sábado, 30 de julho de 2011

Ragia

Diziam-me dos homens
e a vontade louca de ser.
Aquela ânsia descabida
de devorar um mundo tão complexo.

Era um circo, um teatro,
um palco, um dia inteiro.
O sol ali a brilhar no canto,
meio ressabiado com toda a situação.

Conspiravam desassossegos
numa tarde de sábado,
enclausurados em
seus desejos mais torpes.

Dizendavam falantes
me pedindo que desfosse
antes do sersó
e nunca quentendendo.

Diziam do ser
diziam do mar
erravam-me todos
contavam os nós

sem nunca acertar
o que mais cabia
na falta-caminho
homem solitário.

Então,
sentei-me a olhar a vida passando vagarosamente perante meus olhos. Por que raios pensar? Por que não somente liberar a vida e seguir adiante, num modo de vida simples e quotidiano? Essa alma que me devorava, essa mesma alma que tinha ânsia absurda por dizer o indizível, por tentar ver nos olhos dos outros a beleza infitnita. A busca constante pela perfeição, o mais belo, o mais puro, o mais coeso. Não era eu quem queria, eu não tinha sequer opinião sobre esse desejo.

Desejo longo de dentes
carnudos-ponta-de-faca
me procurava de noite
e povoava meus sonhos

Com os sonho mais loucos
com os dizeres mais palatáveis para um ser que vive. Sim! Aquele desejo incontestável de continuar se alimentando das estrelas. O céu, o mar, o infinito misturados numa grande bolha de sabão, todos a dançar alegres. E ninguém mais podia me dizer o que diziam aquelas palavras daquele modo. Só elas diziam, somente elas eram completas o suficiente para abrir os trechos que mais me eram fechados.

Tu,
que buscas em nós o desejo,
encontra em ti antes de tudo
o que mais te devora por dentro.

Vive o que foi feito para se viver.
Possuis dentro de si a resposta
para as perguntas mais indizíveis,
vês por entre as pessoas.

As estrelas dizem que são eternos
Nós dizemos que são todos sem fim
São mecanismos que giram externos
O nó que simplifica o não dum sim

Busca ali na lágrima matinal
Certo sabor que deve ter aurora
Busca no começo do ser final
Aquilo que não tem dia nem hora

A saudade
é coisa simples que cabe num verso que só que há de ser redito conforme passam os tempos.
A saudade
precisa ser reconquistada, destruída, limada após cada encontro.
A saudade
é necessária a verso descoberto, aquele que passou um dia inteiro tomando muito sol num parque veranoso.
A saudade
é o passado presente buscando um futuro com os olhos curtos que nunca se desenlaçam.
A saudade
é um nó simples que pode ser desfeito com qualquer desaperto que pode ter a alma.
A saudade
é você distante de mim hoje

A saudade
que não conquistamos, vivemos, transferimos, emprestamos, tomamos como dor do próximo, devoramos como falta de vontade que não pode e nunca será contada nos dedos.

Ela também é poesia.
Tudo tem uma quantidade de poesia dentro de suas moléculas. É um elemento desquímico que vive na alma das pessoas, reflexo-luz do mundo paralelo de nossos olhos. E são os ouvidos que as trazem para o mundo das coisas. A mente mistura-se com a alma, os olhos sentem o brilho que tudo carrega, a boca transforma em dizível e os ouvidos captam a realidade, fazendo a luz atingir o que os olhos cegos não conseguem ver.

Todos nascem vendo, enfim.
O problema é a dureza da vida.
Ela vai engolindo os homens aos poucos
fala de mercados

fala de ações na bolsa,
de problemas com o dólar.
Então desaprendemos o que nascemos com
e aprendemos aquilos de que nascemos desnudos.

Formamos capa-dura,
o hard-cover dos best-sellers americanos
e esquecemos logo cedo
qual fora o brilho que nos foi conteudado.

Toda
hora
sinto
pouco
sinto
muito
tanta
coisa
essa gente
somos todos
mesma coisa
somos poucos
esquecidos
somos poucos tantos
somos coisas tantas
tanta coisa somos
ontem hoje seja
como pode deixa nunca
nunca sendo nunca querem

nesta tarde.

Enfim, uma tarde só na qual o verdiamarelo é mais um detalhe jogado nesse tanto. Tanto demais para caber num peito único, numa alma faminta, raquítica .

O silêncio
das palmas
ecoava plácido
pelo trampolim
plim plim
e todos os homens fumando malboro usando seus ternos bem talhados que sustentam a sustentável coisa humana.

Estava escrito num muro perto de casa “serumano é ser humano”.
E eu concordei.

Caio Mello
30/07/2011

domingo, 10 de julho de 2011

Deusa

Hoje a poesia
é um eterno silêncio
que vai me corroendo a alma,
derretendo-me vagarosamente.

Ela é uma máquina.
Constante, incisiva, absurda,
necessária, elétrica,
um rodar constante de engrenagens.

A escuridão vai banhando
as peças
para que elas possam continuar
rodando o silêncio que hoje me sufoca.

Sinto-me enjoado, vazio, gelado.
Meus membros vão regredindo
vou-me tornando cada vez mais fraco.
Posso sentir meus músculos atrofiando.

Meu coração já não bate.
Ao contrário, ele também vai se desfazendo.
E, no lugar da minha carne, encontro cabos.
Ferro, zinco, lítio, monitores, cabos de tomada.

Meu corpo todo torna-se mecânico.
Minhas idéias tornam-se binárias.
Meus braços tornam-se ferramentas.
Meus olhos tornam-se câmeras que gravam, mas não veem.

E, no que antes era o meu peito, o que há agora?
No interior do meu novo cofre de chumbo,
encontro um barulho peculiar.
Não ouço mais nada do velho tumtumtumtum.

Tudo que ouço é o rugido abafado
de um monstro que me conquistou
sem mesmo eu o saber
tiquetaquetiquetaquetiquetaque

quase sempre prestes a explodir.

Caio Mello
10/07/2011

sexta-feira, 8 de julho de 2011

O céu à noite de liberdade

De repente, eu era imensidão.
Um traço forte cortando o céu
numa quinta-feira à noite.

A liberdade em raios fortes
cruzando o infinito
com um silvo doce
de sentimento potente.

Eu era grande. Era tudo. E adorava ser. A Lua assim ali de olhos bem abertos. E meu coração era um raio enorme que riscava o horizonte gritando seu trovão com um som retumbante. Eu era uma nuvenzinha discreta que fazia chover sozinha ali no canto, meio cinza demais ela. Mas ninguém ligava. Entao eu era

o tufão.
Soprava, ventava muito.

Eu soprava a noite toda
Revirava os lençóis
Esquentava os passantes
Eu loucava os transeuntes!

E depois eu era o mar
Uma onda passageira
Um sopro no seu ouvido
Na calada do que nunca se cala. E eu era mais. Era muito. Era assim assim sim sim sendo sibilo suave entrecortante metade do meio que já nada e era muito muito mais muitomesmodeseperderdevista e já não sabia mais.......... ser.

Ser era complicado.
Desconexo.
Incoeso.
A incerteza de um homem
à beira da libertação.

Abrir a porta de uma vez só
correr os dedos
ali era tão quente
ainda foi e será

Em maio abril a vida continua passa boi passa gente um monte de momentos entos em nós lentos como foi como deve sersin sernão serdevez inquan passa mais de uma vez aquele caminho sem volta de um puxa e trás que não tem fim. Mas não era pra ter.

E se fez silêncio da tempestade.
Ímpeto glorioso sorridente.
A liberdade que não vem da mente:
vem do que não se chama mais idade.

Raízes cruzavam céu com leveza
Os pássaros cruzavam como luz
Simples possibilidades certeza
esses corpos simples, doces e nus.

Harmonia-som num só desenlace;
pensar “que esse momento não se passe”.
Amar-noite. Como não percebê-las?

Então céu foi se tornando o meu leito
E eu descansava com as estrelas.
O meu momento chamava perfeito.

Caio Mello
08/07/2011

terça-feira, 5 de julho de 2011

Um na história

Marco era um forte. Carregava feijão, soja, milho, cimento, madeira, maçã, laranja. Usava terno de vez em quando. Noutros dias, suava muito e subia o morro com facilidade. Aos domingos, ia na missa rezar pra Deus nossinhô deixar sobrar o que se faltava naqueles tempos. E, quando sobrava, era mesmo muito chamapanha que pulava alegre nos copos, espumando de felicidade.
Marco andava pela avenida larga um sol de inverno. O terno não fazia muito incômodo naquele Julho, mas em Janeiro ia fazer muito mais. Sol de verão come a gente de dentro pra fora. O sapato ecoava seu andar no reflexo dos prédios grandes.
Marco cansou de fazer barulho. Era pouco, quase nada. Decidiu ser prédio. E foi prédio por uns bons três meses. Velhinhas passavam manhãs inteiras em suas varandas jogando buraco. O cachorro cavava seu buraco ali no jardim. O porteiro dormia sem dó nem piedade na portaria. Depois acordava, vermelho. O faxinero aplicado deixava os móveis reluzindo como novos. Era atento, talentoso e tranquilo.
Marco cansou disso também. Ser prédio era muito estático. Então quis ser música. Foi a roda de samba que tocava no bar do Zé Pedro aos sábados depois do almoço. Todo fim de mês, tinha feijoada, samba e pinga aguada pra não matar os beberrentos da região. Mas o valor cobrado era o mesmo.
Marco, enfim. Ser música era muito efêmero também. Queria mais que isso pra sua vida. Vestiu terno novamente. Levantou os braços, abriu bem as mãos. Os prédios começaram a dançar ao sabor do vento. Uma brisa de proa fazia rodar de leve o catavento ali na janela do menino-joão com seus doze anos didade recencompletos. Os para-raios, as parabólicas, os paranóicos de plantão: todos giravam muito receosos ao ver o mundo lá embaixão pontinho por pontin tintin por tintin.
Marco foi montando um dominó delicado com os prédios. Colocava-os enfileirados de longo, postos em sequência nas grandes avenidas. Mandou por sete pedágios em cada rua de São Paulo e mandou matar os CETs. Agora só se andava a pé. Aboliu a falta de cerveja, a falta de futebol nas terças, a falta de amor entre pai e filho e a falta dada por chamada oral no dia antes da prova.
Marco virou sol, então, e iluminou aquilo que havia criado. Banhava as crianças saudáveis andando descalças pelas ruas abarrotadas de jardins enormes perto de prédios bem cuidados. Os paranóicos continuavam presos em suas casas “a inflação volta, minha gente! Espera só pra vê! Não põe dinheiro em conta, não!” eles guardavam todo o dinheiro que tinham dentro de uma meia que ficava debaixo da cama, perto da asa de galinha ressecada na virada de ano pra trazer dinheiro.
Marco vestiu seu terno mais uma vez. Abriu o capital de sua empresa de bonecos de palha na bolsa de valores. O IOF ia atrapalhar suas vendas pros gringos, mas já valia a pena só de abrir. Tudo que abre parece que ganha ar novo. Casa aberta, open sale, open bar... Juntou dinheiro e comprou sete quilos de feijão para sete bebezinhos gordos que precisavam comer. Era a crise contemporânea da obesidade.
Marco virou chuva e caiu de leve em cima de seu povo. A mininada no meio da rua assim dançando bonita com a roupa encharcada. Marco era verão também, pra gente pequena frio não tem. Banhou o carro da velhinha que nem sabia mais dirigir. Ficava ela fumando seu pitaco com vontade. Tinha bochechas gordas e tetas magras. A minhoca surtava ali, tentando saber se nadava que nem cobra ou se viva como tatu.
Marco brotou do chão mais uma vez. Com força, vigor, desejo. Seus galhos iam subindo subindo assim bem depressa. Envolveram um portão novinho num prédio chique de madama de grife. Tinha flores pra todos os lados. Nos galhos, nas folhas, no chão, nas pessoas que passavam. Mas a grife da moda era cinza. Marco não teve dúvida: engoliu de vez a frufru sem dar satisfação a ninguém. Assim era mais fácil e a situação exigia medidas drásticas.
Marco fez um muro bem grande na frente de um prédio sério. Pintou o muro todinho de branco, com superfície bem lisa. Escreveu num bicadinho do canto só “eu sou brasileiro e não sei mais o que fazer de novo”. Eis que se responde por um qualquer na mesma noite “rouba, cheira, mata, cuida do teu. É assim que mindim”. E depois mil pessoas escreveram em mil palavras diferentes pra mil amigos poderem comentar. Ninguém comentava, só curtia. Marco tirou foto do muro e mandou no e-mail de todinho mundo da cidade. E até pros gringos também, mas eles são burros e não entendem nada do que tá escrito. Only when you treat them like “my sir”. A melhor resposta que Marco encontrou foi “Você é um só. Não nasceu dois, nem três. Deixa que de pouco pouco a gente se arranja. Olha pra ti um pouco mais. A gente tenta fazer a nossa parte e você promete fazer a sua.”
Marco largou o terno. Botou um saco de feijão no ombro e seguiu tranquilo.

Caio Mello
05/07/2011

sábado, 2 de julho de 2011

Desconstruídos

O que define o brasileiro? Haverá de fato um ponto de convergência entre os cidadãos de nossa terra? Qual a relação que a Arte conseguiu criar até hoje sobre as pessoas do Brasil? Quais características podem ser levadas adiante como fixadores de um padrão de interpretação social?
No começo, havia Camões. O distante povo português que veio de tão pequena terra devorar esse imenso território. Os contos antigos de heróis batalhando contra o medo e contra o mar. O traço místico da nossa cultura já começa a se formar desde cedo. Monstros gigantes, forças ocultas, deuses soberbos. Um povo quase fada, quase mago, quase gente. Séculos mais tarde, o advento de Fernando Pessoa e sua Mensagem. A carga lírica se mantém, a luta continua possante, mas um tom de tristeza se faz presente. A batalha torna-se mais penosa, o pesar do presente mescla-se com o antigo orgulho do passado. As lágrimas de Portugal no mar salgado podem doer, mas ainda fazem valer a pena.
Mais adiante, vemos Bocage. A manutenção dos misticismo, a aproximação com o índio e a cultura local, o escárnio sem fim. Os primeiros passos de uma linhagem perene de artistas despreocupados com qualquer limite. Os brasileiros são desmontados. O Boca do Inferno solta seus verbos erráticos sem a menor pretensão de ser respeitoso. Sua vontade subjuga sua razão. Mostra-se a Arte oscilante, incapaz de ser um todo perfeito que se diga completo.
O Romantismo surge com uma roupagem ufanista. José de Alencar continua a linha de aproximação com a cultura local: faz do índio um deus europeu, sem dores, sem limites, sem medos. O caráter místico aqui se faz presente não pela quebra com a linearidade lógica do mundo real, mas pela bravura infindável e a personalidade pura do indígena. Era uma busca desesperada no mundo lúdico tentando provar nossa própria integridade, voltando os olhos para nossos acertos, não para nossas falhas. Iracema era perfeita, era pura, era intocável. Martim que trouxe seus erros, que contaminou nossa terra com suas falhas. Antes da culpa, uma tentativa de explicação para mostrar nossa descontrução. Álvares de Azevedo explodiu dentro de si. Dizia sempre o que era, como era e como deveria ser. Era a emoção pura e plena, a elucidação das coisas não ditas.
Olavo Bilac abre mão de qualquer tentativa de criar padrões sociais ou de explicar nossas origens e evoluções. Longe do turbilhão estéril da rua, construiu ele seus castelos de desconstrução: descreveu a realidade das coisas que não precisam de explicação. Ouvia as estrelas, vivia com elas, deixando de lado o que não considerava ser importante. Não procurou explicações, mas a rima mais bela e mais virgem.
Machado de Assis continua na linha de busca de um caráter emotivo: faz grandes escavações nos campos do coração, cria personagens altamente complexos que sofrem das maiores dores do universo. Mostra homens colapsados, emoções roídas por ratos. Para se ter um bom paralelo, basta comparar com Eça de Queirós: este procurava a prova científica da falha humano, buscava o erro do animal em seu próprio sangue. Machado não: procurava a alma, a metafísica lírica que caía do céu feito pássaro sem penas. O brasileiro em seu cárater sentimental. O tom pessimista vem em ondas inconstantes. Se Bocage jogava o escárnio, Machado explodia seu pessimismo, enlouquecia Quincas Borba, matava Brás Cubas de solidão, apodrecia Bento Santiago em seu próprio medo, sua própria paranoia.
Aluísio Azevedo busca, paradoxalmente, a alma do brasileiro através de sua carne. Impressionante seu jogo de narinas, focinhos, ventas, suor e sangue. A indolência do brasileiro parece inerente à sua própria carne. Pombinha é destruída ao fim do Cortiço, sua pureza é devorada pelo meio no qual vive. Não há salvamento para nossa terra, nossos erros são culturalmente passados adiante, como uma doença altamente contagiosa que vai corroendo aos poucos qualquer um que vive neste país. Os cidadãos continuam descontruídos, decepcionados com sua realidade, loucos a ponto de atearem fogo no Cortiço inteiro.
Mario de Andrade explora até o fim o caráter místico-desconstrutivo de nosso povo. Macunaíma é um deserói fraco, que para tudo fala “Ai! Que preguiça!...”, passa por cima dos irmãos no livro inteiro, brinca com várias mulheres sem lhes dar apreço, apaixona-se apenas uma vez somente por causa de um feitiço, corre o mundo atrás de uma pedra por razões meramente sentimentais. É indolente, fraco e, mesmo assim, obstinado. Encontra-se em nós um traço de bravura, de busca incessante de certos objetivos, mesmo que seja pelos meios ilícitos, imorais ou egoístas. O fim é depressivo: a alegoria de nossa nação, depois de sua memorável história, deixa-se levar pelos prazeres e perde tudo o que havia construído. No fundo, o deserói já sabia de sua derrota, mesmo quando obtivera vitória: “O mal ganhado, diabo leva... paciência”. Fomos feitos tortos, somos errados desde o começo, paciência... No livro, o pesar do fim mostra a tristeza de Andrade perante a falta de futuro para nossa nação. Somos a estrela infeliz que brilha no céu.
Paralelo interessante de se fazer com Macunaíma é com o livro Memórias de um sargento de milícias. O herói Leonardo também vira o mundo com suas falhas, mora de favor na casa de várias pessoas, já nasce de um erro feito pelo seu pai. Ambos os heróis são falhos, são desconexos. Só que Leonardo ainda consegue levar uma vida razoável ao fim do enredo e seus erros acabam em acertos. Macunaíma não: sua coragem é exatamente o que leva à sua ruína. O fim deixa um ar de decepção frente àquilo que construímos. Andrade juntou em sua alegoria tudo o que desejava para destruir um herói: um homem adulto com cabeça de criança sem a menor pretensão de manter sua honra, sem a menor vontade de lutar pelos seus sonhos, sem o menor pensamento de ajuda ao próximo. O deserói abandona os irmãos por diversas vezes ao longo enredo. Ele é a antítese paradigmática do que deveria ser o herói. É mais que falho, é horrendo, e acaba sozinho.
Guimarães Rosa, ao contrário, busca alegremente uma exploração franca do caráter mítico de nosso povo. Somos a natureza ela-mesma, não somos bons por nossa aptidão científica ou por nosso preciosismo metodológico, mas sim pela ligação com nosso próprio chão, somos nossos animais, nossas pedras, nossas tradições. Sagarana mostra uma série de contos que exploram um sem-fim de recriações metafísicas que agregam o real com o irreal, o mundo com o não-mundo. O brasileiro começa a ser respeitado pela sua audácia, pela sua coragem em unir todos através do erro e encontrar, assim, acertos. É nessa geração que surge uma interpretação que vai durar para sempre em nossa cultura: essa linha de acertar pelo erro, de pecar pela mentira para atingir objetivos, de manter as falhas, mas seguir adiante. Eulálio monta sua vida com sua fala poderosa, com seu acerto de contas por erros de cáculo. É homem esperto, não é homem culto. É um triste momento de assumir nossa rejeição pelo certo e pelo organizado. E assim, mais uma vez, somos descontruídos.
Já João Cabral de Melo Neto tenta ser mais positivo em sua obra. Severino sofre muito até chegar ao Oceano, passa medo, passa desejo e passa várias rimas. Porém, ao fim, o poeta dá à vida à beleza que lhe cabe: um falante não consegue explicar de onde vem a beleza de se viver, não encontra resposta à pergunta de Severino senão na própria vida, no nascimento de mais um nordestino que vai sofrer por toda a vida. O paralelo a ser feito aqui é com a obra de Graciliano Ramos, Vidas Secas. Fabiano é uma engranagem que, sem perceber, acaba girando em círculos e acaba sempre no mesmo lugar a cada ano. Este segundo autor é muito mais cético quanto à beleza da vida, mesmo frente a tantas adversidades. A vida é, sim, falha. Aos personagens faltam mesmo palavras para descrever sua própria dor, seu próprio desprazer. A cachorra Baleia parece muito mais comunicativa que o próprio Fabiano.
Já Drummond é o poeta da cidade, o poeta do Rio de Janeiro. Com suas histórias e suas filosofias, busca também a metafísica da sociedade através de sua ideologia de esquerda. A Rosa é do povo, não é do governo, não é da elite. Em seus poemas, encontramos explorações tanto sentimentais quanto sociais da descontrução brasileira. O caso do vestido mostra a confusão sentimental do brasileiro, os relacionamentos desregrados que mostram o descuido com a família, a necessidade absurda e hedonista do amor fácil e rápido. Já na morte do leiteiro, a sociedade mostra-se também desconstruída, desconexa, em luta constante contra si mesma. Nossos cidadãos andam armados, andam com medo, andam pelos ruas mais movimentadas para não ficarem sozinhos perto do perigo. O leiteiro mistura seu sangue com seu próprio produto, criando assim a aurora que não parece sinalizar para qualquer futuro que seja mais promissor. É um pesar, um gosto ácido e curto que fica na boca, mas ainda assim leve, perto da magistral explosão poética criada pelo autor. É uma dor aguda, de fato. Porém, também é muito discreta.
Vinicius de Moraes é o poeta sentimental. Sua própria vida demonstra sua ideologia. Seu amor não é imortal, posto que é chama, mas é infinito enquanto dura. Amante por vício, apaixonava-se sempre pelo início, pelo querer quente do princípio do amar. Nunca amava direito, sempre de soslaio, sempre conquistando novos corações e escrevendo para eles seus sonetos. Mostra também essa tendência desconstrutiva de desejar o presente, o hedonismo sentimental puro. E seu caráter místico-combativo aparece em personagens como, por exemplo, seu operário em construção, batalhador incansável por seus direitos e por sua igualdade.
Mais atualmente, surge Manoel de Barros. Sua poesia pode buscar um distanciamento da sociedade e do real, mas distancia-se muito também de um paralelo que poderia ser feito com Bilac. Barros não busca a perfeição retórico-lírica. Deseja achar o que há de puro na própria poesia. Seu lirismo busca na asbtração também a característica da desconstrução brasileira. Fala ele de “desaprender” no seu Livro das Ignorãças. Ele pode não querer falar das mazelas sociais em seus textos, mas não foge da cultura brasileira desconexa. Busca na falha o seu acerto, busca no vazio o seu cheio. Faz viagens sensoriais e sinestésicas. É um Brasil altamente artístico e metafísico, mesmo que através de plantas e de animais.
Da sociologia, Sergio Buarque de Hollanda consegue magistralmente sintetizar em seu Raízes do Brasil tudo o que todos sentiam, mas ninguém conseguia explicar: o homem cordial. Esse ímpeto sentimental absurdo, essa mistura de público com privado, esse desejo de conquistar amigos, corações e grandes batalhas, mas sem nunca saber de certo qual o objetivo inicial. É uma mistura, uma confusão indireta, complexa e inegável. É nossa descontrução social.
Filho de Sergio é Chico Buarque. Grande compositor da música brasileira. Continua a descrição do nacional nas épocas obscuras da ditadura militar, diferente da ditadura varguista que oprimiu Drummond, por exemplo. A sua batalha também corre pelo lado dos menos favorecidos. Busca essa caráter sufocante de nunca sabermos por exato o que somos e para onde iremos. A construção se faz de cimento e lógica, de olhos embotados de cimento e tráfego. É a batalha constante por um pão, por uma vida digna. O brasileiro sempre mancando pelo canto da vida, pecando pela injustiça para tentar tornar-se mais justo. Na valsinha, tudo muda quando ele chega tão diferente. É errado, é quente, é desejoso depois de tanto tempo sem desejo. Um traço de escárnio velado cobre sua produção. Com açúcar, com afeto Chico descreve a falta de caráter de um marido que nunca vai trabalhar. É o Macunaíma da vida real, é a falha de um homem sem caráter que também se aproveita de sua mulher para se sustentar. Porém, diferente de Macunaíma, o destrabalhador consegue se livrar de seus erros e qual que... sua mulher beija seu retrato e tudo está em paz. É a desconstrução da textura social, dos empregos, dos amores, da bebida.
Ainda no campo da música, temos um dos nossos heróis do mundo real: Heitor Villa-Lobos. As bacchianas, principalmente o trenzinho do caipira, mostram magistralmente a descontrução nacional: o trenzinho do interior que viaja através de seu desejo, roda a música em seu andar de trilho. Uma música antiga, clássica imitando o trem de um caipira. A mistura, a reconstrução, a tentativa de coesão através da descoesão. Letras que chegam a mesclar latim, português e tupi, tornando o híbrido coeso.
Na música popular, temos Jorge Ben Jor com seu Umbabarauma: homem-gol. Não é um jogador, não é o pão e o queijo. Longe disso. Aquilo que é gol é homem também. O objetivo mescla-se com a própria pessoa, o desejo é a carne e a bola também. Corocondô. Uma mistura de línguas, de tradições, de contextos. A descontrução do próprio olhar sobre o mundo real. Um homem, um gol, uma bola semanticamente únicos.
João do Vale faz uma aproximação mais regionalista. O carcará é malvado, é valentão. E, mesmo assim, merece o apreço em uma música. Dar voz a um pássaro tão temido é dar voz ao povo que deve lutar para ser forte. Assim como o sargento de milícias, Macunaíma e Bento Santiago, o carcará encontrou seu modo errado para tentar se acertar. Ele mata, devora, come aqueles que acabaram de nascer. Mas é preciso cometer seus crimes. É preciso transgredir, lutar pela própria vida. Não vai morrer de fome. É a descontrução de sua falha que gera sua sobrevivência.
A banda de rock nacional Titãs também procurou elucidar a questão nacional. A família que almoça junto todo dia. O pai coloca cadeado no portão, o medo que matou o leiteiro no poema de Drummond. Cachorro, gato, galinha, vovó: são todos parte da família. Animais, pessoas, a confusão de saber dos homens através dos animais. Ainda em outra música, Marvin, a evolução de um menino que viu seu pai no chão com as mãos levantadas pro céu implorando perdão. O sofrimento, a luta pela vida, a morte da mãe. Roubar era preciso para não passar fome, assim como o carcará matava para não morrer de inanição, assim como Fabiano matou o papagaio para comer ou atirou em Baleia por causa da raiva.
A luta dos animais, dos líricos, dos operários, dos deseróis, dos brasileiros. Grandes e maravilhosos personagens que fazem parte da cultura tão rica de nosso Brasil que tenta sem descanso entender por que somos assim. De toda essa análise, tira-se o forte caráter mítico que o brasileiro vê em si mesmo. E, ainda mais: a descontrução, tantas e enfadonhas vezes repetida ao longo do texto para dar ênfase. Essa faceta de erro, de falha para tentar encontrar o acerto. O caminho não necessariamente correto, mas aquele que busca melhorar as condições de vida. Diversas vezes, é esse pensamento individualista. O ser humano que busca sua própria salvação sem entender que faz parte de um todo social maior que si mesmo. O individualismo que acaba gerando ceticismo em relação ao próprio país. Dadas certas exceções, encontramos pessimismo quanto à realidade nacional. Somos imorais, incompletos, desonestos e sagazes. Eis a figura do brasileiro que construímos culturalmente.

Caio Mello
02/07/2011