quinta-feira, 28 de agosto de 2014

A bailarina de porcelana



Seu corpo era alvo
como o segundo tom da aurora.
Cada detalhe seu era de uma delicadeza indescritível.

Seu vestido era branco,
pintado com tons de azul e rosa.
Fitava o mundo com dois grandes olhos
desenhados por mãos perfeccionistas.

A bailarina de porcelana
fazia parte de um balé itinerante muito famoso.
Em todas as cidades por onde passava,
o povo todo dizia: “Onde está a pequena bailarina?
Aquela fada de olhos bonitos”.

Então, as cortinas vermelhas se abriam,
no fundo uma música doce,
e a delicada bailarina surgia
em seu palco de madeira,
tal qual a mesa de um mágico.

Ela fazia leves movimentos,
balançava o pescoço,
abria e fechava os dedos.

Logo depois, as outras bailarinas entravam em cena
tomando o grande palco
e rodopiavam sem piedade,
retornando ao chão no grosso impacto dos pés humanos.

A bailarina de porcelana sempre quis dar piruetas no ar,
assim como suas colegas, mas era logo reprimida.
Seu corpo extremamente frágil não aguentaria
o impacto de voltar ao chão, no fim do salto.

Seu pequenino pé não sobreviveria a uma única pirueta!
E assim... Os espetáculos continuavam.
A bailarina sempre abria as apresentações,
cativando o público com sua singeleza.

Mas ela, por dentro, não se sentia completa.
Faltava algo em si: jamais seria uma bailarina de verdade.

Com o tempo, ela desenvolveu a habilidade
mais cara a todo artista: aquela de esconder o que realmente sente
e mostrar ao público o teatral sentimento do mundo.

Por fora, a bailarina de porcelana era uma estrela brilhante,
pulsando sua luz para as crianças e as famílias,
fazendo apresentações emocionantes.

Mas por dentro... Por dentro ela se desmanchava, se derretia.
Ela passou a sorrir com os lábios, mas não com os olhos.
Suas colegas até notavam, tentavam animá-la e mudar de assunto...
Mas nada poderia fazê-la se alegrar mais do que um rodopio!

Diversas gerações de integrantes do balé itinerante
tiveram o privilégio de se apresentar com a bailarina de porcelana.
Por décadas e mais décadas o povo se apaixonou
pela pequena artista de entranhas delicadas.

Ninguém entendia a enigmática bailarina.
Passava semanas sem falar com ninguém.
Apenas comparecia aos espetáculos,
mas não queria receber rosas, nem das autógrafos ao público.

Um certo dia, a bailarina de porcelana
surgiu alegre, cantante e expansiva.
Apareceu no palco antes do show começar,
deu pequeninos abraços em seu público
(todos, ao tocá-la, tomavam um cuidado gigantesco
para que nada de mal acontecesse).

Nesse dia, ela distribuiu risadas,
deixou-se estar com as crianças e fez todos baterem palmas.

Então, a música começou. Dessa vez, mais intensa.
A cadência rápida da batida dominava a bailarina.
Ela começou a fazer gestos rápidos, baixar e subir a cabeça,
era quase leve como um pássaro....

O público delirava: a bailarina jamais
havia feito apresentação tão maravilhosa!
Gesticulava, pedia palmas,
batia o compasso perfeito da música.

Ela tomou fôlego. Um pé depois do outro,
esticando as pernas o máximo que pôde.
Foi ganhando velocidade, projetando-se para frente.

O pé direito deixou o chão.
Seguindo o ritmo, o braço direito projetou-se para cima
num gesto de alcançar o paraíso.
Pouco depois, o pé esquerdo também deixou o chão, no fim do salto.

Já no ar, de braços abertos,
a bailarina de porcelana estava em êxtase.
Ela sorria um ar de infinita liberdade
na imagem mais precisa do conceito de inspiração.

O vestido girava doce junto com seu corpo.
As pernas maravilhosas se projetavam
como se finalmente estivesse longe de correntes,
amarras ou prisões.

E, logo depois, o pequeno corpo de porcelana
foi novamente tragado ao palco.
Nem por um segundo a bailarina deixou de sorrir.
Ela estava eufórica.

O público, desesperado, não sabia como reagir à cena.
Era lindo, simplesmente maravilhoso.
E, ao mesmo tempo, desesperador.
Uma criança soluçava, sufocada em seu próprio choro.

O primeiro pé a tocar o chão foi o direito.
Um curtíssimo grito fino de dor subiu pela garganta da pequena bailarina.
Mas ela não se deixou abalar. Abriu ainda mais os dedos
e aumentou seu sorriso.

Ao olhar para baixo discretamente, descobriu que seu pé se esfarelava.
Pequenos cacos de porcelana rolavam pelo palco,
como flocos de neve no começo do inverno.

Ela não se deixou perder o equilíbrio. Até o fim, manteve a pose.
O próximo foi o pé esquerdo. Ela se desfazia rapidamente.
Depois as pernas. O torso.

Já perdida entre o sonho e a realidade,
em apenas poucos segundos, a doce bailarina
despedaçou-se em mil cacos de porcelana pelo palco.  
O seu rosto tocou suave o chão.
Um sorriso genuíno, de lábios, olhos e estrelas,
foi visto logo antes do rosto se desconstruir.

Essa foi sua melhor apresentação.

Caio Bio Mello
28/08/2014


domingo, 24 de agosto de 2014

A reconvenção da ReconvenSão



João era autor
de sua paixão por Maria.
Ela, reconvinte, passou de objeto a ato
de fato por gosto.
Ele, por autor prévio,
deixou-se não contestar a nova ação
(loucuras de amor não têm resposta).
Todavia, posteriormente ferido o coração
e ainda não precluso seu direito,
postulou João a reconvenção da reconvenção
- eis que novo autor lhe surge na pele!
Mas dessa vez por desgosto,
repetindo-se o indébito e o indito.
O Douto Magistrado, na sua prudência costumeira,
concedeu-lhe a loucura processual
de ver o autor reconvindo e descontente
passar de réu para o terceiro ato
agora reconvinte reconvindo autor
num amor sofrido de carência (de ação).

Caio Bio Mello
24/08/2014



Dominical



DOMINGO.
DOMINGO..
DOMINGO...
DORMINGO....
DORMINGO.....
DORMINDO

Caio Bio Mello
24/08/2014

Descrença



E, como num simples passo,
a vida passa.
A fraqueza doma o corpo
e a alma não mais tem sabor de caramelo.

As mãos vacilantes
já não conhecem mais os mesmos versos de antes
(ou será que nunca conheceram?)

As dúvidas brotam
do fundo da alma,
do poço da existência.

Raquítico conhecimento
parco ser.
De mãos dadas à solidão,
com a dor no peito
e o silêncio do mundo.

E, assim, tudo desaba
tal cascata de chuva triste
num pouco domingo
de tarde.

Caio Bio Mello
24/08/2014