo. Mas não foi a culpa minha nem foi erro de pensar. Esse furo aqui não tinha até a semana passar. Mas tempo mesmo não passa parece tudo pra trás sinto que a cabeça amassa, coisa que me dói demais. Mas até que tem muita coisa pra fazer, sabe... Um buraco não é lá tão ruim assim... Tem musgo, escuridão, eco. Eco é divertido, você fala e volta pro ouvido. Fala volta folta vala. Mas eu queria mesmo era encontrar alguém logo de uma vez. Já faz quanto tempo que estou aqui? Só vejo dia ir e dia voltar. O relógio marca horas, mas e daí? Sempre parece que nem me movi.

E se eu pudesse voar?
Imagina, sair pelo céu
que tristemente vejo daqui
todos os dias
sem nunca conseguir tocá-lo.

Mas será que se toca o céu?
Ele tem gosto?
Ele tem carinho?
Por que me deixou aqui então?

Calma, você tá ficando louco. Como assim sair voando? Esse buraco tá começando a afetar o que eu penso... As pessoas nunca voaram e nunca voarão. Mas será que não voam porque não querem? Será que elas mesmas limitam alguma coisa dentro de si e acabam ficando no chão? Puta merda, esse buraco tá mesmo me fazendo mal...

Mal bem bem mal
tanto faz.
Só tem eu aqui mesmo.
Posso ficar pelado,

gritar, xingar a mãe do meu vizinho pentelho
ir, voltar, mudar meu nome.
E passar fome.

Aliás, que fome.
Voar dá fome, verdade.
Ahn?

...

Voar, sim, aceitarei os fatos. Se a lógica me proíbe, há outros raciocínios que me expandem a pensar. Benpensar. Autopensar. Pensar talvez com meus próprios dizeres, minhas palavras recém construídas. Talvez através delas eu tenha mais liberdade com as coisas. Sim.

Decidi que voar, pra mim,
vai se chamar Numiver.

Quero numiver... Eu numivo.
Numiver miver nu mi ver er vuminer.

Numiver. Numiver.

Vai, esquece das coisas. Essas coisas que você levou a vida inteira e que fazem parte de você agora. Triste sina que você se fez, hein? Poxa, fica se prendendo em conceitos antigos e não consegue nem sair daqui. Tudo bem, foi antes uma fatalidade do que um erro, mas a vida é feita dessas coisa e você não pode se deixar abater por essas etupidezes que se encontram daí afrente. Poxa. Aliás, cazzo. Pega mais pesado, porra.

Numiver numiver numiver.

Eu acho que vou – não fale.
Ah. O... Seu... Mas...

Poxa, estou voando.

Caio Mello
26/03/2011

Ferro

Era um trem poderoso, forte trem
Seguia rumo mesmo sem bitola
Atravessava voando infinito
Força de vontade carvão laranja

Deixava atrás de si caminho escrito
Correndo tudo como quem esbanja
Mas sabendo bem como se controla
A levar mais de cem sem ver a quem

Sempre de tarde era roxo o céu
Ele parava em nuvens pelos cantos
Tirando graça de todos os santos
Escrevendo em roxo no zulpapel

Tirava montanhas de suas bases
Crescia arbusto num olho piscante
Desmontava-se, voava mais longe
Chegava à metafísica das peças

Estava mesmo sem saber aonde
Vivia frenesi, viagem presta
Risco traço verde desenho errante
Passando pelas sentimentais fases

Pessoas sentadas olhos-janelas
Todas alegres, tristes e complexas
essa aqui melhor, essa já não essa
Levava sempre todas, todas elas

E desse destino, quem é que sabe?
Só uma parada no fim da tarde.
É porque desse trem só sabem poucos
Sabem cegos, santos e também loucos.

Caio Mello
26/03/2011

quarta-feira, 23 de março de 2011

Estúdio

Entro no estúdio e fecho a porta atrás de mim. Silêncio. Montanhas de coisas amontoam-se pelo cômodo. Casacos peludos, espadas afiadas, martelos, serras, uma cadeira quebrada ao canto. Vários frascos coloridos numa estante. Um cenário em miniatura ao fundo, uma luz incidindo sobre a cena. O teto, pintado de preto, brilha com suas estrelas. E a Lua bem no meio. Sento-me na mesinha noutro canto da sala. Um copo vazio me encara. Desvio. Levanto-me como se tivesse pressa, busco as chaves em meu bolso e abro um armário. Lá, palavras. Uma pontiaguda, outra ácida, outra laranja, mais uma jovial. Uma montanha desorganizada de palavras. O que fazer? Perco o equilíbrio, caindo sobre elas. Espalham-se rapidamente pelo chão. Que confusão.

ANFIURBE PATO DEDO
PENTASSÍLABO DESEJO VIOLÃO PSEUDO
NÓS MENINO...

Na parede, um letreiro de neon faz piscar em luzes verdes SOCIOVIDAR ininterruptamente. Sento-me novamente. Tantas palavras assim, todas me encarando... Coisa demais para um homem só. O que escrever?
Debruço-me sobre a régua métrica. Eu desejo sempre Desejo vontade A força de vida A necessidade ade empre... Empre? Emperrou a métrica. Essa palavra não cabe aqui. Quero serrá-la para ver como fica. A velha serra guarda-se quieta na parede oposta. Não parece muito animada para cortar qualquer coisa. Sua ferrugem expõe-lhe dores antigas. Minhas dores oxidaram minha serra. Sofreu ela por mim... Enfim. Vou até ela. Volto para a mesa. Vejamos... Emperrar. Emp. Errar. Errar fica legal, aparece outra palavra. Vou cortar Vejamos também. Vej. Amos. Vejemp Erramos. Erramos ficou muito bom, simples e construtivo. Mas voltei para uma palavra comum. Melhor procurar outra coisa.
Abro a geladeira dos radicais. Sub Supra Infra Inter Hiper Hipo... Hipoerrar. Parece uma doença. Do tipo hipotireoidismo. Entrerramos? Parece enterramos. Que droga. Vou jogar os cortes no lixo. E se... O liquidificador brilha de leve no escuro. Liquidificar algumas palavras parece-me torná-las solúveis, aprazíveis a olhares distantes.
Vou usar GATO e BOBO.

GATO BOBO
A GTO OB BO
GABOBOTO
BBTGOOA
AOO
A

Não sobrou nada. Demorei demais para tirá-las de lá. Sobrou-me um A. A vida. A felicidade. A carro. A homem. A mar. Guardo algumas.
Mas eu queria mesmo era falar sobre um sentimento. Um aperto de peito que não me deixa, um sufocamento distante que me arde, como se fosse uma necessidade. É, antes de tudo, uma necessidade desesperada. Mas é uma vontade complexa também que não sabe nem mesmo definir a si mesma. Sim! Não sei se é um medo, ou um desejo... Mas está ali, ainda que me incomodando de soslaio, sem nunca querer me olhar de frente. Impede meu sono, vaza meu sangue e não sabe do que é feita. É uma necessidade, com certeza.
Bom, então vamos começar:

A vida simples
desamparo-me com meus erros
a vagar pelo aço
a correr pelo asfalto.

Sigo a esmo
sei que preciso
necessito de...

Mas do que eu necessito? Não faz o menor sentido! Não é por falta de palavras, isso com certeza não. Vejo um bilhão delas em meu estúdio, todas ainda em estado de pureza. Consigo dar-lhes mil significados, dependendo da cor, da dobra, do tamanho. Não são elas que me fazem falta. Sou eu. Não sei me explicar.
Olho-me no espelho. Ele não me diz nada. Ali estou eu apenas. Preparo um café bem forte. Sem açúcar. Ele não me diz nada. Sento na cadeira mais uma vez, olho um prato vazio. Ele não me diz nada.

SOCIOVIDAR

A luz verde bate em meu rosto. Ele não me diz nada. Deixo o café pela metade ainda quente na mesa. Ele não me diz nada. Deito a cabeça, apoiando-me em meus braços. Durmo, finalmente. Em uma terra metafísica, há o imortal. Ele me diz tudo. Salta, voa, é forte. É paradoxal, imenso. Ele me diz tudo.

Caio Mello
23/03/2011

domingo, 20 de março de 2011

Feri da

Um mar negro de montanhas
Corte curto muito longo
Cantando coisas estranhas
Bem antes do Cocobongo

Mongo mongo congo coco
Forte gancho de direita
Eu sei eu sei que sou pouco
A rua pra mim estreita

As estrelas as estrelas me olham
me veem me chamam me cospem me desejam
me dizem que é mentira me dizem
que é
errado e eu acho verdade.

Verdado verdida perdade
Verdado verdido parde
Ver do ver do par
Ver o par

E se me soubesse essa escuridão
Vai saber eu seria mais feliz
Mas me falta voz nessa rouquidão
Num erro errado que fui eu que fiz


Eu

Meu

Soueupomeu
Soupoeu eu po
Pulsa pulsa pulsa bate ba
Te com vontade dentro da caixa

Caixa preta com vontade
Câmara escura
Secreta recôndita desnecessária
Teatro de fim de semana e o lirismo

Ai mas que saudades
Desse meu lirismo
Ai demais saudades
Menominomismo

Que pergunta?
Que se cheira?
Eu que faço
Ou tu fazes?

Tu faz. Tu fez.
Tusfazes tusfizestes
Esses dois ésses
Eu mais tu e nós esses

E eu não sei
O que vai acontecer
Se soubesse não seria vida
Não não não não não

Ainda bem que não sei

Ainda

Caio Mello
20/03/2011

sábado, 19 de março de 2011

Carolina II

Carolina sentou-se na grama. Era uma tarde ensolarada. As pernas finas cruzadas debaixo das meias longas, brancas e sujas de terra. Os sapatos pretos brilhavam junto com o sol. Era um calor gostoso, daqueles que não ardem na pele, que esquenta e deixa uma vontade absurda de ficar o resto da vida ali. Ela brincava com pedras e gravetos, tentando montar uma estrutura delicada. Ainda não havia conseguido manter tudo de pé por muito tempo. Montava, desmontava, construía, fazia buracos na terra. Uma fileira de formigas passava ao seu lado, carregando folhas verdes como estandartes. O verde balançava, tremulando numa velocidade feroz na sua pequenez de inseto. Ela inclinou um pouco a cabeça e começou a encarar a estrutura...
E se eu puxasse esse graveto mais pra cá? Será que o príncipe ia conseguir dormir com o barulho da fonte ali perto da sua janela? Descimentava desejos em forma de grãos. Ruborizava o tapete de entrada, estendia o longo vestido da princesa. Sorria as paredes, trabalhandava os detalhes e seus habitantes. Habitava. Bitava. Dava vida ao som. Sussurrava aos seus dizeres as vontades secretas de um inimigo distante. Cânticos ermitões brilhavam em verde e rosa ao sul do descampado. Os olhinhos recém-erigidos na gloriosidade real explodiam a janela e procuravam as cores.

Será que era guerra?
Um dia de paz?
Correntes cantavam
tritezas mofadas.

Era tudo bem,
O cimentoforte
cimentofortava
antes de seu tempo.

A terra volvia
verdava num canto,
gritava, rugia
e causava espanto.

Ento mento ninto
dessacarilar.
De sangue, san tinto
tudo a se pensar.

Tudo bem: paz ainda estava feita.
Príncipe conhecia a arte da guerra
não deixava sangue manchar sua terra.
A ponderação foi por ele eleita.

E deixava cantar os ermitões,
e deixava correr todas as crianças
e deixava ser todas esperanças
e deixava cantar todas as canções.

Pois comandava sempre com justiça.
Sempre ouvia todos seus moradores,
errava só por ser carne também.

Fazia dos acertos grande lista,
conversando com grandes pensadores.
Carolina, vem almoçar meu bem!

O reino imensava pela montanha que o guardava na barriga. Prosperava, crescia, reinava todo pelo mundo afora. Aliás, que mundo? Terra toda, toda terra, tanto faz quem berra, quem erra. O que importava era a terra. Era como se o castelo fosse uma ilha. Vem almoçar, minha filha! Isolada no meio do oceano infinito, sem nunca mais ter que... Carol! Carol! Me ouve, menina.
Carolina largou os gravetos no chão. O sol agora estava um pouco mais inclinado já. Era domingo. Nos domingos, eles almoçavam sempre mais tarde. As janelas da casa refletiam os olhos da menina. Ela sorria. A mãe ajudou-a a levantar-se, bateu no vestido para tirar o grosso da terra. As duas foram de mãos dadas até a porta de casa.

Caio Mello
19/03/2011

domingo, 13 de março de 2011

Sagaz

Sejamos francos
o mundo é grande demais
e hoje meus olhos pesam.

Estanquei
num detalhe fútil
e ficamos a olhar a parede.

Branca ela, branca ti.
Bancos vazios na praça.
Antes cheios,
hoje rodeados de embalagens vazias.

Enfaticamente deixei-me cair. Arastei-me pelo campo enorme, lutei contra o rosa e as bordas floridas. Cascatas de cachos choviam um perfume suave. Enfureci-me. Minha pele ardia em raiva. Explodia em meu peito mais um momento. Mento mento minto sinto sento. Sento. Deito, exaurido. Os dedos cravados na pele. A pele cravada na terra. A terra cheia de cravos. E o rosa ainda a me espreitar.

Vindas de volta aos meus olhos,
imagens entorpecidas
de pesadelos antigos
ainda têm que dizer.

Com certeza vou ouvi-los
achar nota que me diz.
Seja dez, seja sol, lá...
Não faz menor diferença.

Esse quadro engraçado
fica no canto.
Harmonia simples
com diálogo em latim.

O canto.
Em lá menor.
Onde ficam os esquecidos,
bem longe do meio.

Canto? Quina.
Pranto? Sina.
Quanto? Sempre.

De volta a algo incômodo.
Melhor estar incomodado
do que ser comodista.

Mas meu sentimento,
na verdade,
advém de minha necessidade de mudar
e da minha incapacidade de agir.

Haja detalhes! Quantos!
Microesferas de quotidiano
simpressionando-me
como uma caixa cheia de tachinhas
carentes de lousas
e de crianças frenéticas.

Eu larguei
muitos desejos
no lago das mentiras.
(e não fui mais real que isso?)

Montanhas recém criadas esparramam-se ao longo do vale. O rosa desvirado, jogado para cima, deixado para baixo. O ventilador soprando seus segredos sem muita pressa. Meus braços prostrados montam caminhos. Imagens simples atravessam meus olhos sem me dar muito tempo de vê-las. São jogos rápidos de cheiros, desejos, lembranças. O presente é um eterno quase-futuro. Delicio-me com a sagacidade ácida da vida.

Por enquanto, só quero dormir.

Caio Mello
13/03/2010

Planos

O tempo todo
todo o tempo.
Um pano vermelho
estendido escondido no infinito.

Eu, você, ela,
meros nós curtos de linha.
O vento bate e balançamos
ao sabor do conjunto.

Mas há objetos maiores
que o tempo.
Nosso pano tremulante
não consegue manter em si
tudo que se diz real.

Então, objetos pontiagudos
atravessam nosso plano.
E deixam grandes buracos.

Amores, medos, angústias
possuem pontas afiadas
que atravessam o tecido
sem o menor problema.

Os rombos são grandes e irreparáveis.
A linearidade é ironia
tosca
na qual cremos por inércia intelectual.

A chuva cai lentamente no meu jardim. O gramado verde é fofo. Um pequeno feixe de sol abre-se furtivo num canto de nuvem. O chão expõe um pouco de sua terra em seus pequenos detalhes. O solo é plano. Nele, caem as gotas de chuva perpendicularmente. As gotas deixam leves buracos. Quebram a lógica, furam o tempo. E, no fim, alimentam o solo com sua água.

Rala-se queijo. O queijo ralado
atravessa o cortador afiado
saborosamente
quebrando a monotonia.

Um coração doce.
Pobre alma de gente sofrida.
Bate bate bate.
Morre em segundos
pela espada que o perfura
rompendo a reta
com amores imperfeitos.

O tempo ainda é pouco.
Se fosse muito,
não teria furos.
Não há vida que seja totalmente reta.

O tempo é feito de curvas,
meandros a serem descobertos.
E de furos
(estes necessitam de especial atenção).

Aquilo que foi ainda pode ser de novo.
O que é buraco não é tempo.
O buraco é tudo e se acabou.
É agora, ontem, amanhã.

Pode voltar a ser
quando menos esperamos.
Buracos são prestativos,
aumentam no calor noturno.

As descontinuidades
chocam as vidas.
É como a luz
que penetra os olhos.

Fura ela o que vemos.
Fura em nós,
fura em tecido
fora todos detalhes.

E somos luz também.
Uma desconstrução em nós mesmos,
o próprio buraco que criamos
somos também.

Buraco, cova, antro,
covil...
Não funcionam os nomes
que damos aos furos.
Qualquer nome rude
que se dê
não exporia ele com convicção
a magnitude de nossos furos.

A eles, porventura,
poderíamos chamar
de vida.

Caio Mello
12/03/2011

sexta-feira, 11 de março de 2011

Palavras

Queria eu pouco, bem pouco. Andava suavemente pelos caminhos abertos. Tons verdes brincavam em frente aos meus olhos. O amarelo também sorria de vez em quando. Vermelhava pouco. A terra, marrom. O chão simples, criado pelas coisas em construção. As coisas abriam-se em cadências de cortinas, era ferro, era aço, era terra, erro barro. Eu, lama. Simples argila montando meu sorriso com dedos atenciosos. Sofrera já. Sofrer todo mundo sofre. Uma simplicidade impressionante. O mundo, imenso e descabido, parecia simplesmente engraçado. Lembrava-me um sorriso de canto de boca, uma desmesura delicada que deliciava meus beiços. Na calada da noite, calava-me também. O frio gelava-me por dentro. Gélido, imperioso, deslimitado. Irrefreável. Que desespero. Rrrgh rrrgh rrrgh. Colocava casacos, queimava fogueiras, acendia minha alma. Mas ela não queria arder. Continuava ali. Quieta, resoluta, impassível. Uma alma sem ânimo. Meu paradoxo. Mas o mundo gira muito. Gira rápido, roda de cá pra lá, de lá pra cá, pa ma vá onde for. E continuou sendo. E eu fui também, talvez um pouco com a corrente, talvez de trás pra frente num lace de repente. E num estalar de dedos tudo muda. Mudo eu, quieto, muda tudo. Mas não foi em vão. Nem simples. Castelos enormes, impérios gigantescos, velhas carcaças. E a carcaça virou o Carcará. E ele voou no meu peito. As palavras dominaram minha vida, subjugaram o meu ser, devoraram minha vontade, ganharam meu quotidiano. Nem eu mesmo reparei como elas grudaram tão facilmente nas coisas. Parede. PUM! Palavra. Cimento. PAF! Palavra. Letras escorriam pelos ralos, vertiam com minha aguapia, choviam com garoa, sorriam como aqueles olhos. Foi tudo muito rápido, como um soco na boca do estômago, mas que deixa um gosto bom na boca. Uma falta de ar brusca e um parto incontrolável verborrágico. Mas era também uma verborragia positiva. Verbofalia. Verboloquacidadessã. E tudo fez sentido.

Caio Mello
11/03/2011