quinta-feira, 26 de abril de 2012

(sem título)

Ele era um moço bem estreptococos. Ficava sempre naquele vai-não-vai... Passava dias e noites bem pintassilgo. Ninguém descobria o que raiava pela mente gueparda dele. Um dia era sol, outro era lua, mais um australopitecos! Era uma montanha-russa nepalense. Ainda mais depois que ele teve aquela pleura... Uma semana depois: outro susto. Um anacoluto! Assim tão rápido, tão sôfrego... Quase que não sobrou um beirute para contar a história. Mas o bicho era duro! Voltava sempre, podia até voltar mais retilíneo uniforme, mas voltava. Depois disso... Eu posso dizer: ele era um muleque bem giroflex.  


Caio Mello
26/04/2012

sábado, 21 de abril de 2012

A bailarina de ferro


Ela era uma bailarina de ferro.
Uma boneca muito delicada, com contornos formosos.
Seu vestido era lindo, bem desenhado.
Seus cabelos eram cacheados e reluziam na luz.

Seus dedos eram bem detalhados,
seus olhos de uma profundidade imensa.
Qualquer criança que lhe encontrasse com os olhos logo dizia
nossa, mãe, olha que linda! Eu quero uma dessas!
Até mesmo os meninos queriam a bailarina.

A pequena sabia rodopiar, sabia gesticular muito bem com as mãos.
Parecia a réplica de um anjo.
Sabia sorrir muito bem.
O seu poder era sua magnitude.

Mas ela tinha um problema.

A bailarina de ferro era muito pesada.
Ela olhava as bailarinas de verdade
saltarem pelo ar em piruetas mil
e se desmanchava em inveja.

Tentava pular todos os dias,
fazer um voo gracioso.
Mas, assim que tirava os pés do chão,
em milésimos de segundo já estava de volta.

Ela era esforçada, tentava passos diferentes.
Mas não havia bailarino que a carregasse
para a liberdade de uma dança.

Bela, porém estática.

Ela parecia contentar-se com isso, afinal,
estava sempre radiante em seu olhar.
Porém, por dentro, ela sentia-se morrer a cada minuto.
Sentia-se fraca, incompleta, escura.

Tinha certeza que nascera para ser bailarina,
mas, na vida real, sabia que jamais seria uma.
Era apenas um parecer dançarina
e viver metálica.

Ela olhava-se no espelho,
subindo os braços, escancarando as palmas,
fazendo voltas com suas curvas sensuais.
E todos a desejavam.

Mas o que lhe faltava era desejo próprio.
Ela já não se desejava mais, sabia ser fraca.
Via-se, dentro de si, como uma vida interrompida
já em sua própria concepção.

Afinal, quem seria o cruel artesão
que desenharia tão bela bailarina
sem lhe dar a chance de dançar?

O tempo foi passando...
Dias, meses, anos, décadas.
Muitas coisas passaram perante seus olhos.
Muito pereceu.

Um dia, que susto, uma ranhura!
Seu metal machucara-se...
Olhando mais de perto. Ela viu.
Um trecho de ferrugem cobria seu pulso.

Naquele dia, ela sentou-se e chorou por horas.
Mas conteve-se. A vida nasceu para ter fim.
Em pouco tempo, foi enferrujando.
Seu cabelo já não brilhava mais na luz.
Os detalhes do seu vestido desapareceram.

Seu sorriso esmoreceu.

Chegou um ponto em que não podia mais
sequer rodopiar. Estava fraca de uma das pernas
e o peso do metal quase lhe impedia de andar.

Um dia, a pequena foi dar uma volta.
Atravessou a rua, sentou-se discreta num banco.
Não queria incomodar ninguém.
Ficou apenas aguardando.

Na primeira chuva, seu corpo já sofreu.
Na segunda, ela sentiu-se fraca.
Na terceia, não conseguia sequer levantar.

No fim de uma tempestade,
viu-se um objeto caído num banco.
O que era?

Parecia ter sido alguma forma... Talvez humana.
Não se sabe ao certo.
O que sobrou foi um pedaço de metal.
Inerte. Calado. Denso. Gelado.

Feio.

Caio Mello
21/04/2012

sábado, 14 de abril de 2012

Peixes


O menino oscila vagarosamente a vara de pescar, fazendo a linha formar círculos concêntricos na superfície da água. O pequeno não pisca. Se piscasse, perderia o momento. Aquele infímo centésimo de segundo no qual sustentamos toda a leveza que carrega uma certidão de completude.
            Passa o peixe, vagaroso, ressabiado. Vê-se comida na superfície, é fato. Mas nem tudo que brilha é ouro, nem touro nem mouro. A fome vai deslizando pelo estômago do bicho. Se tivesse pálpebras, piscaria ininterruptamente. A dúvida, o sim do talvez para que não antijamos assim um não muito depressa. Porque a negação seria a rápida privação do alimento e o sim seria a aceitação de um risco talvez grande demais – a vida por um pouco de comida?

Eis que passa lépida
pelo horizonte
uma nuvem dessas bem grandes e bem brancas.
Ela com certeza não dotara-se de nenhuma forma,
porque são os olhos que proveem formas e nomes às coisas,
jamais o contrário.

Ela sobe, desce. Encobre parcialmente o sol.
Depois regressa, submissa.
Se pudesse, desceria ao chão, gritando
Peixe besta, sai de perto desse buraco que o diabo vai te comer!

Mas nuvens não falam, peixes não pensam
e o garoto permanecia pétrico.

            Mais uma oscilada, dessa vez mais branda. As mãos do menino são libertas de calos, alforriadas do peso futuro advindo da labuta. Seu pai é pedreiro. Dizem que ele busca lá no pé de Drá o seu trabalho diurno (e diuturno) para fazer o sustento de seus rebentos. Por óbvio, assim como rebenta a manhã discreta, rebentam ao mundo as crianças aos murros e aos urros ainda cobertas de sangue.

Peixe
            vai
                        Peixe
volta

            Dúvida cruel. A questão, que questão? Os instintos privam o peixe de um raciocínio mais objetivo. Naqueles cantos lodosos do rio a visão é feita curta e a busca por proveitos – assim como faz o pai do menino no pé de Drá – é dificultada. Já uma vez viu-se morrer um peixe, tal qual não nome tinha porque peixe que se sabe por peixe é desprovido de nome e de seguro desemprego, enroscado até a garganta num anzol. Mas o que é anzol? Peixe que se sabe por peixe desconhece tal vocábulo tão rebuscado. O que ele sabe é sentir. E sente, no momento, fome.
            Os olhos do meninos movem-se na velocidade da luz. Procuram o fundo do rio, mesmo sabendo que só conseguem alcançar o reflexo pousado na superfície do lago desde que o mundo é mundo.

Mas é válido ressaltar que,
quando o mundo era mundo
lá pelos primórdios de qualquer coisa,
a reflexão não existia.
Esse tal ato de consciência que interpreta as sensações
e cataloga sistematicamente tudo que se vive.
Pois então,
o reflexo pousado na superfície não existe desde
que o mundo é mundo.
Ele podia ser tal como fenômeno.
Mas não o era enquanto captação consciente
porque ainda era desprovido de nome e de classificação.
Claro, como tudo era na vida naqueles tempos.

            Mas voltemo-nos ao menino, como já por antes dito: pequeno e pétrico. Talvez filho direto do pé de Drá (homens são frutos reprimidos e frenéticos). Parece ele por fora um semblante de serenidade. Imóvel, ignoto, tal qual uma qualquer planta que verdeja-se todo dia por hábito e por fome.

Mas, por dentro...
É guerra. Desejo, desespero.
Um jorro rápido de insegurança e impaciência.
Estaria o anzol bem posicionado?
O tempo lastima-se vagaroso
no pesar do insucesso.
Há tempos? Muito tempo?
Talvez aqui os minutos equiparem-se aos séculos.

            A mente do peixe divide-se. Deve-se arriscar a vida por um naco de energia? O paradoxo da reflexão: a privação da energia pode encurtar ligeiramente a vida, enquanto a negação dessa mesma energia pode fazer a vida muito mais longa.

Sim. Não. Não. Sim...
Talvez... Seu pequeno coração bate mais rápido.

            O peixe, por se considerar destro, arremessa-se ligeiro para cima da comida. Calcula bem o salto, fixa bem a amplitude e o tempo de regresso. Cuva-se presto, contrai seus músculos.
            Porém, para a felicidade do pequeno e para o antônimo do proto-defunto, o menino é mais rápido e mais treinado do que o peixe. O que antes era rocha dura milésimos para transformar-se em uma cascata de movimentos.

Puxar a vara.
Girar o ombro.
Segurar a linha com a mão esquerda.
Apoiar o peixe no chão de terra.
(o infeliz ainda se debate, digladiando-se com seu triste destino)
Tirar um anzol com um apoio no indicador e um giro do pulso.
Guardar o peixe num balde.

            E então, como se nada tivesse acontecido, o menino arremessa seu anzol já provido de novo alimento novamente na água, petrificando-se mais uma vez.

Caio Mello
14/04/2012

Cardíaco


O coração não é um órgão fixista.
Ao passar dos anos, altera-se.
Elástico, possante,
a metarmorfose da carne.

Ele pode ser de pedra,
carne, sangue, carvão, chamas...
E tudo pode mutar num eterno ciclo
sem fim entre sístoles e diástoles.

Porque a vida não é só um correr de veias e artérias.
Ela é um caminho, um desenvolvimento.
O nosso peito armazena experiências,
completa desejos e anseia por sonhos.

A matéria dá-se por não ser matéria.
Ela é lágrimas, sensações. O beijo.
A primeira alvorada inundando
os olhos ainda quase fechados.

O marceneiro do tempo
faz pequenas intromissões em nosso órgão a cada dia.
Torna-o agudo, ríspido, por vezes tenro.
Porém, nunca ileso.

Nosso coração é uma casa muito grande
dotada de vários cômodos.
Quem está nesse? Sim, a primeira chave gira-se
e encontramos a saudosa memória daqueles da terra.

Ali, mais pra frente, os maiores amores da vida.
Depois, o irmão.
Todos sentam-se para tomar um café-da-manhã atemporal
desnudando tudo que há de consciência dentro de um ser.

(No porão da casa guardam-se erros e desafetos que nunca veem a luz do sol)

Nosso órgão há de bater sempre.
Seja pela dor, seja pelo prazer, seja pela euforia...
É preciso continuar o bater de pinos
harmônico que nos faz vivos.

Aceitemos ou não nossa carne,
ela nos subjuga.
Afinal, o filho direto do peito
é o órgão do ser dentro do ser.

Pulsação.

Caio Mello
14/04/2012

domingo, 8 de abril de 2012

Telecompra

Cliente: "Oi, boa noite, eu gostaria de saber mais sobre o seu produto."

Joana: "Boa noite, meu querido. Pode me perguntar qualquer coisa que eu respondo"

Cliente: "Tudo fresquinho? Feito na hora?"

Joana: "Com certeza! Temos os melhores profissionais que o senhor vai encontrar pelo bairro... Tudo feito com o corpo."

Cliente: "Sei, entendi. E o de melancia? Gostoso?"

Joana: "Deliciosa. Um par delas, gigantesco. Eu posso garantir pro senhor que todo mundo aqui vai ter uma melancia maravilhosa. Ninguem acha erro."

Cliente: "Que maravilha! Estou ficando animado!"

Joana: "Guarda as suas energias pra mais tarde, nao se empolgue tanto agora!"

Cliente: "Claro, fica tranquila. Escuta, e vem bem geladinho?"

Joana: "Sim, garantimos total profissionalismo. Nada de envolvimento emocional. Sabemos fazer o servico o mais frio possivel. Nem precisa rolar conversa."

Cliente: "E voces servem criancas com qual limite de idade?"

Joana: "Olha... A gente pode negociar sua proposta... Esse tipo de coisa vai sair bem mais caro. Quanto menor a crianca, maior o risco..."

Cliente: "Sei, faz mal pra elas... Eu nem tinha pensado nisso. E tem alguma coisa que voces nao fazem?"

Joana: "Olha, a galera aqui nao curte fazer anal..."

Cliente: "O QUE??? ANAL?"

Joana: "Sim, senhor. Tem gente que nao gosta de fazer, tem que respeitar..."

Cliente: "Pelo amor de Deus, esse era o telefone da sorveteria??"

Joana: "Sorveteria?? Disk-Sexo, meu filho!"

Fim da chamada


Caio Mello
08/04/2012

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Bege e tons de marrom


Ele queria ser.
Talvez muito, talvez hoje.
Quem sabe, um dia...

Ele devia ser. Já foi.
Ser? Hoje será. Será?
Amanhã ainda acontece.
(ou talvez já se tenha terminado)

Ele, pequeno claustro ignoto,
é mera fibra que encontramos em tecido.
Rendado através do tempo e do destino,
o mundo ainda pouco sabe de sua carne.

E a carne verte sangue ao chão.
O escarlate da madrugada,
o rubi do marajá.
E isso tudo no segundo tempo.

Ele é o farol da praia,
a raia no fundo do mar,
amar de um pêssego absorto,
morto corpo à deriva putrefazendo-se no oceano.

Velejador de grandes oceanos.
Mero reflexo de uma caixa fechada.
Esta, pobre, guarda em si diversas tristezas.
Antes: medos. Sim, inexorabilidade do suar frio.

Ele preocupado.
Tem necessidades. Tem um corpo, tem um copo, tem um oco.
Precisa de carne e da carne nasceu e da carne viverá e a carne buscará.
Seus vidros não são cristais.

Ali, dentro de labirintos beges e com tons de marrom,
perde-se por horas e horas e horas e horas e horas.
Encontra furtivamente uma palava
Olha, hoje tu paras e escrevers aquele lá.

Mas o que há de ser escrito jamais se torna palavra.
A palavra é que se torna em o que há de ser escrito.
Entorna e entoa. Encanta. À toa.

Um dia ainda acorda sem medo de abrir os olhos
e com o corpo descansado.
Um dia ainda escancara um sorriso
e ignora tudo que se basta neste mundo.

Caio Mello
06/04/2012

Quilômetros interiores


Ele desliza seu passeio
através do asfalto,
mostrando ao mundo
toda sua capacidade de subverter as vias.

Vai-se encaminhando
num simples passar
de futuro e passado e presente
num dia à noite.

Ele vê... Não são árvores.
Com certeza não.
Ele vê estrelas, na verdade.
Todas ao seu redor, brilhantes.

E elas são tudo.
São todos e brilham muito.
Passam rápido, muito rápido!
Parecem cometas rabiando pela história.

Ele não sabe de onde vem,
nem pra onde vai.
Sabe que o chão é grande e o asfalto infinito,
não há com o que se preocupar.

Crescem ao longo do curso
diversas árvores, enormes com seus galhos
que parecem engolir qualquer veículo
que se discorra por entre o verde.

Mas o veículo foge com habilidade,
agarra as rodas à terra
e voa mais alto que o chacal.
E corre mais rápido que a águia.

Ele, sim, é luz da noite.
É velocista, velocidade, velocímetro, velocípede.
É tudo, é muito.
É, sobretudo, um sonho.

Caio Mello
06/04/2012