quinta-feira, 29 de março de 2012

O elixir da vida


O Padre era mais um homem comum. Ao contrário do que poderia entregar seu nome, seu ofício não era eclesiástico, muito menos celibatário. Era Rafael Padre, muito chamado na infância de “a mulher do padre” nas brincadeiras de quem chegaria por último.   
            O Padre tinha algumas manias. Afinal, qualquer um de perto pode ver-se preso num emaranhado nada simples de necessidades psicológicas inúteis. Ele acordava todo dia cinco e meia da manhã, ia para a cozinha, preparava café bem preto e bem quente (porque de doce já temos a vida), comia um pão na chapa com seu café e depois partia para seu trabalho. Ao chegar no serviço, fazia a barba no banheiro. Sentava-se em sua baia. Toda vez que se levantava, tinha que contar necessariamente seus passos até o lugar desejado. Se errasse, tinha que alargar ou encurtar os passos para nunca perder a previsão. Assim sentia-se mais seguro. Além disso, sempre subia o prédio de escada, pulando o segundo e o sétimo degrau do lance que tinha pela frente. Fumava metodicamente seus cigarros até que a brasa atingisse o filtro. Não podia passar do filtro nem parar antes dele. E sempre fumava exatamente um maço por dia, nem mais nem menos.
            O Padre era visto como um homem muitas vezes limitado. Quando conversava com o chefe e andava ao mesmo tempo, suava desesperadamente para conseguir não deixar transparecer sua necessidade de contar seus passos. Mas era evidente sua teimosia. O chefe ainda parava, voltava, remendava o caminho só para tentar fazer o Padre sair de seu eixo. Mas ele nunca saía. Suave, sofria, quase dançava, mas nunca deixava de contar seus passos.
            Todos duvidavam muito do Padre. Mas em uma coisa ele era muito correto: remédios. Era hipocondríaco desde que nascera. Dores nas costas? Gripe? Febre? Padre tinha sempre um remédio para receitar para os colegas de trabalho, amigos e familiares. Claro que a medicina estava além dos seus conhecimentos, mas ele tinha um conhecimento básico que obtera através de anos de auto-medicação.
            Foi então que deu-se o caso.
            Um dia o Padre não apareceu no trabalho. Como assim o Padre não veio? Comentavam todos. Ele deve estar com algum tipo de doença muito séria, não é possível... Ele veio aqui até naquele dia que foi atropelado por um carro. Sentou com a mão ensanguentada fingindo que nada tinha acontecido e voltou a trabalhar... Até seu chefe ficou preocupado.
            No fim do dia, os colegas de trabalho decidiram aparecer na casa do Padre para saber como ele andava. Não faltava um curioso pra saber que fim se dera ao pobre. Poderia estar morto, congelado, novamente atropelado, baleado... Enfim, tudo. Talvez até enforcado pelas linhas metódicas que criara em sua medíocre vida.
            Quando chegaram no apartamento, a porta estava aberta. Uma prima do Padre, que também era Padre mais que freira, estava sentada na cama. O coitado estava deitado, com os olhos fechados, suava excessivamente. Os colegas ficaram compadecidos da figura. Tão fechado, tão calculista e agora entregue à sua própria carne...
            Logo veio o médico analisar o Padre. Meu Deus, ele tem doencite crônica... Só vi essa enfermidade ocorrer duas vezes em minha vida! Num senhor de oitenta anos e agora no Padre! E agora? O que fazer? Olha, eu realmente não sei... Nem com todos os meus anos de medicina, nem com todos os livros que gastei meus olhos pra ler vou conseguir decifrar o corpo desse homem. Melhor já encomendá-lo pra mãe de santa ou bispo ou rabino ou rábula ou rébulo... Enfim.
            Os colegas entristeceram-se com a notícia. Era o fim do Padre, tão cedo... Mas a prima continuou indo na casa do primo. E alguns colegas acabaram ficando mais na casa do Padre porque também não desejavam ver uma pobre alma sofrendo assim tamanho tempo sem uma roda razoável de pessoas para velar pela partida vindoura de sua alma.  
            Eis que, numa quente tarde furtiva, o Padre acabou ficando sozinho no quarto com seu amigo Alberto. A prima havia saído para comprar comida, os demais colegas estavam no escritório cobrindo a labuta do Padre e de Alberto. A janela entreaberta deixava entrar a brisa morna. O Padre suava muito. Abriu os olhos trêmulos, encarou Alberto, dizendo numa voz fraca e rouca

Alberto... Alber! To... Albeeerto...

Oi, Padre, oi! To aqui, cê não precisa ficar sofrendo, calma...

            O Padre agarrou a camisa de Alberto. Trouxe-o para bem próximo de si. O cheiro ácido de suor e substâncias decompostas inundava o corpo do homem.

Cê precisa me fazer uma coisa... Em... Em- em segredo! E tem que ser agora!

Claro, claro, claro! Só me fala o que é e eu te ajudo.

Assim... Olha: abre a seg-segunda – Ai que dor – abre a segunda gaveta do meu criado mudo. Lá você vai encontrar um frasco de 100ml de cor rosa... Traz ele pra mim, pelo amor do nosso Deus!

            Alberto não demorou muito para achar o frasco. O Padre não teve dúvida: virou o mais rápido possível o líquido do frasco para dentro de sua boca e engoliu de uma vez só. Ficou olhando furtivamente para os lados. Parecia frenético, estressado, desesperado. Não queria que ninguém descobrisse que havia bebido daquele frasco além de Alberto.
            O fato passou a ficar na mente de Alberto. Porém, logo outro fato muito mais notório ocorreu. O Padre melhorou rapidamente, ganhou forças novamente e voltou à sua vida metódica. Claro que agora ele até conseguia dar alguns passos a mais quando conversava com o chefe – talvez tenha descoberto que com o sem a contagem a vida iria acabar de qualquer jeito. Enfim, ele estava bem.
            Alberto ficou remontando tudo que havia acontecido... E, logo após Padre tomar o frasco, ele melhorou a galope. O que seria que... Não era possível! Numa pausa para um café, quando os dois se encontravam sozinhos na cozinha, Alberto puxou assunto:

Então, Padre! Cê melhorou mesmo, né? E foi tudo muito rápido, né?

Foi... Foi mesmo.

Aposto que tem a ver com aquele frasco que eu te dei. O que cê descobriu que a gente não, Padre? Nunca vi ninguém melhorar assim tão rápido... O que tinha lá dentro, hein? Eu te ajudei, acho que agora cê podia me ajudar também, né...

            O Padre foi ficando branco, cada vez mais branco... Não conseguia falar. Gaguejou muito, saiu correndo da cozinha e sentou-se em sua mesa, solitário. Mas isso não adiantou de nada, só fez aumentar a curiosidade de Alberto. Este, num outro fim de tarde, pressionou muito o Padre para fazê-lo contar o que sabia. Disse que contaria para todos do feito se ele não liberasse a fórmula mágica.

Tudo bem, eu falo! Calma, Calma... Você coloca leite de magnésia, uma pétala de rosa, duas gotas de leite...

E assim foi o Padre abrindo o jogo com o Alberto.
Foi então que deu-se o caso.
O filho de Alberto começou a ter suadeiras, o corpo todo tremer... Os médicos ficaram meio na dúvida. Mas o homem sabia o que fazer. Chamou a mulher e disse vá lá e compre tudo o que estiver nessa lista, sem falta. A dona foi, muito curiosa do resultado. O menino bebeu o líquido, contorceu-se na cama, urrou de dor e passou a noite vomitando. Na manhã seguinte, estava ótimo. Mas nisso é óbvio que a mulher de Alberto (doravante chamada Alberta para facilitar a nomenclatura) quis saber da fórmula. E Alberto contou.
Foi então que deu-se o caso.
A prima de Alberta, que se chamava Maria, era uma mulher muito rica da cidade de São Paulo. Teve problemas sérios de bulimia, era anoréxica e não sabia bem como lidar com tudo isso. A prima, apesar de afastada já há anos de Alberta, quis revê-la em seu momento difícil. Chamou a prima em casa, deu-lhe muitos presentes e disse que precisava de ajuda naquele momento difícil. Alberta já sabia muito bem o que fazer. Passou no supermercado, comprou os itens de sua lista, colocou a proporção certa e deu o frasco à sua prima, prometendo resultado.
Maria bebeu o frasco num só gole. Suou muito pela noite, teve diarreia por dois dias inteiros. Mas logo melhorou. Eis que o médico de Maria viu o frasco vazio ao lado da cama. Eu não receitei nada disso, reclamou o indignado. Mas Maria, de primeira, não quis explicar. Então o médico, que se chamva João, ameaçou contar à mídia os problemas de Maria com a cocaína. Maria chorou por um momento, mas logo entregou a fórmula secreta para o médico.
João comprou os ingredientes em grande quantidade. Tinha-os em seu escritório, mas cobrava caríssimo para uma consulta que chamava de “especial” e somente nessa consulta liberava um frasco do segredo. Muitos famosos começaram a comparecer no consultório de João.
Foi então que deu-se o caso.
Um traficante muito rico do Rio de Janeiro estava com problemas muito sérios. Tinha crises de pânico, sentia-se enjoado o dia inteiro, não sabia mais como se medicar. Um dos famosos tratados por João, o médico de Maria prima de Alberta mulher de Alberto amigo do Padre, era também viciado em drogas e comprava-as com o traficante do Rio. Este tinha a alcunha de Torto. Esse tal Torto ficou sabendo do seu cliente que um famoso médico de São Paulo miguelava uma fórmula secreta em seu consultório e cobrava caríssimo pela iguaria.
Lá se foi o traficante, fazendo de torto e direito, tirar satisfação com o João. Numa noite, logo após a última consulta, João foi surpreendido pelo Torto. Este entrou logo atirando na sua perna Me passa logo aquela merda de remédio que cê regula pros pobre, mas libera pros rico! João, que nunca nem sequer tinha visto uma arma em sua vida, liberou logo os remédios.
O Torto tomou um frasco de um gole só. Teve dores de cabeça e inchaço nas mãos. Mas logo estava melhor. Ameaçou mais uma vez o médico e conseguiu a fórmula do poderoso líquido.
Foi então que deu-se o caso.
Júlio, diretor geral de uma grande empresa farmacêutica, ficara sabendo que havia no mercado um novo líquido que já vinha sendo inclusive intitulado de “O elixir da vida” devido à performance singular do remédio. Contatos. Sim, a vida é feita de contatos. Então Júlio, que tinha o telefone do Torto já no seu speed dial ligou, perguntando Ei, Torto, que bagulho é esse novo que lançaram agora? Onde foi que tu achou essa parada? O traficante responde Achei foi a caixa de Pandora. Vou soltar o diabo na terra. Mas posso te vender por um preço bom. Negócio vai, negócio vem e o preço foi altíssimo. Quase uma ilha inteira perdida na costa brasileira. Mas o valor tinha que ser pago.
Júlio foi logo enviando seu produto para os laboratórios. Eles testaram em ratos, macacos, cães, cães farejadores, macacos de circo, gaivotas, pelicanos e tubarões. O efeito foi positivo. Obviamente cada animal tinha uma reação inicial diversa, mas logo eles melhoravam. Alguns deles morreram, mas era questão de afinidade biológica e mero desvio da média. Nada com que se preocupar. A coisa já havia sido testada na prática e ninguém havia morrido. Pra que gastar, então, mais dinheiro com testes? Só para maquiar o elixir, a farmacêutica trocou a coloração de rosa para azul.
Foi então que, certo dia, o Padre deparou-se com um comercial muito curioso na televisão. Um homem muito sério e poderoso, usando terno e gravata, chamado Júlio bradava ao mundo todo a descoberta do remédio que revolucionaria a história da humanidade. Anos de anos de prática médica e ninguém sabia o significado exato de seu remédio. Era a cura para a a AIDS, para o câncer, para a elefantíase, para a vida. O Padre ficou pálido. Levantou-se correndo e foi direto para a sala do Alberto.

Alberto me escuta! Lembra daquele frasco que eu te pedi pra pegar pra mim quando eu tava em casa sofrendo?

Ahnm... Lembro sim, Padre... Ô, cara, mas por que isso agora?

Cê contou pra alguém dele???

Não, claro que não...

Ufa! Então tudo bem... Deixa eu te falar a verdade, então. Sabe aquela fórmula que eu te falei? Era tudo mentira, invenção da minha cabeça. Eu só não queria contar pra você nem pra ninugém que naquela época eu tinha mania de misturar um pouco de água sanitária com água normal e beber sempre no mesmo horário todo dia... Te contei daquela fórmula maluca só pra te desviar do óbvio... Mas ainda bem que você não contou pra ninguém, né? Vai saber o que aquilo faria...

Caio Mello
29/03/2012

terça-feira, 27 de março de 2012

Nu

Um silêncio
                    um hiato
                                   o esgoto
o vazio


                  e um pato.

Caio Mello
27/03/2012

segunda-feira, 19 de março de 2012

Sonhos


Sinto na ponta de meus dedos o sabor de um coração pulsante. Ele brilha dentro de meu peito, faz girar a minha roda da alma. Faz-me homem enquanto simplesmente caminho. Torna-me luz enquanto durmo. Elevo-me para além do mundano, para depois dos morros que vejo no horizonte. E ali, somente ali, posso ver a poesia em seu auge.
            Olho novamente para o mundo à minha volta. As coisas desfalecem (talvez não propositais) todas em sequência. As nuvens corróem-se num expurgo ilógico.

Por que morrem tão cedo, nuvens? Pergunto eu.

Ó, poeta, o céu já não é mais o mesmo. Antes os homens paravam seus dias para encarar-nos e achar em nós as mais diversas formas que pudessem encher sonhos sem fim. Hoje... Uma nuvem nada mais é do que um conglomerado de gotículas de água.

            Mas eu não desisto. Acredito na capacidade dos sonhos. Na certeza das conquistas. No poder que tem o amor.

Nuvens, digo eu, e as crianças? E os coelhos que lhes povoam o pairar? E a loucura da vida num frasco de vidro? E eu?

Caio... Estamos aqui há mais tempo do que você pode compreender. Olha para as pessoas, estamos bem aqui.

            Mas o mundo também era tão... Mundo. Solitário, crepuscular, insosso... Então voltei a busca para a loucura que carrego dentro de mim. E encontrei, em poucos segundos, uma certeza de ser feliz. Joguei no mundo diversas cores, joguei certezas nas esquinas, joguei aquilo que vejo de bom na bondade.
            Vi a glória de mais um céu que se cruza dentro de si, entrecortado por pássaros das cores as mais vibrantes possíveis. Eu vi... Vi o mundo por detrás do mundo, a terra por detrás da terra, a carne por dentro da carne. Vi o avesso de um homem cruzar a esquina de minha casa, seus intestinos sendo arrastados pelo chão, vi o pequeno menino dar passos como se andar fosse a solução para a guerra nuclear, vi um prédio bater asas e alçar voo. Eu vi tudo enfim, com meu coração. E meus olhos refletiram em minha retina meu sonho.
            O sonho é real. É talvez mais real do que minha própria pulsação. Está preso à minha alma, faz-me um transgressor do simples concatenar dos minutos. Sou, em certo sentido, puro. Em outro, o caos. A destruição do que me ensinaram a vida inteira.

Como se os braços pudessem tocar o universo
e as asas bucassem sustentação nos sentimentos
e as crianças adivinhassem o desejo dos velhos
como num brinquedo colorido do parque novo.

            E concluí, por fim, que a vida sem amar não é vida. A vida por simples conquista do prazer e da alimentação é selvagem. Existência por existência... Sejamos, então, vegetais! Diluo-me num risco irrecusável de arriscar tudo que sou por uma paixão que consiga trazer-me de volta a mim. E, se isso falhar, terei um sorriso escancarado no rosto de um homem que soube lutar pelo que acredita na vida. De um homem que realmente acreditava no poder do amor em mudar o mundo. Utópico que seja, lunático que seja, refutável que seja, serei. E só não ame quem não tiver a capacidade de vencer o marasmo infértil da tristeza.

Caio Mello
19/03/2012

Brilhantismo


Eis que o sol desponta seus primeiros raios
em mais uma manhã.
Entrecortado, sem jeito por detrás dos
arranha-céus,
surge o persistente vulto do astro.

E o homem de coração partido,
que viu sua mulher partir,
sente na ponta de seus pés o primeiro calor matutino.
Abre forçosamente os olhos ainda inchados.
Com o acordar vem ao peito toda a tristeza
que o sonho havia levado.
Mas ele sente a força da manhã.
Infla-se por dentro com o estofo
de algodão que também pertence aos elefantes. E se levanta.

O senhor de noventa e cinco anos de idade
abre os olhos extasiado. Ainda está vivo!
Por quantos dias poderá ainda sentir o calor
dos pequenos fogos dourados que banham seu quarto?
Tudo é uma nova descoberta.

A criança ainda muito nova
encosta a ponta de seus dedos pequeninos
na janela de seu quarto.
Abre olhos enormes e encara o sol com espanto.
Como pode ser tão forte? Como pode ser tão grande?

O presidiário vê uma fuga do sufoco.
Entra em júbilo ao ver suas grades
sendo perfuradas pela imensidão que banha seu quarto.
Ele sorri, saudoso de seu futebol na praça aos domingos.

A garota acaba de sair de um bar.
Olha para o horizonte e ri de si mesma.
Olha, já é dia... Ainda estou acordada!
Segue para a rua fazendo um meneio sensual,
chamando logo um táxi.

O menino acorda espantado,
ainda pensando nos pesadelos da noite anterior.
Alivia seu peito ao ver a luz do novo dia
raiando pela sua janela.
Nada mais de monstros, medos e fobias.

O aventureiro abre seus olhos e vê
as últimas estrelas sendo abraçadas pelos
raios vermelhos que correm livres
pelo céu que lhe serviu de leito.

O suicida mantém os olhos abertos.
Está cansado, está frenético, não encontra
meio nem começo nem fim.
Mas algo no seu peito cresce...
Talvez uma resposta indizível,
ou ainda uma nova pergunta aguçando sua mente.
Sente ele uma vontade absurda de continuar vivo
de cruzar o mundo para atingir os locais mais inóspitos
e neles abrir os olhos para mais um raiar.
Ele sente o júbilo que há muito não sentia.
Consegue pulsar em suas veias
as estrelas de que é feito. E cessa seu terror.

Lá sobe o sol.
Talvez mais tímido na metrópole,
muito mais refletido nos vidros.
Mas, ainda assim, sobe muito rápido.
Tem ele ombros fortes.
Carrega com si toda a paura
e toda a tristeza da noite.
E deixa o mundo estupefato
com o seu poder.
Busca, antes de tudo, o sentimento mais puro
preso no âmago de todos nós.
Aquele sentimento que nós mesmos esquecemos.
Uma sensação de palpitar. O doce tremer de uma lágrima.
O astro carrega em si nossas falhas
e nos dá o alimento para uma nova esperança.
Ele nos lembra de que somos humanos,
faz-nos carne.

O sol nos faz lembrar do amor.

Caio Mello
19/03/2012

segunda-feira, 12 de março de 2012

Garoatown


Estou aqui na urbe
Ondes os pombos têm casa
Mas eu não tenho casa
Eu vivo na sarjeta

Escorrendo lerdo
Em metroviários
Anúncios partidários
Onde dançam as baratas

Roedores de champanhe
Luzes de natal
Aqui eu sobrevivo
Na Garoatown

O trânsito frenético
Marronzinhos de hidrogênio
Bueiros Aires brasileira
Terra de coroa cobre

Desci depressa as ladeiras
No corno da favela
Vi os sapos gaguejando
No bico das janelas

Óculos combustão
Ocupado o chacal
Ocupados transeuntes
Na Garoatown

Ontem tive sonho
Já postei pelo correio
Aranhas movidas a diesel
E mandei pelo meu e-mail

Eu vi ali depois
Depois de um farol
Tem um farol
Não tem mais ninguém

Eu passei na feira
Me venderam um jornal
Lá dizia acabou a vida
Na Garoatown

Acordei de madrugada
Abri olhos de vidro
Refleti na noite densa
As estrelas de silício

A minha casa tem estrelas
Elas brilham no escuro
Só fechar a porta
E ligá-las na tomada

Estou muito atrasado
Já me cansa o cobrador
Essa cobra de cimento
Injetando essa dor minha

Ninguém foge a esse cheiro
Todo dia me sinto mal
Emabalado a vácuo
Na Garoatown!

Caio Mello
12/03/2012
Para Chico Science

segunda-feira, 5 de março de 2012

Procissão


Desejo ser o teórico do caos.
Quero a destruição da lógica,
o fim de todo sentido.
A falta de sequência.

Que não sobre pedra sobre pedra,
dia sobre dia,
pé ante pé.

Busco o nada.
O vazio.
Vácuo.
A obliteração.

Cansei da retórica,
da lógica, da quiropraxia,
da bioquímica, dos otorrinolaringologistas.

O esteriótipo da burocracia inútil.
A democracia. A oligarquia.
A monarquia. A retroalimentação.

Enojo-me com as filas de espera,
com os equilíbrios de uma vida saudável,
com o desejo ilimitado dos cartões de crédito,
com os fósforos de quantidade contada no rótulo da embalagem.

Quero que minhas palavras não façam o menor sentido.
Buscarei causar o nojo, o desprezo, o asco,
um sentimento fétido semelhante à ojeriza.

Não quero que me leiam.
Não quero que me liguem.
Não quero que respirem.
Nem a morte me é aprazível.

und
bin
nud
ez
mais
nun
ca...

E o meu chão será a carne
moribunda de um homem cego.
O hálito de álcool
e os dentes perdidos pela avenida.

Não quero que me vejam!
Não quero!
A escuridão do fundo de uma gruta,
com suas estalactites, traz também o silêncio.
A semelhança à morte é assombrosa.

Não desejo o belo, não desejo o feio,
não desejo versos, não desejo vidas,
não desejo grandes inspirações.

Quero o verbo errático que cruza a madrugada
ainda crua em seus lençóis pálidos.
Quero o parafuso enferrujado
de um edifício do século passado.

Desenterro o sentimento que há muito
se perdeu dentro de mim.
Ele está afogado debaixo de papéis,
debaixo de canetas –tinteiro,
debaixo de tinta laranja.

Ele é o cão.
O enlouquecer da manhã parda.
O cabloco viajante de um pranto ardente.
A faca sem lâmina de João Cabral.

Não me aguento mais dentro dessa caixa.
Desse bendizer diário de bons dias,
por ques, obrigados, com licenças,
agradecidos, sim senhores.

O terno e o fraque são para o enterro.
Os olhos de vidro e o psicopatismo.
A lama que se prende no solo do sapato
depois de jogar aquela última rosa.

O pranto que escorre pela face
já desconhece de sua origem
o por que de seu existir.
E rola tal qual chuva
num verter categórico
porque há de ser assim desde que
o homem descobriu a gravidade.
E o pranto reflete o dia
em seu vagar sereno (como se chuva matutina fosse)
na busca fatídica de uma terra
que há de ser assim
desde que o homem descobriu a raiz.

Eu quero a dor no joelho.
A feiúra.
O suicídio do ócio
e o repente impulsivo da compulsão.

Desejo a falta de periodicidade.
O desespero da dúvida.
A fraqueza do homem que
foi atropelado pela perplexidão
e agora está paraplégico.
(que Deus o ajude)

Eu desejo o talvez!
A irracionalidade!
Um grito rouco de um peito imbecil
já metralhado de amores incompletos.

Quero demais a falta de continuidade,
a ausência de princípio,
infortúnio do medíocre
e sepulcro do apoteótico.

Quero tudo isso com gosto.
De ficar preso nos dentes como casca de feijão.
Desejo desesperadamente.
Um par de coxas dourado de sol.
Cintura suave e seios fartos.

A orquestra do fim do mundo.
A morte coletiva.
Infiltração no andar de cima.

E que nada mais seja válido.

Caio Mello
05/03/2012





sábado, 3 de março de 2012

Decreto real


Decreta o rei o fim de tudo.

Não haverá mais pães de queijo
para se comer às pressas ao cruzar a avenida.
Não haverá mais o chá das quatro,
nem o bule nem a chávena.

Não se pode mais dizer obrigado,
nem por favor, nem por obséquio.
Nem mesmo se for com hora marcada.

O juros não mais existem.
A usura nunca foi mais pecado do que é hoje.
O dinheiro nem papel pode ser.

Como atitude posterior,
não haverá nem sequer as horas para serem marcadas.
Os dias, os meses, os anos...
O transcorrer do tempo não pode ser mais mensurado.
Quebrem-se todas as ampulhetas.

Do céu e do inferno não se fala mais.
Somos carne tal qual o é um coelho
ou um antílope ou um paquiderme.

Não se pode mais usar roupa.
Lã, algodão, seda...
Pele de animal está na lista
das coisas mais proibidas.

As padarias devem ser fechadas.
Toda a massa de pão restante
deve ser entregue aos gatos e aos ratos
para que devorem qualquer
traço que ainda sobre do estado da arte.

A própria arte também há de não existir mais.
Livros serão queimados em praça pública,
filmes serão deletados e destruídos.
Quem for encontrado com instrumentos musicais em casa,
submeter-se-á a um processo de aniquilamento mental.

Não se deve mais pensar com veemência.
O respirar deve ser mantido com atenção.
A deglutição também não pode ser esquecida.
Mas o sexo é supérfluo.
(hoje há fertilização por outros métodos)

O nascer do sol não deve mais se chamar
nascer do sol. O sol sempre nasceu desde que o mundo é mundo
e não é a falta de uma simples palavra que vai
impedi-lo de continuar.
O nascer do sol deve ser contemplado somente
e qualquer suspiro em excesso será punido.

Os meios de comunicação serão todos desativados.
Nada de celulares, internet, e-mails...
O desligamento será conduzido pelo fim do acesso
à energia elétrica.

Não haverá mais energia.
Quem for encontra com qualquer pilha restante
dos tempos antigos
também será condenado.

Não devem mais ser consultadas as
enciclopédias. Mesmo porque
tal vocábulo possui cunho vernáculo
descabido. É exagero.

Não será banido o amor
porque isso seria impossível.
Será banida, todavida,
a palavra “amor”.
Amar será a simplicidade
e a cumplicidade de duas pessoas
introduzidas na vida cotidiana.
Dizer “eu te amo” fica proibido.

Também está proibido o casamento.
As intituições de estabilidade social só
serão mantidas se assim desejarem ambas as partes.
Se o homem e a mulher, ou o homem e o homem,
ou a mulher e a mulher decidirem manter exclusividade entre si,
fica garantido esse direito pelo rei.
A trangressão será punida com a morte.

Não serão permitidos mais enterros.
O ocaso existencial deve ser encarado como a chuva,
como o vento fresco da manhã,
como o orvalho.
Morrer significa apenas mais um passo.

Devem ser mantidos apenas os primeiros nomes.
Sobrenomes são considerados supérfluos.
Indivíduos manterão relações de parentesco
através da proximidade e da espontaneidade.
O sentimento de amor, ainda que não expresso com tal palavra,
deverá ser facilmente identificado para que se forme um parentesco.

Os jardins serão mantidos.
A beleza das plantas e dos animais
não pode ser dispensada.

O raciocínio será diluído.
O que sobrar de todos será
o âmago do que nos fez homens.
Fica proibida qualquer posterior tentativa de explicação
da humanidade.
Ser é fato incontestável.

Assim dita e promulga o rei.
Publicação no Diário Real em 03 de Março de 2012.
Ditante diligente Caio Torres Ferraz de Mello.
CUMPRA-SE.