quinta-feira, 18 de junho de 2015

A morte de um ateu



Um campo de batalha. O chão de terra.
Ruínas de edifícios por todos os lados.
O Ateu corre. Em suas mãos, uma espingarda.

O som mais alto que chega aos seus ouvidos
é de sua própria respiração ofegante.
O rosto está coberto de suor.

O som intermitente de balas zunindo
faz com que seus olhos, ilhados no rosto sujo,
estejam sempre alertas.

O Ateu corre, desfolhando o ambiente
com seu breve olhar de rapina.
Uma bala range perto de seu rosto.
Ele mira, puxa veloz o gatilho. Mais um cadáver.

Uma explosão ao seu lado. Seus olhos piscam.
Em meio à névoa dos resquícios da explosão,
o Ateu delineia uma arma. Precisa reagir!

Mas não há tempo.

Primeiro, um estampido rouco.
Segundo, uma flor de lótus.
E, finalmente, a dor.

Ele cambaleia, trôpego,
até uma parede desnuda.
Ao chegar próximo,
cai de joelhos no chão, agarrando-se à espingarda.

Com o queixo no peito oscilante,
o Ateu olha, através de sua roupa rasgada,
seu ventre. Inundado de sangue.
Parte de suas tripas fogem da cavidade abdominal.

Os órgãos que, agora pulam para fora,
haviam lhe servido tão bem ao longo dos anos...
Estão amorfos e ele não saberia dizer quais são.
Também não faz ideia da extensão do dano.

Seu sangue quente começa a escorrer por suas pernas.
Ele sente que perde o líquido numa velocidade assustadora.
Sentindo-se irremediável, o Ateu finalmente larga sua arma,
talvez já inócua para a ocasião.

Ele coloca ambas as mãos trêmulas em sua barriga,
tentando estancar de alguma forma o sangramento.
Seus olhos piscam vorazmente.
Em menos de um minuto, o Ateu percebe que é inútil
tentar fechar o ferimento.

Então, ele se desespera.

Não sabe no que pensar, nem por onde começar.
Tenta gritar por ajuda, porém seu corpo arde.
Ele sente que o ferimento inteiro queima.

Ele começa a sentir frio. Suas mãos e pés estão gelados.
O Ateu controla-se para que não comece a chorar.
Seus lábios tremem.

Ele olha em volta, como um cão sem dono,
em busca de algum alento. Mas não há.
Seus joelhos não aguentam o fardo do corpo
e ele desaba ao chão, olhando para o céu.

Dia nublado, gris.
O Ateu passa a respirar muito rápido,
limitando os movimentos de seus pulmões.

Ele se agarra desesperadamente ao seu passado,
tentando fazer com que seus sentimentos
o impeçam de desistir. Pensa em seus pais, também mortos.
Mas não consegue sustentar a imagem.
A dor sobrepuja qualquer pensamento.

Seus membros se desmancham junto ao chão,
já desprovidos da habilidade de se sustentarem.
Ele chora descontroladamente. Não consegue impedir.
Sente a imensidão do mundo em suas costas.

Percebe (como sempre percebeu)
que a sua ínfima presença não representa
merda nenhuma para toda a existência.
Ele vai se tornar banquete de larvas,
vai se juntar ao esterco
para ser adubo de plantas.

Sua audição começa a ficar abafada.
Ele pode sentir ainda seu rosto, seu ferimento
e seu peito. Mas perdeu a sensibilidade
dos braços e das pernas.

Já não pode mais ouvir. Nem mesmo o silvo dos tiros rasantes.
Permanece estatelado em sua mórbida posição.
Absorve a infeliz constatação de que esta
será a última posição que assumirá em vida.

O sangue agora desliza vagarosamente em cima do seu peito.
Ele parece estar menos líquido, mais viscoso.
Talvez porque esteja se misturando à terra e à sujeira do chão.

O Ateu permanece de olhos bem abertos,
mas agora já não existe mais céu. Nada mais.
Ele não pode ver, não pode ouvir, não pode falar,
não há mais para onde correr.

Sua carne está presa na ânsia de permanecer viva,
mesmo sabendo que nunca terá sucesso.
Ele sente frio. Muito frio.
Está completamente sozinho.

O Ateu regride à condição de espasmos,
sem nem conseguir discernir qual foi seu último pensamento.
Está morto. E a morte é horrível.

Caio Bio Mello
18/06/2015

terça-feira, 16 de junho de 2015

Solidão repentina



Seu corpo frio
na mais alta montanha do mais alto [eu] morro
esmaece contra a imensidão.

O que sobrou de ti homem,
além da solidão?
Uma lástima, um touro, um paquiderme?

Sobraram-te parcos versos
inserenos, débeis como a lua minguante.
És ninguém. Não serás ninguém.

Estás preso num quarto, escuro e gelado,
enquanto bailam teus olhos
na mais perfeita tradução do nada.

Estás só. Não há ninguém,
objurgou-te a mais completa obliteração.  

Ouves? Consegues ouvir?
É o silêncio, invadindo o (in)cômodo
com suas águas de veneno.

Exatamente isso que ouvirás
in saecula saeculorum
enquanto te abafas e estás impedido de dormir.

Caio Torres
16/06/2015

segunda-feira, 8 de junho de 2015

(sem título)



Os olhos desta noite
não sabem rezar.

Estou com saudades.

Sou falho



Destino, oh, Destino,
formosa distância
entre o presente e o futuro.

The yellow brick road

Tuas obviedades não mais saciam
o meu pensar. Não sou teu patrimônio,
não pertenço àquilo que nomeias fatídico.

Eu sou o vazio do silêncio
a reprodução da humanidade
o canto em bando dos genes
a necessidade da carne
os cabelos gris.

I am the child-color inside my mind.

Permita-me desconhecer
minha causa mortis.
Deixa-me respirar por dias e mais dias seguidos
sem que reconhecesse motivo algum
em tal ausência de privação.

O meio o começo e o fim

Juro por minhas carnes amar e lutar,
na fúria pelo sabor das nuvens
e a ânsia dos pulmões.

Repassarei o que é meu
(e que o é de bom tamanho)
pela sequência que se faça vitoriosa,
após uma miríade de seres.

Alea jacta est

Rostos enfileirados e soterrados
em pilhas
como se a origem de um homem
fosse diversa daquela de seu similar.

Virá a derradeira vida, já mal concebida em seu ventre,
no posecatombe apocalíptico, sendo parida
para amargamente perceber
que seu fim brotou de seus ascendentes.

É isso, Destino, somos todos falhos.
Nossa natureza verga o idealismo
e transforma em ideais totalitários.

Então, ao menos, dá-me o prazer da poesia
(esta breve irreverência que mantenho com zelo)
para que eu possa rir em minhas tripas
da minha própria limitação.

Caio Bio Mello
08/06/2015