sábado, 26 de fevereiro de 2011

Cores

A imensidão da noite loucurava a vontade dos homens. Estrelas, branquinhas e redondas, sorriam seus dentes e seus olhos num bendizer amável. A terra parecia solta e desconexa. O chão tremia junto com meu peito. Meus ouvidos rangiam, chilreavam ao sabor do infinito. O gelo escorria pelo chão, desfazendo-se em água. Ardia também, ainda no horizonte distante, um sol que, brincalhão, teimava em não querer acordar. A simplicidade dos fatos em olhos de estátuas. O ferrasfalto contorcia-se, transformava-se num desejo. E era vontade. Simples ímpeto delirante. Não havia caminho. Eu, momentaneamente cego. Passos a esmo. Um um dois um dois um. Mais um passo, mais eu faço, mais eu peço, mais confesso. E as engrenagens metamofizaram-se em pássaros. A libertação dos escravos. Grilhões antigos de ferrugens reviradas. E eu via. Podia ver! Cores mil, brotando das frestas. Laranja, verde, azul, verrosa, macadâmia, anacoluto. Atônito, um um dois um dois um. Os olhos eram apenas dizeres distantes de piadas antigas. Eram homens sérios, muito sérios. E alguns corações partidos. Daqueles que partem para terras distantes, com medo de voltar e ver a flor ainda viva. De ver o bico ainda curvo. De ver em si o que não se via na pele. Mas os homens eram estátuas. As cores devoravam com facilidade a pedra. E não sobrava mais nada, mais ninguém. Era tudo uma grande sinergia colorida.

Caio Mello
27/02/2011

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Relato

20 de Fevereiro de 2011
Segundo posto avançado do terceiro batalhão

A Guerra segue rumo. Não há uma noite sequer que eu consiga dormir mais que quatro horas seguidas. O barulho das bombas, o silvo ríspido de balas: tudo me proíbe. Tenho sono, muito sono. As trincheiras me parecem hoje um mar de sangue, abarrotadas de corpos até o topo. Andar ali é como nadar num oceano de braços, pernas e lágrimas. Sinto-me louco. Perdido. Há dois meses que não tenho mais muito contato com qualquer outra pessoa, a não ser os que estão aqui comigo neste posto avançado. Vejo olhos do outro lado. E atiro neles. Simples. Eu, aqui, defendendo as terras da Alegria contra a invasão da Tristeza. Ouço dizer pelo rádio que três tropas da Solidão avançam também para as terras da Saudade. Sou mais um guerreiro só mais um em mil com tiro certeiro que sai do fuzil. Ver eu não consigo razão nisso aqui. Matei inimigos ou eu que morri? O Ódio tem canhões que queimam os corpos. Fogo em corações de guerreiros mortos. Saudade tem tanques de corpo de aço. Lembro-me de antes, atrás só um passo. Ninguém se matava, todos benvivendo. Hoje, cova rasa me espera morrendo. Deveria eu confiar tanto em Alegria? Estado-mor de defesa minha, com discursos enfaladores, gigantes provérbios de luta e pátria. Nospátria poderosa! Será mesmo? Malfadada aventura que vivo hoje. O que sobra de mim são esses sons. De noite, de dia, zumbidos. O açoite na fria, zumbidos. Zumbi dos meus sonhos, pesadelos. Me perco, meperco. Que seja Tristeza, então. Porque a certeza tenho não. E o fuzil me pesa nos braços. De dia fica mais difícil de matar. Eles olham de volta. Você, ali, de arma na mão. Quem ama arma arma ama? Mentira. Sofrer, isso sim. E, quando você dorme, eles voltam pra te matar também. O problema é que você continua vivo. Eles, pelo menos, podem ir para outro lugar. Você, não. Fica aqui, sofrendo. E de sofrendo vai o endo, vai doendo até não ter mais jeito. E, quando não tem mais jeito, você tem que continuar a matar. E quem sabe das altas políticas do palácios? O da Esplanada não explana nada. Tudo se mistura, num jogo de cores que desconheço. Hoje amo, amanhã odeio, depois sinto saudades. E os presidentes no dizem para atirar. Atirar. Tirar. E rangem os dentes. Acho que, logo menos, vou enlouquecer.

Sem mais,
Soldado João Alberto de Souza

(enviado ao repórter da rede Guerra de televisão)

Caio Mello
20/02/11

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Testemunho

Naquele momento, senti-me inspirado. O meu pensamento foi a todo lado. Viram-me cometas; viveram estrelas: com minha caneta eu consegui vê-las. Foi num forte jogo que criei as cores, vivas como fogo, com nome de flores. Infinito tudo, eu com deslimites soprava mais mundo num detalhe friste. E pom pom pom Terra. E pom pom pom mar. A carne que berra brotando no ar. Pouco e muito e nada! Ver doce azul. Cor pouca em cada, assim de norte a sul. E vush no vento. Um doce se toca. Parece acalento, amor que se frisa numa brisa leve de um sentir rebento nesse tocar breve. Ah! A simples vida. A mim, tão complexa. Em sequer querida, viva desconexa... Se, ao menos, soubessem. Mas eu fiz assim: erros vezes cem a nunca ter fim. Se fosse perfeito? Perderia a graça. Fazer grande feito qualquer um que faça. Eu sei que fiz mais. Eu fui além muito. São sentimentais acertos fortuitos. Ah, saudoso tempo presente que me arde o peito. Nostalgia de criar, construir novos sonhos enquanto ainda os crio hoje. Esses pequenos com sonhos tão grandes... Sonham como o pai. Sonham com o inatingível. E desejam com vontade. O caminho trilhado que ainda desbravo hoje. Sei que vou ter saudades do que eu nunca tive. Que coisa linda.

Caio Mello
17/02/2011

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Penitenciária

Atrás das barras de ferro, todos eles
eram pares de olhos alucinados
com um pouco de noite e um pouca de dia
a cada dia.

Esses olhos podiam ser vistos de fora da prisão,
todos brilhando como faróis a buscar a liberdade muro afora.
Comiam muito mal. Dormiam pior ainda.
Em minúsculas celas, os homens empoleiravam-se onde podiam.

A não ser os detentos de elite.
Os presos mais respeitados
eram quase nobres
tinham celulares, poder, mulheres e cicatrizes.

Mas em um aspecto
todos convergiam:
errar não podiam.
Um erro era a morte.
Mantinham-se quietos,
tensos e furtivos.
Drogavam-se para
poder se esquecer
e tremiam para
poder se lembrar.

Facas, vidros, estiletes, barras de ferro, pistolas,
seringas: nada faltava.
E a névoa da fumaça subia, num eterno torpor alienante.

Mas um dia deu-se um caso.

Um detento João-Ninguém-Roubei-A-Mando
acordou diferente naquela manhã.
Assustado, decidiu olhar-se no espelho.

Conteve seu choro.
Ninguém ver podia.
Uma aberração.
Pegou um boné,
tentando esconder.

Mas não tinha jeito, logo na primeira revista foi descoberto.
Um policial o encarou, sussurrando:

“Ora vejam só...
Tem esse demente
Um par de orelhas!
Orelhas de coelho!”

Tentou-se alcançar o médico do presídio,
mas ele estava sempre em sua hora de almoço.
Os chefes do tráfico reuniram-se com
os policiais para decidir o que fazer.
Decidiram arrancar-lhe as orelhas.

Com um facão cego
e um golpe abrupto
foram-se as orelhas
num banho de sangue.

O pobre homem não aguentou o sangramento
e morreu no mesmo dia. O caso foi dado como esquecido.

No mês seguinte, foi a vez de um dos líderes do tráfico.
Dessa vez, a mídia esteve presente, um médico
europeu foi contratado e o detento transferido
para São Paulo e, de lá, para o hospital Albert Einstein.

A cirurgia foi um sucesso.
Mas, no dia seguinte, os pontos recém feitos cederam lugar
para um novo par de orelhas.

E agora ele tinha um rabinho também.
Os médicos começaram uma quimioterapia.
Depois radioterapia. Acupuntura. Homeopatia. Reza.
E nenhum resultado.

Na penitenciária, os próximos cinco a ganharem orelhas
foram assassinados na tentativa de conter a moléstia.
Mas não tinha jeito.

Em dois meses, todos os detentos já tinham orelhas, rabos
e muitos começaram a se curvar para andar.
O líder do tráfico fugiu do Albert Einstein
e se jogou na frente de um carro, morrendo na hora.

O clima no presídio melhorou muito.
Os guardas não eram mais corruptos
não havia mais drogas
não havia mais armas.

Um novo detento levava, em média,
três meses até a transformação completa.
Ao fim do primeiro mês,
já não conseguiam formular uma frase direito.

A segurança estava ótima.
O médico fora trocado por um veterinário
que sequer saía para almoçar.

Além disso,
bastava alimentá-los com cenouras e comidas saudáveis,
fazer-lhes um afago ocasional
e limpar o cocô em forma de bolinha.

Caio Mello
11/01/2010

Hoje não posso

Não
não hoje
me desculpa
hoje não dá
só tenho silêncio
silêncio das palavras
neste dia faltam versos
faltam as letras em estúdio
o braço forte perante a vida
ainda descobri que sou o culpado
pois então por favor nem me peça
para montar a rima rica
e pintar o céu de rosa
para cantar o amor
me perdoe a ausência
mas não é sempre
que em mim nasce
o verso
seu.

Caio Mello
13/12/2009