sábado, 2 de agosto de 2014

Desexistir



A vida vai nos deixar.
Não importa o tamanho das dores sofridas,
nem das alegrias aproveitadas.

Num dia qualquer, simples manhã de outono,
ou tranquila noite de verão,
nossos olhos vão se fechar
e o nosso coração vai parar de bater.

Seja por desejo próprio,
doença grave
ou infortúnios da vida: deixaremos de existir.

E todo aquele peso que construímos,
todas as nossas necessidades, todas as angústias,
os sofrimento inimagináveis
não farão mais o menor sentido.

Nós não estaremos ali
para pagar o aluguel no mês seguinte,
nem para dar comida ao cachorro,
muito menos para reclamar do trânsito no bairro.

Não entraremos no bar para pedir uma cerveja bem gelada.
A fila do supermercado vai ficar uma pessoa mais curta.
Nossa caixa de e-mails vai ganhar um recheio volumoso e inapagável
sobre promoções que nunca conseguiremos aproveitar.

Seremos cremados, carpidos, rememorados,
banhados em nostalgia e memórias.
E, no mundo, já não mais andaremos.

Até a vida mais miserável, mais inútil,
vai acabar um dia.
Aquele que se odeia, que tem raiva do mundo inteiro,
que colocaria fogo em tudo se pudesse,
também vai morrer.

E a sua dor vai simplesmente deixar de existir.
Nunca mais vai ser sentida, nem debatida,
nem analisada por psicólogos.
Ela perderá seu peso, sua importância, seu significado.

Infelizmente, o iate também não poderá mais ser utilizado.
Preso no cais, eterno cão sem dono,
sentirá falta do tempo de opulência e navegação.

Paraíso ou não-paraíso, metafísica,
transcendência, karma, walhalla,
orixás, reencarnação...
Algumas diferenciações são relevantes só para os vivos.
Os mortos nunca debatem a morte.

Eles não se importam.
Isso nós podemos saber, desde já, com toda certeza.
Quem já morreu não está mais preocupado em deixar o mundo.

Nós que temos a paura do fim.
Fazemos contas, cálculos, regimes, deixamos de fumar,
corremos no parque, cortamos a sobremesa...
Os mortos não.

Se tivessem pulmões e lábios,
tenho certeza de que os defuntos estariam rindo de nós
com muita vontade e espanto,
perguntando-se:
“Como eles se importam tanto com tão pouco?”

Caio Bio Mello
 02/08/2014



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