quinta-feira, 28 de junho de 2012

Anomia


As palavras que não devem ser escritas
Não são palavras
Nem são escritas

Não são o vento nem o sol
Nem o céu
Nem as manoplas

Os pintassilgos os caramujos
Os antílopes do Zimbábue

Nunca serão nem nunca devem ser
Nem nunca sequer deveriam ter sido
E se é haver o verbo ele não foi

Essas palavras tropeçam giram choram
Ficam ali ainda no canto da nossa mente
Quem sabe um dia na esperança de voltar
Para o mundo de palavras que realmente são ditas

As nunca ditas são as que mais grudam na gente
E acham que um dia nos sairão pelos lábios
Meu Deus que nunca saiam de onde
Nunca deveriam ter saído

As palavras são meias palavras
Não são palavras inteiras
Não podem nem têm o direito de ser
Mas as meias acompanham muito bem o pé

Porque o pé existe
E seus dedos também
Mas há certas palavras que não existem

Mas elas me incomodam
Não fazem sentido
Mas me incomodam
Não servem para nada
Mas me incomodam

As palavras que palavras eu pergunto
E me dizem essas aí que tão na sua frente
Meu para com isso como assim
Porra as palavras cara palavras palavras
Palavras sim palavras

Mas não não são
Nem nunca deveriam ter sido
Nem serão
Como podem ser eu pergunto

Elas estão ali
Você pode sentir
E o saco é que elas ardem
Ficam doendo feito ferida aberta

E a minha cabeça se parte em duas
Porque uma parte pensa com as palavras que existem
E a outra parte só quer saber dessas palavras que não existem

E são essas que me travam a cabeça
Já não penso
Vejo cores vejo carros ônibus dias noites
Vejo um fusca bem velho ali na rua

O fusca é palavra palavrão palavra mundo
Mas essa aqui não é palavra
Nasceu pra ser mas não foi
Que nem a bailarina de ferro talvez muito pior

Porque bailarina é bonita
E palavra sem dono nem rédea nem pé
Não é bonita nem no começo
Nem no final da tarde

Porque
Eu sei lá
O que vou fazer com essa palavra eu pergunto
E então me dizem põe ela na parede
Feito quadro de natureza morta

Natureza morta e palavra sem sentido
É tudo a mesma coisa
Fica tudo parado meio cinza
De um jeito que todo mundo acha meio cult
Mas niguém gosta de verdade
Só fala que gosta para não ficar de fora

Porque o mundinho dos cult
É bem apertado
E bem pouca gente entra lá

O negócio lá é falar difícil
Discutir Schopenhauer Freud Medusa Maradona
Nietzsche Merlot Jim Bean

Então as palavras sem sentido
Talvez não tenham sentido
Talvez sim talvez não
Porque se não têm sentido não é que não tem sentido

Na verdade se for assim
Palavra que não tem sentido então não é palavra
Vai ser qualquer outra coisa que faça mais sentido
Quando não faz sentido é claro

Caio Mello
28/06/2012

domingo, 24 de junho de 2012

Zeit


Du wirst zu schnell geboren.
Ich war zu schnell gestorben.
Wir treffen uns.

Nicht hier.
Irgendwo sehr ruhig.

Aber es ist zu spät.

Caio Melo
24/06/2012

sábado, 23 de junho de 2012

Margem de lucro


E ele escancarou os próprios olhos.
Quis verter o mundo todo
numa só vista.

Abriu-os tanto que ambos caíram ao chão.
O corpo, desnorteado, tateou o piso gelado da cozinha.
Ele via! Ele via!
Só não podia compreender...

Via borboletas, asfalto, uma baleia, paquidermes.
O diafragma começou a se contrair
no que inicialmente parecia um soluço,
mas acabou por se tornar uma risada.

Então os olhos ganharam braços, perna e cartola.
Ambos sentaram-se em uma mesa de um bistrô
numa noite de garoa fria na cidade de São Paulo.

Um deles puxou assunto

E a bolsa, o que você acha?

Vai mais ou menos... Essa oscilação está de matar!

Acendem um cigarro amigável.
E o corpo continuou tateando o chão da cozinha.

Eu só te digo uma coisa: essa história toda do euro... Deus que nos acuda!

De fato, meu caro! Espero que a crise não atinja o Brasil. Poderíamos inclusive chegar ao ponto de dois olhos sentarem-se num bistrô para falar sobre a bolsa.

O corpo parou de procurar os olhos por um instante e espirrou.
Continuou a busca.
Finalmente, a mão esquerda esbarrou na janela do bistrô.

O polegar encarregou-se de quebrar o vidro.
Em pouco segundos o corpo já tinha o olho esquerdo em mãos.

Mas, ao invés de devolvê-lo a sua cavidade normal,
o corpo, por engano, engoliu o olho.

Impressionante! Agora ele podia se ver por dentro!
Seus medos, seus sonhos, sua ambições...
Tudo ali exposto como numa loja de roupas caras.

A luz foi apagando-se conforme o olho caía mais no estômago.
Então, tudo fez-se escuro.
Um único facho de luz foi aceso.
Era uma lanterna e ela apontava para ele.

Agora tinha olhos de volta.
Vestia camisa, calça jeans e botas.

Entrou na sala um homem muito grande, muito sério.

Oi, homem.

Oi, quem é você?

Eu sou a tristeza que você sente. Você me tem todos os dias da sua vida, me carrega nas suas costas quando vai para o trabalho, me leva no parque aos domingos.

Mentira! Você sabe que minha vida é mais do que isso.

Se é mais do que isso, por que você não me mostra? Assim eu vou ter inclusive menos trabalho para fazer.

As minhas alegrias são.. São...

A falta de tempo? O apetite voraz? A arrogânica?

Me deixa!

Assim que foi proferida a última frase,
os olhos da tristeza caíram no chão.
Eles começaram a chorar,
pedindo a morte.

A tristeza decompôs-se rapidamente diante do homem.
Um esqueleto sentava-se em sua frente.
Ele continuava a fumar seu cigarro e a arrumar seu topete.

Sabe, homem, as pessoas têm uma ideia muito errada sobre a morte.

E qual é essa ideia?

As pessoas acham que a morte é um dia, um momento, uma fase. Mas não é. A morte nos devora de mahã, de tarde e de noite. A morte se agarra a nós mesmos. Morremos todo dia um pouco, ração próvio-fixa da carne, desilusão em demasia.

Nenhum olho estava ali.
Nem mesmo um olho conseguiria inundar aquela sala.
Inundando-se, o homem pseudo-cego, quase se afogou.

E encontrou-se em meio a seus pedaços,
o imediatismo da comida roncava no estômago.

Caio Mello
23/06/2012

domingo, 17 de junho de 2012

I`ve heard


They say it`s a mistake.
An error.
A suitable end of time,
period to a period in life.

In silence we will stay.
The absence of sound.
Pure liquid presence,
faith in our own breath.

They say it`s a broken heart.
The metal stone
which makes us unable
to reach the surface.

Though destiny is out there,
we just might not know where to find it.
That`s because it is
infinite.

They say we have lost our minds.
But that`s all right, we still have our souls.
And a mug full of hot, black, sugarless coffee
(we need bitter coffee: our life`s already sweet).

The whole sun is trying to find a hole in our skin
just to figure out how to warm up things.
We need our own lights,
we need to shine by the inside.

They say we have no glory, they say we are scumbags.
We don`t live in glory, we don`t need no glory.
We need a place to live, something to eat,
and our strength.

We may need to spend several days without food, because
starvation seems to be a fast way to reach something.
Or we can just have a great meal
and talk about it later.

They say ignorance is a blessing.
But we ignore that phrase.
We know how important
self awareness is.

We build our dreams
upon the air,
hoping that God will reach a helpful hand
to hold our castles steady.

They say we can`t close our eyes at night.
That’s true.
When we lay down, we keep our eyes wide open.
We gaze at the stars!

And, when we look at them,
we realize how much endless we are
deep inside
ourselves.

They say loneliness is a great feeling.
But being lonely means never feeling anything,
means never finding something to be mad at.
(we are insane, indeed)

A sound might be just perfect.
The sea might be cold.
A night might be short.
A blink might last a whole life.

The say
one day
everything
will be over.
But we believe in the reborn glory.

Caio Mello
17/06/2012



sábado, 16 de junho de 2012

Elogio à tarde ensolarada


E, como se o sol não nascesse,
ele regurgitava dentro de si
mais um vontade
que não lhe deixava o peito.

Ele ria, de fato.
Mas ria de um sem-número de vergonhas
que o afogavam
e o faziam voltar ao princípio.

A vontade, ou ainda, o desdesejo
não lhe trazia mais certeza alguma.
Tudo o que via era seu reflexo moribundo
numa tela qualquer que refletia a tarde.

Precisava de algo, não de alguém.
Sua vida já era repleta de alguéns.
Mas precisava de cores.
Um rebote de vida.

Porque as paredes andavam cinzas demais
e as palavras andavam objetivas demais
e os demais andavam escuros demais
e o homem por detrás daquilo tudo era sério.

Homem? Talvez não-homem.
Amorfo, quem sabe?
Um sem-número de
verbos erráticos retumbando no peito.

Era. E talvez fosse.
Mas as palavras eram poucas.
No cansaço, na falta de ânimo,
na falta de fé. Eram poucas as palavras.

Quando os olhos presto se fechavam,
fechava rápido também o baú das letras.
Morriam as palavras, morria o sonho,
morria em si o que tinha nacido para o mundo.

Então, o mundo não queria mais ser.
O mundo, com suas terras e rios e lagos e mares,
não era mais. Uma cor só. Cinza.
E os tecidos se rasgavam.

Rasgavam-se os tecidos, os olhos e os homens.
De fato, os homens andavam rasgados e nem mesmo o sabiam.
Andavam entrapeados pela rua,
num querer ser de vontade alheia.

Viver a vida alheia. O momento alheio.
Um mundo paralelo dentro de si,
como se o próximo fosse o eu
que nunca conseguimos ser.

Ele abria os olhos, dobrava as pálpebras e suspirava.
Inspirava o suspiro com o pulmão direito,
jamais sabendo o que viria adianta.
Não havia mais uma certeza sequer que parasse de pé.

Os votos, as estimas, os benditos.
Que são? Que seriam? Quem foram?
Nada passava do reflexo de um ignoto
errante buscando nos cacos de si alguma resposta.

Mas respostas não havia.
Havia, sim, um berro.
Mas era um grito rouco de garganta seca
jamais ouvido por ninguém.

O berro que se grita para dentro não se ouve,
nem se escuta.
Se ausculta num momento médico,
quem sabe na autópsia?

O doce roncar das palavras serenas
perdidas nos meandros da mente.
Uma mente, um castelo, um momento,
propensão à loucura diagnosticada psiquiatricamente.

Um homem numa caixa. Era uma caixa vazia.
Contorcionista, surrealista.
O surrealismo realista.
A realidade do cão, limiar da justiça.

Um homem num pote, num frasco, num instante.
O frasco, a redoma, ampola.
A loucura, insanidade, perturbação
recôndita.

Caio Mello
16/06/2012

domingo, 3 de junho de 2012

Lince


E havia dentro do homem um canto diferente.
Esse canto era o Lince, que só aparecia nos momentos
mais imprevisíveis.

Quando o homem chorava com o olho direito,
mas o esquerdo continuava seco: era o Lince.
Quando o homem parecia querer atravessar a rua,
mas a perna direita ficava fraca: o Lince.

O Lince não respeitava horário nenhum.
De madrugada, o peito arfava.
Com a gravata no pescoço,
os pelos da nuca eriçavam.

O homem abriu a porta de si mesmo uma vez.
Onde está aquele safado?
Quero achar o peludo, quero devorá-lo também,
assim como me devora.

Mas o Lince não era fácil de se achar.
De olhos abertos, o felino entremeava-se nos sonhos.
Nos desprazeres, no raciocínio lógico, na direção.
Os dedos tamborilavam.

Comer cereais no café da manhã.
Hoje há de ser mais uma tarde.
E quem sabe uma noite...
E, assim, perdiam-se as horas.

[Olhos abertos dentro do armário
Ela não sabia se respirava
Ou se continuava prendendo a respiração
Quem sabe assim ele não veria
Pelo amor de Deus que ele não veja
Um grunhido baixo escapou da garganta
Ele abriu a porta berrando]

No carro, no passeio público.
Ônibus quente. As costas encharcadas de suor.
Uma cerveja para colar as mágoas, amálgama da vida.
Salgados frescos na frente do bar.

O giz sujando os dedos.
Luvas, para quem as precise.
É, doutor, não queria que você me desse essa resposta.
Sim, homem, é o Lince.

Mas nem a medicina pode me salvar agora?
O Lince é o Lince. Não se sabe explicar.
Está aí: como a chuva, como o dia, como o cabelo,
como o vento, como seu cachorro...

E o doutor conhece mais alguém que tenha algo parecido?
Tipo o que, homem? Um paquiderme? Não seja tolo.
Não há nada igual, ninguém que se compare.
O Lince é... Bom, já disse. O Lince é o Lince.

O homem em casa, de novo.
Abraçou sua filha. Apertou-a com delicadeza, feliz.
Deitou-se com sua mulher e
esqueceu as aflições da vida.

Trompetes ecoavam em sua cabeça.
O Lince-maestro, regendo sua vida.
Ópera do fim do mundo,
Wagner de pelos longos.

O homem preocupava-se.
E agora? E agora?
Refletia, olhando o espelho.
Focava-se em sua orelha direita.

Tomou uma decisão muito séria.
Foi para o trabalho mais cedo naquele dia.
Trabalhou feito um cachorro, acabou com todas as pendências
que restavam.

Despediu-se de todos os colegas,
desejando a todos um ótimo fim de semana.
Olhou para a mulher. Disse-lhe sobre o amor. Gigante.
Levou a mulher e a filha para jantar.

Deu para a mulher uma joia e para a filha um ursinho.
Levou as duas para o cinema.
Depois, deixou a mulher e a filha na casa
dos avós.

Pegou o carro, dirigiu até a praia.
O Lince quase o fez não conseguir trocar de marcha.
O homem encontrou seu irmão.
Deu-lhe um abraço forte.
Seguiu para o campo.

No jardim de uma casa bonita,
sentou-se pensativo.
Tomou dois copos grandes de pinga.
Olhou para o céu. Inverno.

Levantou-se, corajoso.
Ficou parado de pé no meio do jardim.
Deixou os pés nem muito próximos
nem muito separados.

Tentava respirar tranquilamente.
Demorou apenas uma hora.
Seus pés já criavam raízes.
Sentia os dedos dormentes.

Era um processo doloroso, afinal,
não era muito de sua natureza.
O dia dormiu e raiou de novo.
Não havia mais homem.

Curto e grosso.
Simples e prático. Foi-se.
Sem mais nem menos,
como sempre quis.

Então o caseiro regou a árvore.
Cuidou-lhe bem,
evitou os parasitas.
Voltou a primavera.

O primeiro fruto cresceu rápido no galho.
Aumentou, parecia apetitoso.
Caiu no chão.
Viu-se tudo.

Era o Lince,
finalmente
livre.

Caio Mello
03/06/2012