segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

O Vidente

Era tudo uma grande mintchira!
I o céu rachô in dôis.
E nóis aqui di paspaio,
tentando achá o qué mió
nesse todo dôido qui só.

I us Infernu brotô
cas mão pra fora.
Us hómi todo
si borrando nas carça!

Escut`o queu digo!
É verdadi!
Essa vida aí que
vai levandu nóis pra frenti
é a meisma qui leva nóis
pra trááás! Pra trááás!

I us infernu vem pra terra!
I us internu vem pra terra!
Aleluia! Meus irmão!
Qui Deus seja louvadu!
Qui ele mi carregue desse brocotó tôdo,
não tá dandu mais...
Pelamor di Nossa Sinhora,
Mãe di Deus, nossu Sinhô.

Mi ouve!
Não passa retu!
Mi ouve!

É tudu erradu.
Tudu, tudu, tudu...

Caio Mello
20/12/2010

The American Song

Whad`ya wanna buy?
Ai, meu pai, não fica nesse entra e sai...
Wha`? So, ya wanna stay?
Ai, meu rei, fala assim não que eu nem sei...

Jus` tell me an straigh` answer, ok?
Não sei, já falei!
Oh, fuckin` Brazilians...

Caio Mello
20/12/2010

domingo, 12 de dezembro de 2010

Gruta

Seu corpo inteiro doía. Ele rastejava. A água fria parecia entrar-lhe na pele, silenciosamente devorando sua carne. Ele tremia. Perdia-se entre o que via e o que poderia ver. Sentia-se grudar em si mesmo, como se fosse uma pasta homogênea sob a silhueta de um ser vivo. A gruta era forrada por pedras pontiagudas. As pontas estavam em todo lugar: onde ele apoiava as mãos, onde apoiava os pés, onde rescostava-se, onde tentava freneticamente dormir. Ele só podia ver a saída no fim das pedras. No fundo, bem no horizonte, o oceano tocava o céu delicadamente. Mas ele não podia ir até lá.

Escrevera seu nome diversas vezes nas paredes.

João João
João João João
João Ninguém

João tinha vários pequenos cortes em seu corpo. Sua roupa esfarrapada mal conseguia cobrir o que o pudor esconde. Seu rosto não era muito vincado. Ali dentro não havia muito sol. Era um rosto amassado, mal construído, perdido na loucura de um homem solitário. Ele arfava.

Tentava se levantar.

Osso sobre osso

poço fundo poço

fosso sobre osso
poço fim colosso

Arquejava, envergava o corpo, grunhia e caía ao chão novamente.

De repente, ouviu alguém.
Estranho.
Não fazia sentido ter alguém ali. Não mesmo.

“João, João, o que procura?
Você, nessa gruta tão escura.
João-menino, olha o mar ali fora.
Há tempos você devia ter ido embora.
João-moço, carrega culpa demais.
São tristezas de tempos atrás.
João-velho, joão-ninguém,
joão-fraco, joão-refém.
Deixou-se cair aqui depois de tanto
e espera da vida mais nenhum canto.
joão-cego, os olhos force!
As entranhas agora você torce.
joão-perdido, joão-sem-rumo
homem fraco, sem força nem prumo.
Eu que te vi nascer
estou aqui e não posso crer.
João, e agora?
Vai esperar a morte que demora?
Vai esperar vazar de seu corpo a hora?
Vai relapidar a gruta que chora?
Não, João, com certeza não.”


João prostrou-se no chão. Seu corpo mal se encaixava nas frestas da rocha recém desnuda. Decidiu jogar um ar mais resoluto para a voz que o interpelava. Fixou a vista com mais calma. Um homem, sentado em uma das pedras confortavelmente o encarava, tranquilo. Usava um terno cinza, bem talhado, camisa branca com abotoadeira, gravata vermelha (um vermelho suave, discretamente rubro). Rosto esguio, queixo largo, barba feita recentemente. Ele encarava João com olhos devoradores. Pareciam consumir as pessoas ao simples relance soslaiado.

“Ei, você é Deus?
Cuida de outros filhos seus.
Esse aqui está em bem.
Não quer ser mais um quem.”

“Não, Deus tem lá um outro jeito.
Eu sou mais eu, jogo simples e feito.
Eu estava lhe procurando há alguns momentos
entre pedras, tristezas e pensamentos.
Mas, do mundo todo, não pensei em procurar aqui.
Fiquei surpreso quando lhe vi.

Oh, João, pronúncia do passado,
loucura de um ser errado.
Deixou-se levar pelo acaso
esse que come carne e deixa atraso.
Vamos, levanta.
A dor será para sua carne manta.”


João estava puto. Tudo estava ótimo. Ele, sozinho, sem ninguém, jogado ao léu sem medo de ser nada. Agora, surgira aquele homem. Cheio de comandos, cheio de dizeres, cheio de querer mudar as coisas. As coisas eram coisas e pronto. Não deviam ser mudadas. Se elas não quisessem ser coisas, teriam surgido de outro jeito. Mas eram coisas! Saco. Mas o homem insistiu em ajudar João. Levantou-o pelo braço, suavemente içou-o até que ficasse ereto. João era fraco, o homem era forte. Carregava o corpo desfalecido como se caregasse um peso de papel.

João aproximou-se da saída.
Tremeu.
Seus cortes arderam.
Não. Não... Não! Nãonãonão...

Estuporou a saída.
Seu corpo explodiu em um milhão de sensações conjuntas,
como se ele pudesse cobrir a Terra inteira.
Arreganhou os dentes.

Conseguiu ficar de pé por poucos segundos.
Seu corpo ardeu em chamas,
vomitou.

Falseou, desequilibrou-se.
Caiu no chão e perdeu os sentidos.

Caio Mello
12/12/2010

sábado, 11 de dezembro de 2010

Uníssono

Mantinha seus pés fixos com medo de separá-los. Mantê-los descoesos era segregar mais um detalhe desconexo de sua vida. O topo do prédio era fosco e vazio. E ele, ali, numa vontade de continuar vazando pelos cantos. Ele, pouca vida, pouco homem, pouco Rafael. O cimento imperava-se como uma batalha sem fim que lhe cobria os escrúpulos. Pensar era um necessidade e, ao mesmo tempo, pensar era um mero fim em si mesmo, como se a vida fosse um reflexo do que ele era agora.

Eu quero te crer
a volta-morrer
num perdido canto
do homem de descanto.

E Rafael. Sim, Rafael. Parara refletindo-se sobre isso. Meramente isso. Seu nome. Como uma dominação. Como sendo ele, sendo sobre ele, sendo ele mesmo em um mero papel. Uma cascata de experiências que poderiam ser exprimidas num simples juntar de letras. E ele era. Talvez nada mais do que isso. O cimento, não. O cimento era mais. O cimento era tudo. Este cimento estava coeso, duro, presente no mundo todo sempre como cimento. Havia vários Rafaéis no mundo, mas somente um cimento.

Para botar casa de pé, cimento
Para por fogo no chão, sentimento.
Para por chasa de fé, centimento.
Para botar chogo no fão, simento.

Era tudo duro. Tudo havia sempre assim? Ele não sabia. Não vivera tanto tempo para poder sentir o mundo em sua plenitude, como se fosse um cálculo gigantesco, hipérbole metafórica do homem. Ele fora pouco. Sim, pouco. Talvez até mais para parco do que para pouco. Ser parco era o ser para poucos. Ser... Para quê?

Ali de cima,
azulava o horizonte com seu sorriso.
Rafael não sorria.
Podiam outros detalhes sorrir.

E só.

Mantinha-se ele naquel dúvida que só o silêncio podia sustentar. Subisse alguém ali e ele até desistia da ideia. Mas o não-dizer fomentava aquele entusiasmo. Não, talvez não era um entusiasmo. Era um cálculo errôneo de alguém que queria simplesmente verter na Terra um detalhe a mais de tinta. Uma linha a mais na fala de alguém. Quebra de monotonia necessária num mundo desnecessário. Mas, talvez, ele estivesse se dando importância demais. Era uma vontade inerente ao seu ser, um querer desejoso de ser concretizado. Mas, de novo, isso o deixava mais tranquilo. O querer querido por tanto tempo só podia fazê-lo menos desejado. Ele, ali. O asfalto, ali. Os dois. Dois. Um. Undoissó. E daí?

O medo de um homem dali refém.
Não coubera ali um mais além.
Começo de fim, o fim de mais cem.
A vida com tudo, com tudo sem.

Sem os cem. Por mais além das cem páginas de mais um livro de vida disposto a ser mais. Era agora um riso júbilo escárnio vontade de, no canto de uma nota, continuar. O asfalto era só mais um. Solitário, unido, uníssono, já complexo demais em seu próprio desespero.

Ele
sereno
desceu
de seu feito.

Caio Mello
10/12/2010

Perplexidão

Os sons do curto no espaço.
Um caminhar destemido e nenhum destino,
como se a relva fosse uma necessidade.

Reve, reve, reve.
Deslizando seu momento, caminhava.
Ali, na umidade
e no cantar de algum pássaro que desconhecia.

Verde infinito.
Verdejando estreitamentos no horizonte,
não-se podia caber em sua visão reta.
Era oblíquo demais para isso.

Reve, reve, revezando
alguns poucos passos destemidos
como se o chão fosse uma delícia degustada aos lábios.

Desgosto deixara para trás.
Era. Era ali. Um silêncio.
Como uma vontade verdada de verdades reconstruídas.

Fora em outros espaços.
Mas estava entediado.
Fora o tempo de tempos atrás.
Agora sorria mais uma vez.

E queria. Almejava o verde no fim do mato.
Matejava o verdume de um homem qualquer
que busca um ignoto motivo para seguir adiante.

E seguia! Naturalmente.
A vida agora lhe parecia um simples
cadenciar de certezas.
Era. Podia ser. Fora. Seria. Será.

Seria o for, força do ia, for-se-ia,
homem comum.
Sim, homem qualquer.
Qualquomem.

Entendia agora a vida como um horizonte fixo.

Caio Mello

10/12/2010

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Sobre Direito e coerção

Zeteticamente, para que serve o Direito? Se pensarmos numa sociedade ideal, dotada de harmonia infinita entre as pessoas, não haveria conflitos sociais. Sem conflitos, não haveria necessidade de decisão entre partes para gerar estabilidade social. Sem essa necessidade, não haveria o Direito. O Direito, no seu sentido mais amplo, é um paradoxo em si mesmo: ele age coercitivamente na sociedade para impedir que ajam outros atos coercitivos (estes entre indivíduos). É o monopólio da coerção. Portanto, o Direito é um câncer social, uma tristeza agressiva imposta a todos porque nós, simplesmente, não sabemos como limitar nossos impulsos de outra forma. Nesse sentido, o BOPE simboliza esteriotipadamente tal poder de coerção do Estado. O BOPE tem competência para atirar e para matar. O sargento é um braço do Estado, um limitador da Contingência social. Mas, ao ser ele mesmo um ente subjetivo, ele mesmo é contingente. Ou seja, até que ponto vai o “estrito cumprimento do dever legal”? Cabe ao sargento do BOPE decidir isso? Cabe mesmo a quem está com a arma na mão decidir quem deve viver e quem não deve? O julgamento perde quase por completo seu caráter objetivo. O sistema brasileiro é falho, sua complexidade cai por terra quando o Direito tem que encarar de frente o Morro. Lá em cima, a situação normada juridicamente não alcança a realidade. O poder do Estado está longe de ser eficaz. As milícias compostas pelos cidadãos representam um poder coercitivo paralelo ao do Estado, mostrando a fraqueza do ordenamento frente a tal situação. Se pensarmos no modelo kelseniano, o nosso ordenamento, por não ser eficaz, deixa de ser válido ali. É um Estado dentro de um Estado, com suas competências e suas decisões desvinculadas da realidade nacional. É uma bolha jurídica independente. E quem irá dizer que o sistema deles não é jurídico também?

Perdoem os termos técnicos de Direito, mas eu tive que responder isso em aula e achei interessante colocar isso no blog. Qualquer dúvida, é só falar comigo.

Caio Mello
03.12.2010

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Ser-se

Ser,
simples fato.
Ser,
por que não?


Ser,
meu louco nato.
Ser,
se for razão.

Ser,
senão me mato.
Ser,
no coração.

Ser,
o verde mato.
Ser,
no aluvião.

Ser,
o ser dum rato.
Ser,
por compulsão.

Ser,
viver num ato.
Ser,
uma encenação.

Caio Mello
01/12/2010

domingo, 28 de novembro de 2010

Ela sorri

Ela ali no palco, sob o jorro forte de uma luz frígida. Distante está, arremessada em seu momento estético de loucura reconstrutiva. No chão, são meras tábuas de madeira. Um sentimento de fragilidade paira no ar como se estivesse sustentado por fios descidos do teto. Já as nuvens, estas descem mesmo do teto. Nuvens grandes, gordas, de pompa e proa. Tudo bem construído como uma cápsula sólida guardando a loucura da vida num frasco de vidro. Vários olhos cintilam no escuro. Alguns por desinteresse, outros por curiosidade, outros por deleite e mais alguns por admiração.

Movimento.
A estética crua racha-se em concatenamentos
palavras voam por entre as cadeiras,
vontades deslumbrantes desnudam-se perante
suspiros impressionados.

A vida passa com seu grito rouco
e seu escárnio desvairado,
imperando sobre o recinto.

O trem de outros séculos cruza o céu
num repente fantasmagórico,
fazendo eriçar os pelos.

São Paulo vive de novo,
grito antigo de seu povo.
Brilha com seus verbos-som
em seu retumbante tom.

Filhos, filhas, abelhas, café. Homenfé, homecafé e campos e mais campos de infinita lavoura. O dinheiro antigo rebouça na Bolsa e despenca em lágrimas. Homens já feitos criançam pelas ruas suas misérias numa falta de vontade. E nossa menina ali no meio, com olhos grandes que parecem engolir o mundo. O mundo, que fundo, que absurdo absorto em sua própria micoexistência espelhal. Palavram-se momentos já treinados por diversas vezes, como se o papel escrevesse a si mesmo, erguendo seu gordo mundo.

Jogos de luzes cruzam a sala.
Sentados, os quietos escutam.
Riem por algumas vezes,
outras refletem sobre se era normal ser assim.

E esse é o intuito da menina. Em seus brados agressivos com gestos suaves, mescla a si mesma num universo paralelo. Sim, ainda é ela mesma, com seu mesmo sorriso sereno, mas é outra também, como um todo dentro de outro. Como algodão dentro de um urso de pelúcia.

Crescer
cresce o mundo
este, por acaso, morinbundo
como se da vida fosse só o fundo.

Pois agora o mundo outro era.
Era mais belo, besta-fera.
Com risos e bocas de outra era.
Como um sonho louco que sonhar se espera.

Aos poucos, faz-se uma rede densa de vontades inexoráveis. O tempo passa rápido. Versos desregrados e perdidos de um fragilismo que não nos pertence. A madeira do chão é grama, cor, asfalto, riacho de lágrimas, morro de vontade, campa lúgubre de sepultados, leito de neve brasileira.

Repentinamente,
uma enchurrada de palavras.
Verbos
doces
sins nãos
desvairios cabíveis
negações.

No fim, todos quase já sufocados pelo clima consuminte, despedem-se de seus preceitos e decidem aceitar. (Os que não aceitam não entendem). Palmas, cantos, barulhos frenéticos formam um tom de lá maior para um fim certo de noite. Aos poucos, a realidade infiltra-se novamente nas mentes descabidas que não souberam vedar bem os hiatos. Tudo pronto para ser de novo.

E a menina, singela, é ela a menina de novo.
E sorri.

Caio Mello
28/11/2010


Este poema também tem uma parte concreta que não saiu certo no blog. Qualquer coisa, me peçam o arquivo.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Camara

Fecha as estrelas
fecha o ato
fechamos nós
e fecham vocês.

Vem, junta mais pra cá
que a gente é parte do mesmo grito rouco
dessa vontade de dar mais risada.

Sim, o riso-bom, riso-suave de gente boa.
Cor das estrelas nesse verde-céu
no mar do teu sabor, meu bem.

Riso vontade de gente que se sente
sempre, sempre mais.
Ô, menina.
Levanta daí duma vez.

É a verdade dos nós de nós mentiras
verdades vedadas por tu
você mesmo que foi pra lá.

E, se já sabe, cê sabe.
Se eu tivesse mais areia ia ser mais fácil,
mas assinzinho tá ficando difícil
de te mostrar as coisas.

Passo vontade, ô se passo.
Me perco de novo e de novo.
É uma bagunça, é desigual.
Não dá mais, eu juro que não dá, poxa.

Começa a doer depois de um tempinho, sabe?
A gente vai dançando, fazendo de quem não se importa,
fazendo versinhos fáceis pra esse espetáculo que ri
e o povo vai achando mesmo que não tem nada de errado.

Mas tem. Eu juro que tem.
Vai ficando tudo meio que apertado.
Ainda tá colorido, eu sei.
Mas a cor agora é diferente.

Mas que que eu posso fazer?
Nasci sendo um louco perdido
que sabe imitar muito bem o teatro da vida.
E o riso rouco é nós.

Caio Mello
25/11/2010

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Anfiurbe

A névoa negra
espalhou-se pela rua.
Engoliu as casas, engoliu os homens.

Sobrou a um canto
um punhado de vontades empoeiradas,
de versos não cantados, de vontades reprimidas.

E a Noite seguia rumo
em seu estertor
que se fazia possante, roncava, ribombava,
explodia em fúria e reinava novamente.

E o Sol sempre tropeçava em algum degrau da escada
e não conseguia chegar a tempo:
rompia mais uma vez a Noite.

Não estava frio. Era frio.
Era sempre frio e mais frio, um frio sem fim
que gelava a alma dos poucos que corajavam sair de suas covas.
O verso cálido de quem tem medo de cantar.

E o silêncio invadia a cidade com suas águas de veneno.
Um cão tinha seus olhos vidrados em uma tevê de cores vivas
que passava imagens de decrépitos e pálidos jornalistas.
Notícias eram risadas irônicas naqueles tempos.

Tudo tremia silenciosamente por dentro.
Chacoalhavam as coisas de leve, repentiamente sós.
Os detalhes pareciam querer ruir a qualquer instante,
desabando sobre o marasmo estuporador.

Os homens andavam febris.
As crianças andavam cabisbaixas.
Os velhos não morriam para não terem que viver.

Um véu de incapacidade cobria os ânimos.
O mundo parecia não fazer mais sentido.
Era uma grande multidão de homens sós.

Sozinhos, isolavam-se cada qual em seu canto.
Jogados a um canto como o punhado de vontades empoeiradas.
Em nenhum canto havia canto de alegria.

Ninguém mais cantava.
Cantar doía o coração.
O teatro da vida havia desencarnado suas vontades,
liberando os medos mais profundos
das coragens libertas.

Todos tentaram.
Haviam tentado diversas vezes,
haviam até reinterpretado a vida em seu sentido mais amplo,
haviam buscado novas certezas.

Mas a verdade avassaladora voltou a subjugar os ânimos.
Contra a verdade não havia contra-argumentos.
A realidade era aquela, contra a qual não havia luta.
Tudo o que sobrava dos tempos bons era um suspiro.

E pesadelos.
Muitos pesadelos sobravam nas mentes inertes,
vontades reprimidas de passados distantes,
de vontades já perdidas.

Os fantasmas não eram assombrações.
Eram o próprio homem.
O indivíduo não sonhava mais,
sofria com o seu querer desprovido de concretização.

Chorar também já não surtia efeito.
A vida, em outras terras, fazia sentido.
Mas ali não. Ali vivia-se de sonhos.
E os sonhos eram pesadelos.

E, sobre tudo isso,
junto a nuvens cinzas,
vivia um par de olhos
a tentar entender o que dera errado
em tão curta vida.

Caio Mello
22/11/2010

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Texto-mote Peruada 2010

Hoje tem festa? Tem! Tem festa no centro da cidade!
Não importa tempo nem idade. Não importa nem ter capacidade,
É só estar ao lado ou ser casado com político cassado para ter festa.
E como vai ser? Quem vai ir? Vai todo mundo, vamos rir
Basta ter banda para abrir e ganhar vaga como deputado.
E o peru vai glu glu glu ser eleito sem porte nem feito.
Ninguém se importa em limpar a ficha. Ficha só para rixa no baralho.
Porque, no Brasil, decidir dá trabalho. E o supremíssimo tribunal federalinho
Vai brincando seu caminho, nem foi dez nem foi onze, foi ninguém e nos elegemos também.
E os governantes da nação esquecem o decoro, mas lembram o jargão:
É a onda verde invandindo o Morrão! É o povo-patrão, somos todos a nação!
E a corrupção? Que nada, em tempos de eleição, o negócio é votos na mão!
Vive todo mundo no fica-não-fica brincando de morar em cidade rica.
Será que isso irrita? De bonzinho fazer fita?
O povo se irrita! O povo fica tiririca! Mas pior do que está não fica!
Mas aqui ninguém fica chateado. O Brasil está grande, bem cotado.
Dá até para fazer graça, ser palhaço.
Porque
Pro meu peru ser deputado tem que ser palhaço ou condenado

Caio Mello
Peruada 2010

O tempo

O tempo
um tanto lento
depois que tanto tento
o tempo.

O tempo,
tão distante
enquanto aqui sento
(o tempo).

O tempo
e seu rebento
o vagar lerdo e cego
do tempo.

O tempo
escorre duro
enquanto me demento
por tempo.

O tempo,
tempo demais
dá até para escrever
versos a mais
sobre o tempo
de tempos atrás.

Caio Mello
17/11/2010

sábado, 30 de outubro de 2010

Murilo e Lorena

Lorena estava sentada na mesa da sala de seu apartamento, tomando um café. Olhava para a xícara, já quase vazia, imaginando que as ondas se propogavam no líquido como os pensamentos corriam pela mente. A mesa, verde e redonda, parecia aconchegante naquele momento, servindo de apoio para um par de braços cansados depois de mais um dia de trabalho. Ela era da área de recursos humanos de uma grande empresa de automóveis. Mas, com toda certeza, não queria pensar no assunto no presente momento. Queria poder não pensar em nada.
Uma chave fez rosnar a porta. Após um leve girar de barulho de trincos, a maçaneta empurrou a madeira. Murilo entrou no ambiente, com seu corpo alto e seu olhar sério. Ele, à primeira vista, parecia estar preocupado. Mas seus passos não pareciam condizer com sua feição. Estes pareciam candenciar-se como se estivessem dotados de uma premissa calculista. Friamente calculista.
Murilo deixou o molho de chaves ao lado de sua carteira em cima da mesa da sala. A mesa dava para a cozinha em que Lorena estava, mas não havia porta separando os dois ambientes. Ele não havia dito uma palavra desde que entrara. Nem havia ela. Murilo desabotoou as mangas de sua camisa, tranquilamente dobrando-as. Seguiu para a cozinha, levantou o queixo de Lorena suavemente com seu indicador e deu-lhe um beijo breve nos lábios sujos de café.

Tudo bom com você, Lo? Tá com cara de cansada. Hoje o trabalho deve ter sido duro.

Sim, foi bem cansativo.


Murilo sentou-se em frente à moça, olhando-a nos olhos. Ela segurou a xícara de café, sorveu o conteúdo já semigelado, mantendo a vista em seu namorado que surgia por cima da cerâmica. Murilo cruzou as pernas, inclinou-se para trás e cruzou também os braços atrás da cabeça. Estava pensando se tomaria café ou não.

E você, Mu? Tá com cara de pensativo. Eu daria muito dinheiro pra saber o que se passa aí dentro. Lorena sorriu brevemente, só com o canto direito de seus lábios. Mas aí eu acho que perderia a graça, né? A diversão tá no jogo do sabe-não-sabe.

É, também acho. Mesmo assim, eu não tava pensando em nada de especial. Acho que isso estraga um pouco a brincadeira, né? Eu só tava pensando se ia tomar um café ou não. Mas aposto que eu fiz cara de quem tava pensando numa cura pra AIDS. Ou foi só o seu instinto de psicóloga aflorando nesse momento?

Pode ser. Pode ser que não. Acho que um pouco dos dois. Tipo, acho que não dá pra gente ficar diferenciando o que é do que devia ser.


Murilo parou por um instante. A conversa parecia ter se desmontado brevemente. Ele se decidiu por tomar o café. Nesse ponto, Lorena já havia terminado o café. Ele levantou-se, foi até a máquina de café, pegou a xícara que estava secando no escorredor, terminou de secá-la e serviu-se.

Lo, cadê o açúcar?

Tá aqui na mesa, amor. Vem, eu ponho pra você.


Murilo sentou-se de novo. Lorena pegou a xícara de café, trouxe-a para si. Colocou uma colher de açúcar. Ficou em dúvida. Ele não disse nada. Colocou mais um terço de colher. Depois mais meia colher.

Linda, por que você tem que servir açúcar desse jeito? Você bebe café todo santo dia. Uma hora ou outra você já devia ter aprendido quanto açúcar tem que por pro café ficar razoável.

Ai, deixa de ser chato, vai. Você e seus cálculos. Mil gráficos, mil dinâmicas de grupo para ponderar a possibilidade de um ataque terrorista no Brasil que faria a Bolsa cair mais de mil pontos.

Nossa, calma! Eu tava só falando do café.


Murilo levantou-se, piscando ligeiramente os olhos diversas vezes. Foi até a gaveta, caçou uma colher para mexer o café e voltou para a mesa. Lorena deslizou a xícara até ele. A mesa parecia ter crescido de tamanho em poucos segundos. Silêncio. O tintilar da colher batendo na xícara falava mais do que os dois juntos. Ele tomou um gole do café. O sabor fez-lhe reter as bochechas como se tivesse tendo uma contração involuntária. Lorena aprumou-se em sua cadeira, olhando-o de frente. Cerrou a face.

Nossa, aposto que você fez essa carinha só porque fui eu que pus o açúcar. Se tivesse sido você, o café estaria bom.

Deixa de doce, vai, Lo. Se fosse eu, eu teria colocado uma colher e meia como eu sempre faço todo santo dia de manhã quando a gente toma café juntos. E sempre fica o mesmo gosto. Você que nunca reparou.

Eu que nunca reparei? Eu que sempre acordo mais cedo do que você e já vou arrumando o café. Você fica na cama se remoende sei lá do que.

Ah, esse papo de novo? Você vai me desmerecer de novo? Semana passada foi a mesma coisa, é o meu trabalho que não presta, é eu que não sei cuidar dos meus sentimentos, é eu que só penso no trabalho, é que não consigo dividir o que é amor e o que é necessidade.

Amor, sério, deixa pra lá. Não quero entrar nesse assunto de novo, eu tava meio magoada naquela semana.

Magoada? Você tava na TPM, isso sim! Meus amigos só quando bebem conseguem falar as coisas na minha cara. Você não tá muito longe deles, não. Só que não precisa de bebida pra soltar o verbo, precisa de uma dose de hormônios alucinados pra começar, né?

Murilo, se controla, sério. Cê tá me tratando como se eu fosse um monte de carne, como se eu fosse um animal que não sabe se balizar a não ser através de instintos. Vamos parar por aqui.

Não, sério, agora já começou. Tem que ter um fim. Cê não pode só ficar escondendo, deixando as coisas por debaixo do pano e dizer que tá tudo bem. Não tá tudo bem, cê sabe disso! Saco.

Você teve um dia tenso no trabalho, ralou o carro essa semana, tá com a cabeça cheia de coisas. Olha o jeito como cê me tratou só por causa de um café. Talvez isso tenha a ver com a ideia que seu pai-

Para com isso, Lorena! É isso que me irrita em você, caramba! Nossa, que desespero! Olha só pra você mesma. Tudo o que eu faço faz parte de uma grande análise psicológica que cê faz de mim. Sabe como eu me sinto? Sabe? Parece que eu sou um rato de laboratório, girando em círculos para passar sede e fome e você poder me dar comida só quando estiver escrito na tabela “como os ratos reagem quando estão com fome”.

Ah, tá! E depois sou eu quem desmerece o trabalho dos outros! Murilo, cê é um bruto, mesmo. sabia?! Tudo que eu estudo em psicologia, tudo que eu monto de teorias, de análises, comentando como lidar com o meu próprio relacionamento sem ter que necessariamente passar por um crivo formal, nada, nada disso faz sentido pra você? Acho que não, né. Aliás, acho que você nem sequer presta atenção no que eu falo. Deve passar na sua cabecinha machista que isso é coisa de mulher, que não serve pra nada.

Aí você tá exagerando, sério. Eu não sou machista, cê sabe disso. E não me venha com aquela análise que “toda nossa sociedade é machista”. Cê que tá me chamando de bronco.

Bronco, que seja! Porra, Murilo. Tudo pra você é engavetadinho, tudo quadradinho, cabendinho em caixinhas imaginárias. Até quando você mastiga você é metódico, caramba! Nhac, nhac, nhac, engole. Sempre o mesmo barulho. Sempre! Corta em pedaços iguais, analisa os pedaços, e depois come. Que saco! A vida parece óbvia perto de você.

E a sua obviedade é não fazer sentido nunca, Lorena. Meu, tô ficando cada vez mais sem paciência com você, sério. Mas essa loucura vem de família, sabe? Se eu tivesse conhecido seu pai antes de você, a gente não taria junto agora. Já pensou? Aquele ortopedista alucinado, só ficava brisando a ver navios. Porra, que saco.

Agora vai meter o pau na minha família? Pois saiba que a casa em que cê dorme foram eles que ajudaram a custear! E o seu pai? Que que aquele pé-rapado perdido no mundo deu pra gente até agora? Um abraço e um olho torto pro meu lado.

Quer saber?! Eu vou embora. Não quero ficar nisso a noite toda. Amanhã a gente se fala com mais calma. Vou pra casa do velho pá-rapado que cê tá tanto xingando, nessas horas só ele mesmo que me entende. Merda.

Ah, agora vai fugir, é? Cê reclama que eu não ponho o assunto, reclama que eu não quero discutir nada e agora vai embora? Embora? Cê é um cagão, isso sim! Não tem coragem de me aguentar por uma noite inteira depois de brigar comigo. Fujão. Bunda-mole. Se você ainda for o homem pelo qual eu me apaixonei, você fica. Não posso acreditar que cê tá virando um covarde.

Que covarde, que nada. Deixa de ser doente. Miolo-mole. Cê é muito casca-grossa, quer resolver tudo na hora. A gente tem que sentar e pensar com calma, saco. Não adianta sair por aí dando patada. Não vou deixar que essa bosta descambe por causa de uma porra de um café. Eu to saindo.

Vai, bundão, vai mesmo. Vai. Amanhã a gente vai ver quem vai me ligar depois de uma noite de sono muito mal dormida. Brigada, sério mesmo. Cê acabou de arruinar minha semana. O trabalho já tá foda e cê ainda me vem com essa agora. Haja paciência, viu. Estúpido.

Tchau.


Murilo agarrou apressadamente seu molho de chaves e sua carteira. Olhou para a mesa. Os olhos de Lorena estavam vermelhos e ela estava ofegante. Mas não dizia nada. Ele olhou para a xícara de café na mesa, completamente cheia. Correu até a cozinha, agarrou a xícara, virou o café na pia e lavou-a apressadamente. Olhou fundo nos olhos de Lorena enquanto soltava um longo suspiro. Duro. Era duro como rocha. Areia eram os fatos. Abriu a porta e foi embora sem dizer nada.
Lorena levantou, arrumou as mangas da camisa. Tremia por dentro. Até suas pernas tremiam. Mas, por fora, parecia um bastião da liberdade. Tentou servir-se de mais café, mas suas mãs tremiam demais. E também havia o açúcar. Ele encarava-a taciturnamente. Ela guardou-o no armário num movimente abrupto. Sentou-se deixando lágrimas verterem sobre sua face, mas impedindo que os soluços dominassem o seu corpo.

Caio Mello
30/10/2010

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Mundo mariado

Maria não queria muita coisa, afinal, ser criança não era muito difícil. O mundo ainda era uma gigantesca caixa de brinquedo, com nuvens brancas e fofas. A garota corria até suas pernas doerem pelos vastos caminhos que encontrava pela frente. Via o horizonte e queria prendê-lo entre seus dedos, queria entortar a vida com a palma da sua mão. Maria via o mundo com olhos jovens, cheios de cor e vida, sem ainda entender plenamente os meandros que se constróem com o tempo. Tempo? Tempo nessa idade era um empecilho. Adultos não tinham tempo para ela. A comida não chegava a tempo. Diziam que ela ainda tinha muito tempo. Tempo, tempo, tempo. Para que?
O que irritava Maria era o chão seco. Duro. Por que o chão tinha de ser tão seco? E ele era... Como ela poderia explicar? O chão era de pedrinhas bem pequenas que não se encaixavam direito. Vários buracos se abriam no chão batido. De dia, tudo era marrom. De noite, tudo era cinza. De vez em nunca, verdejava um detalhe desnecessário.

A cerca no canto da casa
guardava em seu ferro corroído
o silêncio de homens passados.

Fui eu, hoje não sou mais.
Foi quem? Foi Deus, tempos atrás.
Foi tu que viveu sem paz.

Maria entendia muito das coisas. Sabia quando tinha que se calar, sabia quando podia falar, sabia sair correndo para não levar bronca nem sopapo. O mais importante era saber ficar bem quietinha quando a barriga começava a se mexer sozinha. Maria tinha certeza que tinha um bicho gigante na sua barriga que só se mexia de vez em quando. A menina comia, o bicho parava. Quando faltava comida, o bicho ficava pulando e resmungando. Maria já tentara falar para sua mãe da sua dor de barriga. É normal filha, tu vai sentir isso a vida toda. Então, desde já é bom tu saber.

No topo do céu,
jazia o sol, sereno e celeste
em seu sopro solar.

Arfava a terra em seu silêncio sepulcral
e cantavam suas entranhas:

Não tem carne que fique nesta terra!
A morte vem logo, ela não erra.
Suspirem, oh, homens de pele pouca
que, daqui, só vão tirar vida louca.

Maria até ia para o colégio. Mas as aulas eram muito chatas. O teto da escola era furado, a professora faltava pelo menos uma vez por semana, não tinha água lá perto e também não tinha material escolar. E as letras, então! Eram letras demais. Pra que juntar tanta letra? Quanto menos se fala, melhor. Ficar se perdendo em letras não dá em nada. O bom mesmo era ficar em casa de tarde, vendo passar pela porta da frente o tempo.
A garota tivera mais dois irmãos. Mas agora só tinha ela. Isso era bem ruim. Não tinha ninguém com quem brincar. Talvez era para isso que servia a escola, para trazer amigos para quem não tem irmão em casa. Mas os amigos também não podiam ficar brincando por muito tempo. Eles moravam muito longe.
Qual seria o tamanho do mundo? Maria via terra para todo lado! Para que tanta terra?

O mundo, de seu espaço infinito,
virava os olhos para sua própria carne.
Seu ventre descampado de terra móida.

A seca, berne devorando a carne do mundo.

Os olhos tão pequenos da menina
embalavam a alma do globo
e faziam-no tremer por dentro.
Será que aquilo um dia teria fim?

Maria passava horas olhando as coisas. Não tinham tantas coisas para serem olhadas, mas, cada vez que ela olhava para as mesmas coisas, via detalhes diferentes. Do tipo, a cerca. Um dia, a cerca parecia mais feliz, mexendo seus arames entortados. Noutro dia, parecia a cerca a mais triste coisa de todas as coisas. Quieta, cabisbaixa, silenciosa. Os tijolos é que quase sempre pareciam ser iguais. Eles eram tão duros!
A garota também inventava mil histórias para si mesma. Inventava que conquistava um mundo novo, cheio de comida e água. Sonhava com mil amigos, fazia-os viver as aventuras mais poderosas, enchia-os de carne e força. Sonhar era a única coisa que a impedia de enlouquecer. Sonhar fazia o tempo passar, as coisas passarem, a fome passar.

E Maria sonhava.
Em poucos segundos,
já estava voando para o topo do Universo.

Brincava com as estrelas que via de noite da janela da sua casa.
Sorria, dava risada, comia nuvens com sabor de açúcar.
Construía uma casa feita de tijolos que soubessem cantar
e cantava com eles suas músicas prediletas.

Balançava os braços e o vento balançava também.
Sorria e sorriam as gotas de chuva.
Tudo era simples, tudo era próximo.
E o tempo, no mundo de Maria, desexistia.

E voando pelo espaço afora,
a menina esbarrou no mundo sem querer.
O mundo chorava.

Que foi, Mundo? Por que você chora?

Maria, sonha Maria.
Sonha hoje tua alegria.
Sonha como eu sonharia.

Mas não sonho, Maria.
Eu sei que tu sofres,
sei que passas fome
sei há quanto tempo não come!

Não posso mudar, sou fraco.
Não posso melhorar teu corpo parco.
Não posso outros homens fazer
são esses que vão te crescer.

Quando cresceres, Maria,
verás. Entenderás por que choro.
Eu fui fraco, ainda sou fraco.
Que me perdoe a minha terra.

Maria voava, despreocupada.
O mundo devia ter perdido seu coração
dentro de um qualquer buraco de terra.
Afinal, para que tanto sofrimento?

Meu mundinho, não fique tão nervoso.
Tu é belo, maravilhoso!
Tá vendo? Eu to bem!
A comida? Consigo viver sem.

Eu sei sonhar.
Sei nadar, construir meu mar.
Mundinho, não esquece de amar.

Tu esquece de mim.
Não fala que é mentira.
Tu só pensa nesse tempo, nesse futuro teu.
Pensa em mim, só por hoje.

Pensa que eu to aqui e tu também.
Pensa no meu sorriso.
Pensa na cerca lá perto de casa.

Olha, eu não consigo te mostrar o que é certo,
mas posso te dar a mão.

Vem, eu te ajudo!

Caio Mello
27/10/2010

sábado, 23 de outubro de 2010

Multilado Mutilado

Ele abria os braços numa convulsão de incerteza. Seu corpo doía enquanto as ilusões passavam-lhe pela mente. Era revolto ou estava revolto? O ser era subjugado por sua vontade incessante de buscar a meta-síntese de toda sua ideologia. Ele fora idealizador de suas ideias? Fora ele quem construiu seus pensamentos? Todos de pé, cantando juntos a plenos pulmões hinos calculados para levar multidões à loucura. Utilizavam-se dos sentimentos individuais para tornar uma massa em um instrumento uníssono. Gritavam, berravam, suavam juntos. Ele havia parado para pensar sobre o assunto há não muito tempo. Os debates que havia tido com seus colegas, todas aquelas discussões fervorosas travadas no calor dos diálogos teriam sido pré-modeladas? Ele fora incitado a crer incondicionalmente. E, talvez, não o percebera.
Sentia-se pouco, morto, defunto de alma plastificada no turbilhão de corpos loucos. Pensa. Mata. Culpa. Pensa. Mata. Pensa. Mata. Matáquina. Máquina. Vazio. Belicado. Sons loucos de balas rosnando ao vento da terra. Terra? Terra de quem? Terra de nós. Vários nós que acabou tendo em seu raciocínio. A chuva descia-lhe pelos olhos enquanto arfava.

Sentia falta de casa.
Mas não entendia mais o que era casa.

Todos
modos
somos
loucos
e nunca mais ser.

Ver os gráficos.
Ver os dados. Maquiados.
Veros dados. Verdados. Verdades.

E tudo parecia mais concreto ao se aproximar da totalidariedade do Governo. Este era tudo, estava em todos, via tudo. Ele falhava, ofegava. O frio fazia-lhe tremer o corpo inteiro, com medo de puxar outro suspiro dentro daquela roupa molhada. Fazer o dever. O dever de fazer concatenava-se com sua vontade de seguir batalhando. A meta-síntese! Sim! Não poderia nunca abrir mão dela. A Revolução alçaria voo em seus braços e não haveria um homem sequer que não tremesse frente ao seu ideal.
Os outros eram ruins. Não era uma questão de ponderabilidade. Governos não são ponderáveis. São objetos que, de tão complexos, não podem ser formatados em visões subjetivas. A verdade do Governo era baseada em estatísticas. E seus homens eram estáticos. Mas não podiam ser estáticos! Como assim? Uma ideologia perfeita jamais poderia condizer com a imperfeição dos homens.

Matar os homens.
Sim, todos eles!
A ideologia era perfeita,
os homens que falhavam!

A máquina governamental era inquestionável.

Livrar-se de toda a população.
Livrar-se da carne e da imperfeição.
Matá-los para salvar a nação.
Os homens, todos, insensatos são.

Enquanto digladiava com seu raciocínio imperfeito, chilreavam os arredores com vontade. Ele já não tinha vontade. Estava num estado de torpor perene, constante disparar do peito sem limites. Ser era atirar. E a bala, alçada pelas mãos do Estado, tomava vida própria e tornava-se uma mártir da Revolução. Sim! Viva o Governo! Se os homens são tão imperfeitos, ele tinha amplas possibilidades de deixar de existir sem que houvesse sérias consequências para o andamento saudável do Estado de que era súdito.

Agarrou sua arma com força.
Respirou fundo.
Levantou-se.

Gritou,
correndo em direção à
noite.

Caio Mello
21/10/2010

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Cascata distraída

Quisessem os laços me dizerem o que sou e o que deixei de ser. Hoje sou muito, sou forte. Mas o que é ser? Ser é um estado, um regozijo, uma força, uma tendência introspectiva de expulsão do âmago inconstante. Ato de amar a vida, amar a si próprio, existir. Continuar respirando quando a morte poderia ser a outra opção. Mas, também, o que é a morte? A morte é só uma pergunta: o que vem depois? E, se tivesse resposta, faria a vida inteira peder a graça. E ter graça é o ponto crucial da máquina de sonhos em que vivemos. Vivemos porque somos feitos de estrelas. Somos do mesmo produto que o céu inteiro, num jofro infinito de cadências incalculáveis. Nada cabe num cálculo. Afinal, as contas servem somente para apaziguar a lógica do homem. Na verdade, não preveem a doença, não impedem a morte, não param os aviões de cair, não param os carros de bater. O aço se amassa e enlouquece. Foi para isso que ele foi feito. Os moldes são torneados para deixarem de existir. E, se hoje existo, é mera coincidência da vida sobre o que poderia ter sido. Mesmo assim, minha existência é calculada, é perfeita, é o elo que transpõe o abismo que há entre os sentimentos e o mundo concreto. Viver é conseguir sentir o amor, é conseguir pulsar o sangue para fazer com que as faces fiquem rosadas. Somos porque devemos ser. Ser o somos; e o que seríamos se não fôssemos não importa.

Um dos caixas eletrônicos torna-se vago e ele vai até ele.

Caio Mello
12/10/2010

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Os pontinhos

A terra fica numa esquina do Universo,
lá perto do acaso, do lado da felicidade
e de uma estrela.

Pequenina, sempre sorridente,
uma quase esfera bem azul,
um tanto tímida,
com suas nuvens brancas e fofas a borboletar.

Ela anda de um lado para o outro
num ritmo muito à vontade,
nunca girando mais que o necessário.
Jamais parou.

E os cometas se espantam
ao passar perto do globo cor-de-mar.
Muitos pontinhos pulam
de cá para lá, de lá para cá.

Como é que cometas conseguem ver pontos tão pequenos?
Perguntou uma estrela, certa vez.
É porque eles guardam
os desejos dos pontinhos.

Mas são tão pequenos!
Como podem desejar algo?
O vasto Universo não parece
se importar com eles.

E daí? Os cometas se importam.
E a terra vai seguindo sua vida.
Ela sabe que tem pontinhos,
pode senti-los.

Mas nada além disso.
Não machucam, nem dóem.
Qual é a força de um mísero ponto?

Há alguns anos, os cometas
segredaram para a terra que
um pontinho queria dominar o mundo.

Os pontos são curiosos.
Tão pequeninos, tão normais
e, mesmo assim,
com vontades tão grandes!

Todo mundo está dentro do mundo todo.
Montes e montes de pontinhos.
Alguns deles até se enrolaram em papel
higiênico e fugiram da terra por um
centésimo de segundo. Não fez a menor diferença.

A bola cor-de-tinta olha para o infinito.
Tudo é tão grande e tão cheio de coisas.
Astros discutindo sobre os mais diversos
assuntos. E ela ali, por vezes só.

Mas tudo bem. Com seus pontos nunca se sente sozinha.

Caio Mello
12/12/08

Condomínio

Senhores condôminos,
é com grande pesar que comunico, a Vossas Senhorias, que vosso vizinho veio a falecer hoje de madrugada. A distintíssima senhora Gramática, cuja à qual residia no apartamento 412 haviam catorze anos. O corpo de nossa enobrecida conterrânea, virá, a ser enterrado, neste domingo as treze horas e aos quinze minutos. O problema pelo qual ela veio a desfalecer parecer ter sido do coração, observaram aos médicos legistas, talvez algum estresse vivido pela vossa bem-aventurada companheira de edifício. Peço a todos uma devida compreensão e de carinho, pois ela era querida pela grande maioria daqueles em que aqui vivem. Mesmo já senhora de idade, reclamando de dores no peito e visão embassada, nossa ilustre amiga não se deixou abater-se ao longo do decorrer de todos esses anos. Com chuva, com sol, à qualquer momento, poder-se-íasse ver em seus doces e velhos lábios um sorriso doce e afável. Peço que todos compareçam no já citado velório para deixar sequer, ao menos, uma flor perto do caixão de nossa amada defunta.
Sinceramente e antencioso,
José Pedro (síndico interino e condômino fervoroso).

PS: a vaga da falecida pode ser alugada na garagem, a preços módicos a serem discutidos.

Caio Mello
24/11/08

Um elogio ao mestre

A rosa
do Guimarães
é rosa,
é prosa
poderosa.

Caio Mello
08/10/08

Editorial para a primeira edição da Revista Carcará da Academia de Letras do Largo São Francisco

O Carcará é filho do sertão nordestino, renascido da terra batida e do chão seco. Esse que nunca sobeja, passa voando baixo com a vista aguçada. Assusta o povo de olhos miúdos, tem mais coragem do que homem. Anda perto das casas com seu passo comedido de gavião. O voo não é perfeito. Não é deslumbrante, mas serve exatamente para sobreviver. O que bota medo no sertanejo não é a força selvagem do Carcará, mas é a personalidade que insiste em se manter sempre bruta, sempre pronta, sempre ávida por viver e nascer mais uma vez. Gera-se do medo, então, uma vontade de ser carcarado. Um desejo primitivo de ser também temido pelo povo, de viver num ódio intrínseco, numa frenética cadência de sobrevivência – e de renascimento. Desejamos pegar, matar e comer os prédios, o asfalto, os livros, o sertão sudestino inteiro na nossa própria ânsia de sermos também Carcarás, de sermos todos sertanejos. O pássaro voa por entre as Arcadas, explode em tinta e papel, pousando nas mãos do leitor. As linhas guardam-lhe o espírito forte. A transmutação do Carcará da Academia de Letras tem o intuito de presentear o Largo com um farol para a Literatura, para a Arte e para a liberdade de expressão. Cada texto é vinculado ao seu autor, cada opinião é individual. Mas o conjunto das opiniões individuais transforma-se no coletivo da defesa por um espaço de diálogo que não se obrigue a ser comedido, que não filie seus autores à imperatividade de qualquer diretriz ideológica que pudesse ter a revista. Desse modo, das cinzas do chão esturricado da nossa terra, nasce mais um par de asas para a criação e para a inspiração da nação franciscana.


Caio Mello

Setembro de 2010

sábado, 18 de setembro de 2010

O Roxo

Era uma rua de asfalto
topo dum murro bem alto.
Os carros de vez em quando
vinham passando, passando.

Nada mais concreto do que o próprio concreto.
Árvores algumas havia, com seus topos verdes a colorir
o cinza da calçada e o marrom dos tijolos.
As janelas escuras segredavam vidas.

Veio vindo num passo sabido
um moço de paletó roxo, carregando uma bengala dourada.
Era ruivo, barbudo e de cabelo cacheado.
Tinha uma cartola vermelha e roxa que estufava seu cabelo.

Som. Olharam-no as casas
com olhares covas-rasas.
Muita cor tão de repente
tão depressa assusta a gente.

Bem-te-vi não quis cantar.
Era silêncio no ar.
Mas corajoso era o moço
Com olhar de um colosso.

Ajeitou sua roupa roxa.
Respirou fundo, passou a mão pela sua barba espessa.
As coisas não intimidam as cores,
nem o asfalto cala o homem.

De supetão, ele desabou a falar:

“Ó coisas, ó coisas. Perdoem a interrupção! Mas há certos detalhes, ó coisas, que não se calam pela razão. Ó coisas, atenção! Eu venho de repente para salvar essa gente. Preciso dum falar quente para entrar em toda mente. Sente, ó coisas, essa gente sente. Não se enganem, nem tentem me enganar. A vida arma-se em seus arames de ferro, numa estrutura de leve vaguidão e incerteza. Porém, segue tudo com a maior destreza, como se pelos detalhes em defesa. Ó coisas, vocês não podem impedir o ímpeto imperioso desso povo. Eles vão viver de novo e de novo e de novo. Não importa o que vocês digam, não importa quem vocês matem, não importa quais cores vocês desbotem.”

Continuaram as árvores quietas.
Mas algumas janelas começaram a tremer.
Vaguidão?
Não. É uma desilusão.
Tudo sempre se baseou na razão.
Incerteza? Que despesa de tempo!

Quem diria!
Um homem colorido surgindo assim
num sábado tão quotidiano para entreter a loucura das coisas
com sua voracidade sagaz.

Uma casa pensou tomar postura
e acabar de vez com essa loucura.
Dura, não sabia vida insegura.
Uma casa louca a morte procura.

Fez toda a estrutura tremer na base
já quase se arrancando do chão, quase,
pois era um sacrifício do cimento
para não dar vazão ao pensamento.

O homem roxo nem sequer se mexeu.
Já sabia qual o destino seu.
Quem tem coragem não lida com sorte.

Cimento veio abaixo como um soco,
matando o roxo num forte sufoco.
Quem traz a verdade merece a morte.

Caio Mello
18/09/2010

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Não

Não escreverei aquela mesma poesia.
Aquelas mesmas palavras,
antíteses clichês e
metáforas hiperbólicas.

Não dexarei que minhas palavras
caiam na mesmice!
Antes a loucura do sonho
do que a repetição da qualidade.

Ao se repetir um padrão,
perde-se o brilho do novo.
Antes errar experimentando
do que redundar nos mesmos versos.

Também não darei ouvido
a certas palavras que são,
dentro de mim, mais fortes
que as outras. O lirismo deve ser igual para todas.

Não revisitarei sentimentos antigos,
pois já foram escritos.
A poesia do passado não deve
residir na tinta ainda não gasta.

Não passarei horas a rever quem sou.
A melhor poesia está na gente, nas ruas,
no Amor maior, não no amor
que se tem por uma pessoa.

Não perguntarei para todos
se minha poesia é boa.
Boa ou ruim, ela existe.
(buscarei a poesia)

Antes o inverso do que o usual.
Antes a vida do que o intelecto.
Dentro a poesia de tudo.

Caio Mello
11/04/2009

Alinhamento

Mais um passo
mais eu faço
mais eu peço
mais confesso.

Caio Mello
03/03/09

Poema cínico

rezaf arap adan met oãn etnemlaer êcov, mif o éta esarf atse uel êcov eS.

Caio Mello
03/03/2010

O poema prático

O poema prático


























Caio Mello
05/02/2009

Maria

Ê, Mariazinha!
Aonde tu vai com esse dinheiro?
Num dá nem pra comprá dois pão.
Marieta, deixe de esquisitice, mulher!
Onde já se viu mulher empetecada
como tu pegar o dinhero dos outro?
Agora não precisa ficá acabrunhada
de assim, não! Vixe, Mariainha.
Tome logo o dinheiro, então, vá!
Como agora não qué mais?
Dinheiro roubado tem cheiro bom,
mas dinheiro dado tem cheiro de suvaco, é?
Hein? Deixe de meiguice, arteira.
Tô te dando esse de bom grado
só porque já vi o cão do avesso
e sei que tu ainda tem jeito.
Mas tem que trabalhá!
Nada de surrupiar a fortuna dos cabra.
Vai, rearranja, ande!
Isso memo!
Ainda é meio expediente
e eu quero a tua carinha amofunbada
aqui no serviço até o fim do dia.
É bom ter uma bichana como tu
por essas bandas, não sabe?
Traz cliente bom.
Eu que não quero é mais nada.
Hoje sô velho e lazarento.
Isso é lisonjeio teu.
Deixa de firula e vai trabalhar, Mariqueta!

Caio Mello
12/01/2010

domingo, 12 de setembro de 2010

Contrapeso

Ele aperta o botão, que torna-se vermelho.
Parado, espera. Bate o pé, tem pressa (todos têm).
A porta se abre. Ele entra. Fecha.
Dentro da caixa, aperta mais um botão e ascende.

A caixa de ferro solta um zumbido queixoso e depois um estalo.
Ele está cansado, o dia foi longo.
Uma parada antes do desejado.
Alguém entra, uma mulher jovem.

O substantivo mulher é tudo o que ele sabe, nada mais.
Ele já vira diversas vezes a moça (bonita!),
ela também mora ali.
Mesmo assim, dela nada sabia (para que saberia?).

Nossa, hoje o dia está quente... Começa ela
É... Parece que amanhã vai chover... Ele retruca, polidíssimo.
........... A caixa para de novo.
Deixando um até logo, sai a bela moça rebolando.

Ele suspira longamente. Estende os braços, espreguiçado.
Repreende-se pelo ato, a câmera dentro da redoma
de vidro fosco o vigia,
só Deus quem o vê.

A câmera olha sempre de soslaio,
sempre irritando e nunca claramente perceptível.
Ele decide encará-la, enfim constatando que
engrenagens não se intimidam assim tão fácil.

O porteiro gordinho deve saber muito da intimidade
dos moradores. Ele possui um olho mágico.
Por que viver tão alto?
Ainda falta uma boa subida.

Ele olha para o relógio.
Para que olhar? Ele já sabe de antemão o horário.
Porém, o vício o subjuga.
Libera mais um longo suspiro.

Outra para inusitada, mas que falta de sorte!
Um senhor manca lentamente
enquanto ele detém educamente a porta.
Fecha-se a porta.

O velho parece resolutamente calado.
Ele nunca vira o velho ali,
não poderia morar ali.
Admitiu para si próprio que não conhecia todos os moradores.

A porta abre-se finalmente para seu destino.
Ele desce da caixa, ela oscila ligeiramente.
Despede-se do velho maquinalmente.
O metal segue rumo.

Tateia a calça, em busca de chaves.
Enfim, em casa.

Caio Mello
17/07/2008

Milho

Você que ri por fora e chora por dentro
você que sente falta de algo que nunca teve
você que pede um obséquio e não o ganha
você que tem uma casca dura por cima do ser.

Sim, você está certo. O mundo está perdido,
mas entenda que ele não se perdeu há pouco.
Seus pais já foram concebidos num mundo
danado, tal qual seus avós e mais.

As pessoas parecem não querer amar, relutantes em
viver a vida plena. Você vai ficando velho e, com você,
seu sonho inconcretizado.
Há muito você desistiu dele (mas sabe que é mentira).

Você ainda ama e ama muito. Precisa falar
algumas coisas para certas pessoas, mas
lhe falta coragem. Precisa agarrar-se mais
a si mesmo.

Não relute. Nào hesite. Entenda que o mundo
já era deste modo mesmo antes de sua concepção, aceite isso.
Os homens sempre foram assim e
continuarão sendo (o paradoxo da sociedade individualista).

Não há nada que você invente ou faça que já não tenha
sido feito. Tudo o que disser, alguém lhe
dirá que já fez melhor (e fez melhor).
Tudo o que escrevo já foi escrito, ainda que eu não
tenha conhecimento.

Não esconda a sua fé. Não acredite que o fim
do copo será melhor que o princípio. Não
espere que não esperará, pois sempre se espera.
Amarre bem os nós para que não se afrouxem.

Por favor, por favor, não deixe de amar!
Sei que ama muito, afirmo.
O amor é a harmonia básica de vivência
do eu-introspectivo.

Você que sente dor, que tem saudades, que treme no frio,
que não tem mais paciência, que pensa em largar
tudo, que olha o céu e só vê nuvens,
que busca no ócio do trabalho a labuta da Arte.

Não tenha medo. É verdade, a dor não para.
Mas a vida vai pelo canto extremo da alma e
segue em frente. Não procure mais do que
necessita, nem adule o verde vicinal.

As cifras são altas, não existem safras, você não é Atlas.
Acostume-se ou padeça, enfermo são, etéreo lânguido.
Somos um saco cheio de pipocas estouradas.
De longe, somos todos iguais.
De perto, somos completamente diferentes.

Você que dirige, rouba, grita, estuda, trabalha, fuma,
conta, morre, vive, come, transcende, você que lê.

Caio Mello 24/06/2008

sábado, 11 de setembro de 2010

O monólogo do morto

Eu morri faz sete dias
numa dessas noites frias.
Posso dizer que deixei
a vida tal como rei:
numa louca apoteose
duma vida que se goze.
Hoje não conto mais dias
conto mesmo as alegrias.
Na minha morte eu lembrei:
a vida é a melhor lei.
Falam demais só da morte
como se ela fosse um norte
como se ela fosse tudo,
base do melhor estudo.
Mas a morte não é nada.
Ela é só o fim da estrada.
Nunca fez mover montanhas
só gera imagens estranhas.
Temos uma só certeza:
a cor da vida é beleza.
Estamos vivos no agora;
sabe-se lá noutra hora.
Dão uma errado visão
fazem tempo divisão
enchem a vida de medo
tornando a morte segredo.
Ela está escancarada!
Não é bonita, nem nada!
Aqui do meu lado morto
sinto-me na vida absorto.
E sinto-me vivo ainda
como algo que nunca se finda.
E o que muito me assusta
é ver o fim de uma busca
de homens ainda na Terra.
Eles largam cedo a guerra.
Não! Não pode ser verdade!
Lute! Contra a maré nade!
Oh, homens de carne e fé,
continuem fortes até
morrer vivendo lutando!
Façam na Terra seu mando!
Pior que viver na morte
é morrer na vida forte
simplesmente se esquecer
que olhos temos para ser
que estar vivo é o centro,
não se vive para dentro.

Vou lhes falar como encarar a morte:
soma de males de toda sorte
que buscam mostrar que são os mais fortes
que tentam arder como fundos cortes.

Mas são só partes de um quadro maior,
quadro que sabemos todos de cor.
Nós mesmos somos imagens no jogo,
somos nós que crepitamos o fogo.

Então, por favor, escutem o morto
que pode ter sido só homem torto,
mas da cripta esse corpo foi eleito.

O decrépito carrega no peito
morinbundo, mas deslumbrante feito:
morrer vida com profundo respeito.

Caio Mello
22/06/10

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Falhas

Pensei que a vida fosse um erro.
Mas, do erro, descobri meus erros.
E meus erros erraram seu caminho
até fazerem-me concluir que a vida está correta.

Caio Mello 10/09/10

Obs: a data aparece um dia para frente porque o relógio está errado, agora já passou da meia-noite, ou seja, já começou o dia 10 de Setembro.

O monólogo do ambulante

Tarde, senhô passageros.
Eu venho aqui pra vendê
todos meu mió produto
por um preço di banana.

Oceis pode procurá
por toda essa vizinança
mais nunca vai encontrá
coisa boua desse jeito.

Vendo bala e vendo doce,
tem Bubalu, tem Futrela.
Tudo cas mió fresqueza
qui eu não faço corpo mole.

Em casa tem sete fio
mas o qui fauta é comida.
Por isso eu peço favô
doceis podê miajudá.

É só me dá um real,
o troco du cobradô.
Num ônibus cheio assim
deve tê alma qui ajude.

E se tu passô cartão
e tá sem ninhum centavo,
pode me dá uma nota
que troco sempre vai tê.

Ô seu grande motorista!
Ô seu grande cobradô!
Eu sô muito gardecido
por deixá o meu trabaio.

Não vô mais enchê oceis.
Boa viage pra todos.
Meu povo, Deus tiabençoe.
Só com fé nóis segue vivo.

Améin.

Caio Mello 10/09/10

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Serafim

Serafino
Ser a fim
Será fino
Será fim

09/09/10

A saia

Na calada da saia
Vai um homem e vai a vaia
Vai um triste e mais um feliz
Destes que sempre forte se diz.

Saia longa, rodada saia
Venha loga, entra e saia
Que eu não tenho melhor lugar
Onde dizer de cor o par.

Saia nova, saia jeans
Destas que risonham fins
Com seus ares desatentos
Eu tento umas, tantas tentos.

Se for saia que esconde
Se esconde o rei, o esconde o conde
Todo homem tem mulher
E toda mulher faz o que quer.

É a distração da avenida
Do trabalhador já de saída
O verão se aprochegando
E as pernas no seu livre mando.

Mulata ou morena
Mulher grande ou pequena
Com seu gingado esperto
Mais perto meu bem, bem perto.

A saia quando gira sobe
Não há sóbrio que se sobre
Sobra só mundo todo a girar
Como num grito rouco de perder o ar.

E na hora de pegar a saia
Sai, saia, sai e que se caia
Que o atento não quer nada
A não ser mulher escapando a saia rodada.

Caio Mello
27/08/2010

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

sábado, 28 de agosto de 2010

A antilogia de uma paixão

Não, já não te peço mais.
Não vou voltar atrás.
Não tem mais como viver em paz.
Aliás, não seria nada de mais.

Fechar meus olhos bastou
para saber quem eu sou.
E o meu reflexo contido
refletiu um outro sentido.

No reflexo eu vi o mundo,
grande, bizarro, vagabundo.
Como se me faltasse uma interpretação para um quadro que achei bonito.
(mas era feio)

E você ali sentada a esperar,
como se nada fosse outro mar
como se tudo fosse verso
e eu vivendo corpo inverso.

Fanho, eu, rouco.
E, você, lúcida,
espreitando os detalhes como se me matasse
a cada segundo. Sempre.

Eu brincava ser de tudo,
mas tu me deixavas mudo.
Hoje brinco de ser nada
e tu eras a culpada.

Mas eu não te disse.
Como poderia te dizer?
Eu, saudoso poeta,
infiava-me pelo teu corpo infinito

e procurava teus detalhes a vida toda.
As perguntas eram traços tontos
que eu largava de lado
para depois refletir sobre o assunto.

Mas tudo tem fim na vida.
Tu estavas de partida.
Por que eu te teria feito?
Tu foste um erro perfeito.

Era um cálculo absurdo,
um império monumental, monstruoso
que se mantinha longe de todos.
Só eu te via. E só eu ainda te vejo hoje.

Os tempos mudaram, não posso negar.
Não sou mais o mesmo, não sou mais teu par.
Tu nem sequer tiveste o trabalho de compreender.
Se mim, não és tu, não vives, não sonhas.

Um dia, talvez, me deixes o corpo.
Agora me pesas um peso morto.
E eu, que consegui me sentir artista,
hoje estou fraco até mesmo na vista.

Estou mais complexo, sim, te confesso.
Foi tudo um grande e tristonho processo
de caber e descaber e voltar.
E voltei a ser o nunca se estar.

Amo-te. Vou te amar até o fim.
Tu vais rir sobre o que sobrar de mim.
Eu queria amar uma mulher feita.

Mas tu com certeza não és mulher,
não tens coração que pulsa sequer.
Tu és das mentiras a mais perfeita.

Caio Mello
28/08/10

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Soneto do menino

De um corpo feito, fez-se um corpo morto
Esparramado no chão, quadro torto.
Sobra só o sorriso no que se jaz,
mas, agora, o sorriso dorme em paz.

Se dorme em paz agora este menino,
não culpe o seu corpo fraco e franzino.
Pois foi a bala que engoliu o morro
em busca de desfeita e de desforro.

O frio que decidiu buscar a carne,
queria ser bala morta da berne.
Quem sabe no defunto bate a sorte?

E, talvez, o muro detenha a bala,
calando o que quase nunca se cala.
E o futuro não temerá mais morte.

Caio Mello
24/08/2010

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Pelos sete mares

E o capitão segurava-se furiosamente ao manche.
O céu era de um pretume infindável.
Nuvens cinzas ricocheteavam ao sabor do vento.

Desciam clarões pálidos que cortavam o céu e atingiam a Terra
parecendo veias gigantes que alimentavam a redoma de vidro.

O mar já não era mar.
Era um cimento líquido da cor do piche,
criando topos de morro em questão de instantes.

O Oceano rugia seus trovões
com a fúria de um leão
e em descompasso com o quedar dos raios.

Não sobrara muito
do que fora o barco.
Madeiras na água,
mais homens ao mar.

O grito dos desesperados
mesclava-se
com o som gutural
de pessoas se afogando.

O único que permanecia do lado de fora do barco
na escuridão infinita da noite sedenta
era o capitão.

Os marinheiros sobreviventes
haviam se enfiado nos intestinos
da embarcação e sentiam-se como fezes.

Mas não o capitão. Ele era viril varão,
de calos na mão e ferro no coração.
Homem sem comparação, hercúleo, homenzarrão.

Lutava aos urros e aos murros contra o Mar.
As gotas caíam do céu escuro
numa cadência tão forte

que o barulho da chuva
deixara de parecer um simples gotejar
para ser um som perene, penetrante, psicótico.

Então, o capitão entoou uma canção:

"Velejando o mar
minha vida inteira
vivi a lutar
vida marinheira.
Chuva, sempre caia!
Caia sempre forte!
Dou-te essa vaia,
pois não temo a morte!"

Depois, urrava seu grito insandecido.

O Oceano inteiro, do seu recôndito leito
até seu topo navegante,
fazia o possível e o improvável para deter o capitão.

Outro relâmpago rugiu, insanamente sedento.

Uma onda se armou,
forçou e subiu.
Era o Mar lutando
para o capitão
nunca ver sua filha
que nascera há pouco.

O navio começou a emborcar.
Os marinheiros choravam desesperados pela vida perdida.
Mas não o capitão.

Ele atirou-se ao mar
com as veias saltadas e os olhos injetados.
E, finalmente, morreu de raiva.

No raiar do dia seguinte,
quando o sol rompeu o céu e calou a chuva,
ouviu-se nas águas a seguinte canção:

"Marinheiros de ilustre embarcação,
ouvi bem o que diz o capitão:
o mar é meu e eu não divido, não!
Pois passei por nefasta aprovação.

Se buscais conhecer esta lição,
Olhai o que diz vosso coração.
Estais dispostos a tudo abrir mão?
Se sim, vinde cantar essa canção.

Vinde lutar pela vossa razão.
Vinde esquecer que tivestes nação.
Vinde vencer segurando o timão.

Melhor que viver uma vida em vão
é nadar no infinito do Mar são.
Vossos sonhos na água salgada estão."

21/01/10

Esse poema também não ficou com a distribuição espacial com a qual ele fora feito. De novo, é só me pedir.

O brasileiro que queria ir à Lua

E o nome do garoto era João.
Nascera numa família muito pobre
que morava num barraco perto de São Paulo,
ao pé da Rodovia dos Imigrantes.

Seu pai morrera quando ainda era muito novo,
atropelado por um caminhão desgovernado na Rodovia.
João não tinha irmãos e sua mãe não queria casar de novo,
pois ainda amava demais o marido falecido.

O pequeno tinha um sonho guardado com pudor:
ele queria ir à Lua.
Passava noites e noites deitado na grama
perto da sua casa, olhando para o céu.

Nascia com a Lua nova
lutava com a Lua crescente
reinava com a Lua cheia
chorava com a Lua minguante.

Nada tinha mais importância para ele
do que sua noiva de branco,
a esperá-lo, sorridente, nos confins do Universo.

Um dia, tomou coragem e disse à mãe:
“Quero ir pra Lua”.
Sua mãe sorriu resignadamente e lhe respondeu:
“João,
faça isso não.
Não escuta teu coração.
Vai trabalhar, ganhar teu pão;
é melhor voltar os teus olhos pra razão...”

João até que tentou esquecer a Lua,
mas não podia.
Ela estava sempre ali,
tão grande, tão redonda, tão linda...

Na escola, o professor dizia:

“Vejam que poder!
O homem, tão pequeno,
inventou a nave,
a força, o foguete,
jogou-se pro céu
e chegou na Lua!
Os americanos
investiram muito
chegaram primeiro.”

João teve raiva de si mesmo.
Por que nascera brasileiro?
Por que nascera pobre, num barraco aos pés da Rodovia dos Imigrantes?
Descobriu que nenhum brasileiro
jamais estivera na Lua.

O rapaz sentiu falta de seu pai.
Teve vontade de também morrer atropelado
por um caminhão desgovernado.

João chorou muito.

Ele não sabia o que fazer.
Quis bater na Lua, mas ela era inatingível.

Decidiu seguir com a vida.
Arranjou emprego como garçom.
Esqueceu-se de sua antiga noiva
e começou a sair com outras garotas.

E, por certo tempo,
ele foi feliz.

Mas bastou-lhe ver o corpo
da primeira mulher nua
para se lembrar da sua Lua.
O coração ardeu em chamas!
Ele teve ódio e, furioso,
largou a mulher na cama.

Era Lua cheia.

João foi para um morro bem alto,
próximo do barraco em que ainda vivia com sua mãe.
Louco, desregrado, com olhos vermelhos e marejados,
João gritou:

“Escuta aqui, Lua!
Agora eu te odeio!
Te amei toda vida,
mas eu fui largado.
Diz! Cadê você?
Conta a sua ausência!
Por que sofro tanto?
Não há quem aguente
sua pele distante
seu carinho longe.
Eterno silêncio
foi tudo que ouvi
esses anos todos
atrás de você.
Tu nunca me quis!
Eu vou me matar.
Desisto de tudo,
espero que entenda.”


Mas veio do céu um forte clarão.
A Lua disse: “não se mate, não.
Eu te amo, João. Esquece a razão.
Vem logo morar no meu coração."

Desceu do céu uma escada comprida
e o rapaz se esqueceu da triste vida.
Subiu rápido a escada infinita
deixando pra trás a cidade aflita.

Dizem que virou rei do Universo,
que vive feliz no infinito imerso
sem caminhão e sem homem perverso.

Hoje, de toda casa e toda rua,
sem esforço, é possível ver a Lua.
A João, toda nua e toda sua.

29/11/09

Esse poema não saiu perfeito no blog porque não consigo colocá-lo com a distribuição espacial das palavras como eu havia originalmente feito. Qualquer coisa, é só mandar um e-mail que eu mostro o arquivo original.
O Brasilerio que queria ir à Lua reúne várias noções e ideias que fui construindo ao longo do tempo, talvez mais para frente eu explique a concepção mais detalhadamente.

domingo, 8 de agosto de 2010

Vinho

Já no copo vejo o fundo,
porém ainda vejo fundo e meio. Se visse só o fundo já seria o fim
e só pessoas que ignoram o meio vêem só o fundo.

Para que correr para a garrafa
se ainda há meio copo?
Deste modo, acabará meu vinho
e ainda terá muito vinho no meu copo.

Ao invés de teimar que não há mais vinho
é melhor deixar o copo na mesa. Calma.
Vou olhá-lo de longe, meio inclinado,
para ver realmente quanto vinho há.

Olhar o copo de modo oblíquo
leva-me a dois resultados antagônicos:
ou haverá mais vinho do que vejo
ou haverá mais vejo do que vinho.

Fato: não vou largar o copo e escrutiná-lo.
É melhor crer que ainda há fundo e meio.
Assim, sempre haverá menos vinho do que quero
e mais do que esperava ter.

19/09/07

Dizer

As palavras
não são palavras,
somos nós.

30/02/10

Da Natureza

        Um amigo
    Dois abraços
   Três vontades
Quatro lágrimas
  Cinco destinos
  Seis repetições

                          Sete mentiras
                          Oito dores
                          Nove certezas
                          Dez loucuras
                          Onze pedras
                          Doze repetições

15/05/10

Agá

Sê tudo
Sê todo
Sê todos
Sê sempre

Ama para compreender

Não julgues
Não fujas
Não faltes
Não morras

Olha o copo de leite em tua mão

Tal cores
Tão vivas
Tão brancas
Tão juntas

E tu, nesse mundo, a separar!

07/02/10

Haicai da inspiração

O palco é silêncio
A verdade está nos homens
O verso é loucura

13/12/09

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Balada da praia ensolarada

Um dia na praia
O sol resplandece
O mar é sereno
A areia está quente
As ondas tão calmas
As nuvens tão fofas
Gaivotas no vento
E uma brisa doce.
Garotas bonitas
De corpos morenos
Nadando no mar
Têm rostos talhados
De traços suaves
Obras primas da
Natureza mãe
Todas essas moças
Que estão hoje na
Praia sem preocupas.
Mal sabem os homens da
Verdadeira vocação
Inerente à alma do
Bucolismo em demasia.
Pois os olhos não têm força
Para ver o que se passa
Por dentro da casca esfinge.
Decifra-me ou te devoro
Devoro-te pois sou homem
Humanizo pois há carne
E a carne merece sangue.
E somos todos mulheres
Gostosos por fora e mestres
Por dentro, no fundo d’alma.
Arquétipos da loucura
Cineastas da loucura
Introspectos da loucura
Correndo vagas do mar
Banhando-nos no sol forte
Fazendo vermelha a água
Que era antes tão translúcida.
Garotas tão lindas
De garras e dentes
De urras e dores
De sombra e de fúria.
A areia tão fria
De grãos circunspectos
E monstros ocultos
Não zela em guardar
Segredos infames
Que os homens estúpidos
Cínicos, ocultam.
É o cheiro de enxofre,
podridão na vida
deixando suas marcas
como se pegadas
dum pé tão saudável.
Os montes são túmulo;
A arrebentação
Ali morre e finda
Qualquer devaneio.
Que nadem as moças
De saúde muita!
Mas vale lembrar:
Bucolismo em demasia
É o enigma da esfinge.

17/10/09

Exteriorização

Há um homem no ponto,
esperando pelo ônibus encostado na parede.
Porém, o ônibus nunca chega.
Impaciente, agora ele berra por um trem.

Porém, o trem nunca chega.
O homem é só fúria.
Num acesso bestial, cerra o punho e
o atravessa para dentro de sua garganta.

Abre a mão já dentro do peito e tateia pelo coração.
Ao encontrá-lo, puxa-o para fora.
As vísceras ganham liberdade, o chão é vermelho,
a calçada está estreita.

Ele sabe que ninguém jamais deve fazê-lo,
mesmo assim, o fez. A partir deste momento,
existem pouquíssimas coisas que podem pará-lo.
Despreocupado, segue adiante.

A carne mostra o que ele tão zelosamente guardou
toda a vida. Os olhos inchados choram sangue.
O coração deixa à mostra todas suas cicatrizes
enquanto bate melancolicamente.

Os pulmões negros crepitam a fumaça,
inspirando dor, fuligem, solidão e
expirando um ar nostálgico e demasiadamente
sombrio. A narina está pendente.

Os intestinos caíram, em parte, no chão e
agora são arrastados pela travessa ignota.
A cada metro andado, ficam mais puídos,
mais do caminho o lixo absorvem.

Os tendões repuxam-se, distendem, tremem,
num ciclo inadvertido e ininterrupto.
Ele anda num passo cambaleante, num passo de
homem sem rumo, de vida sem destino.

Os ossos alvos constatam a rigidez do
sistema mecânico que sustenta o mundo.
As costelas, agora abertas em forma de asas,
eram antes uma prisão do que uma proteção.

A língua oscila, desfalecida e esquecida
a um canto da boca.
A baba é de um material pútrido
cujo cheiro assemelha-se ao da depressão.

Os músculos retraem-se num frenesi descabido.
São grandes, são fortes, pois agora a larga
capa de gordura que antes os cobria
dependura-se na cintura.

Ele está feliz, muito feliz. Mas perdeu muito sangue.
Sabe que entrou por um caminho sem volta.
Tudo na vida tem um preço.
O ônibus chega enfim, mas ele já não pode mais embarcar.

26/06/08

Desmembrando a existência para tentar defini-la

Ao longo do tempo, vários teóricos discutiram o sentido da nossa existência. Desde Platão e seu Mito da Caverna até filmes de Hollywood como “Matrix” (no diálogo do primeiro filme entre Morfeu e o agente Smith), muitos tentaram definir razões pelas quais as pessoas possam viver. Mas, talvez, não seja possível definir a existência como um todo, uma massa indivisível a ser mensurada. Sendo um substantivo abstrato, a palavra “existência” carece de uma figurativização. Não podemos imaginar a existência sem ter que imaginar alguém ou alguma coisa existindo. Se não há como medi-la nem exemplificá-la, talvez seja melhor desmembrar a palavra para que se encontrem definições mais próximas da nossa vida. Retira-se a “existência” de seu palanque de superpotência alheia à lógica humana e traz-se para perto da vida quotidiana.
Por exemplo, podemos tentar definir a minha existência. Ou seja, qual o significado da vida de cada um? Somos construídos ao longo do tempo por experiências e por outras pessoas, vivenciamos datas e fatos que cabem somente na forma de uma vida. Um soldado que lutava pelo seu país na Primeira ou na Segunda Guerras Mundiais pode ter feito de sua existência uma luta perene pelo seu país, pela bandeira de sua nação. Diametralmente oposto, temos Gandhi, o líder indiano, que lutava pela não-violência. Ambos fizeram de suas vidas uma batalha sem trégua até o fim pelos seus ideais. São duas definições divergentes de existência. Para um mendigo que mora numa grande metrópole, como São Paulo, existir pode significar comer, beber, dormir e fumar. Não uma luta, nem uma trégua, mas viver a esmo, seguindo basicamente seus instintos.
Define-se também a existência na contemporaneidade. O homem moderno está longe de seus ancestrais. Não precisa mais matar animais na selva, depois de longa caçada, para obter alimento. Não precisa passar fome por dias a fio até chegar a colheita. O homem da Idade Antiga vivia com condições precárias de saúde e sabia que morreria, no mais tardar, aos trinta anos. O homem da Idade Média europeia vivia sob o medo constante do ataque de bárbaros. Hoje, temos carros, televisões, internet, mercados de ações, aviões, celulares, fotografias digitais. Será que nossa existência continua sendo a mesma? Talvez nossos objetivos sejam outros, já que sabemos que temos grande chance de viver muito, optamos por ter filhos mais tarde, ou não ter filhos, ou nem casar. O Homem existe cada vez menos no plano físico e passa para o plano metafísico. Somos as letras, a internet, as fotos, uma rede de dados que circula pelo mundo todo e representa quem nós somos.
E qual seria a definição de existência para quem ama? O amor cria uma condição diferente de vida. Já dizia Camões: “Transforma-se o amador na coisa amada.”. O ser que ama é o amor, tem em si a necessidade e a cura para seu próprio problema. Como os casais que sentem falta um do outro quando estão separados. Sofrem de saudades e a sua existência toma novo rumo. Ou quando um pai afirma que daria a vida pelos filhos. Assim, sua crença abandona seu corpo e passa a existir em outras partes da vida.
A existência também toma várias formas conforme vão passando as fases da vida. Para um bebê, o raiar do dia, o quedar da noite significa a descoberta de um universo completamente novo. Existir é descobrir. Para uma criança, a vida continua cheia de aventuras, sem qualquer limitação física, sendo o quotidiano uma eterna provação de seus limites. O jovem já vive em sintonia com o mundo ao seu redor. Teias sociais são construídas e a vida toma rumos muito maiores. O adulto, imerso como está na realidade, vive o extremo intelectual que seu corpo permite. O idoso vê seu mundo sendo contraído pela sua condição física, abrindo sua condição metafísica para que possa seguir em frente. Charles Chaplin afirmou que a vida está errada, que deveríamos primeiro morrer para depois nascer e voltarmos a ser jovens, como se o ciclo da existência deveria se tornar mais forte ao longo do tempo. Mas, talvez, a graça da vida esteja na sua constante precariedade, na luta pela sobrevivência, no júbilo incessante de se ter noção plena da existência. O medo da morte nos torna vivos.
A existência também depende de condições físicas. Um ótimo exemplo é Stephen Hawking, um dos maiores físicos da atualidade, que sofre de esclerose lateral amiotrófica, doença degenerativa que paralisa os músculos do corpo. Com certeza, esse brilhante homem não teria oportunidade para ser um atleta, ou mesmo para exercer profissões que dependessem de seu físico, como bombeiro, operário, médico cirurgião. Sua realidade foi moldada forçosamente pelo seu corpo. Hawking demonstra que a batalha da vida pode ser muito mais complexa do que pensamos e figura uma solução encontrada para seguir em frente com uma alma presa à sua prisão carnal debilitante.
As diversas religiões também nos abrem diferentes interpretações do mundo. (É impossível tentar descrever nesse pequeno texto grandes doutrinas de religiões milenares, então pequenos resumos, ainda que incompletos e com margem para interpretação, podem elucidar um pouco essa questão.) O Budismo fala em seis domínios da existência, todos sendo incompletos porque acabam em decadência e morte. A reencarnação se faz ao redor desses mundos, sendo a meta final evitar a reencarnação e, finalmente, atingir o Nirvana, ponto de existência plena. Tanto o Budismo e o Hinduísmo acreditam em reencarnação e no karma: o ciclo da vida, Samsara, é influenciado pelos atos das pessoas que geram diferentes karmas, ou seja, atos ruins efetuados nessa vida podem gerar um karma negativo e influenciar a próxima vida. Em ambas as religiões, é preciso sair da roda da Samsara para se atingir um estado maior. Já as religiões cristã e judaica pregam a noção de uma só existência sob o jugo de um deus forte, sendo que os católicos acreditam já ter vindo o filho de deus para a terra, Jesus Cristo. Para os católicos, há o inferno: local de eterno sofrimento destinado para aqueles que foram ruins durante a vida. Portanto, na existência de um católico, o mal deve ser evitado quase sempre para que a vida após a morte seja aproveitada no paraíso. Já os judeus, preocupam-se mais em definir uma doutrina para se seguir ao longo da vida, sem ter que rotular categoricamente a existência de céu e inferno. Um ponto que divide o budismo-hinduísmo do judaísmo-cristianismo é a reencarnação, que pode gerar diferentes interpretações sobre a importância de uma só existência. Um ponto que une essas quatro religiões é a negação de atos considerados ruins (o “pecado” dos católicos), sendo a busca de uma vida plena e harmoniosa uma meta comum.
Por fim, após analisar a existência de vários ângulos, qual seria o sentido dela para quem está prestes a morrer? Teríamos as famosas cascatas de imagens de tudo que nos aconteceu correndo perante nossos olhos? Sofreríamos de um medo irrefutável que nos devorasse a alegria enquanto sentiríamos gelar nosso corpo? Ou talvez o júbilo de atingir um estado maior de vida finalmente repousasse em nossos ombros? Essa é uma questão que fica aqui aberta. Para nós, meros mortais ainda nesse frenesi carnal, basta tentar definir o que nos é tangível e seguir com o ilustre quotidiano da existência.

31/01/2010

Cronologia

Os textos colocados nesse blog não estarão necessariamnete na ordem cronológica em que foram escritos. Por isso, cada um terá a sua data de escrita e data de postagem no blog - que podem iguais ou não.