domingo, 26 de agosto de 2012

A origem do raiar


Roubaram-lhe o dia
e a noite tão fria
sem nem ter por quê
cegou quem já vê.

E assim, de repente,
na voz de quem mente
perdeu-se o raiar.
Acabou num bar

no meio da noite.
Te digo, se foi-te
sem familiar,
pense no solar!

O sol foi bebendo...
Não foi reverendo,
nem padre, nem bispo
que chegou ao risco

dizer para o sol
bebeste formol,
mel, pinga e cerveja
Para um pouco e veja!

Nem o presidente
notório eloquente
disse-lhe a verdade.
E já era tarde.

Ou cedo, eu não sei.
Horas não contei.
Tudo escuridão!
Meus olhos verão?

Não viram eu sei.
Mas dias contei.
Foram sete séculos
muitos foram ecos

do raiar não vindo.
E o sol extorquindo
dono botequim :
vou beber sem fim!

Não digo, não volto.
E hoje eu escolto
partido coração.
Minha condição

a nascer o dia:
ter o que teria
não fosse roubado.
Oh, sou malfadado!

Havia a senhora,
jóias na penhora,
não tinha dinheiro.
O seu tempo inteiro

quando era mais jovem,
do tempo refém,
olhava pro céu
fazia escarcéu.

Achava tão lindo
algo tão infindo!
Tanto olhava aurora
lembrou sem demora.

Foi ao bar do dia
numa noite fria.
E disse ao sol olha.
O olho sol se molha...

Fundo da retina
mas tão pequenina!
tão bela manhã
trouxe ao sol o afã.

Nós vemos de novo.
Eu, tu, todo o povo.
Sem pensar com calma
Que o raiar é nossa alma.

Caio Mello

Andaime


Estratosférico

Astronômico
Eustáquio

Lotérico indigente

Expurgo crisálido

Asdrúbal

Cataclisma pútrido

Tétrico messiânico

Anatagílson

As putas nos cais com os estivadores

Cérebro elétrico raquítico

Jonileide

Carnificina lúgrube

O luar na frente da tumba

Fecunda

Ratos raivosos ruminavam meu rosto

Lampejo ilustre e estilhaçado

Arnaldo

E o dia imberbe desgostoso de raiar

Estúpido

Caio Mello

26/08/2012

Parca paúra


Decreta-se hoje o fim do medo.
Ele está abolido e, a partir desta data, será ilegal.
Não haverá mais meias palavras, nem frases quase ditas.

Cada indivíduo será dotado de uma glória interna.
Um raiar tão fresco quanto o orvalho da manhã,
tão jovem quanto o olhar de uma criança,
tão poderoso quanto as bombas nucleares.

Não será permitido deixar de dizer aquilo que os olhos
querem dizer, mas a boca não permite.
Tudo será dito. Com firmeza.
Não seremos mais somente a metade do que somos.

Nossos sonhos, nossos desejos e, principalmente,
nossos dons serão levados ao extremo.
O erro acabará se tornando uma consequência,
não um obstáculo.

Amaremos incondicionalmente.
Amaremos durante o dia, durante a noite,
de madrugada ouvindo os pássaros singrando ao sabor do novo dia.
Amaremos sem o medo de sentir o peito doer,
sem mesmo a necessidade de saber se nos amam de volta.
(e assim seremos amados eternamente)

Não teremos medo de doar,
de conquistar um pouco de si na alma do outro.

Não teremos medo da morte. Nem medo de morrer.
Viveremos cada instante ao infinito,
num eterno júbilo de saber-nos vivos.

Não teremos mais pudor.
Nada mais vai nos impedir de mostrar nossa cara.
As nossas fantasias, inclusive as mais burlescas, cairão por terra
e somente nossa face, maltrapilha e indigente, dirá oi ao mundo.

Trabalharemos de sol a sol sem ter medo de perder dinheiro,
sem ter medo de sermos enganados.
Batalharemos a cada segundo, a cada gota de suor,
a cada noite de sono passada em claro.

Faremos, finalmente, as coisas que nossa alma queria,
mas que nos proibia.
Agora somos a alma, o ânimo, o êxtase, a glória.

Não teremos medo de dar razão à paz.
Não teremos medo de mostrá-la como única verdade
a existir pelo chão, pela terra pisada.
Não teremos medo de mostrar ao próximo nossos próprios erros.
Admitiremos nossas falhas, construiremos juntos.

Acreditaremos em nossos sonhos até sermos também sonhos,
vivendo num mundo paralelo, onde uma mente alheia
nos sonhe na madrugada de inverno.

Seremos imperfeitos, falhos.
Faremos nossa caminhada, sem necessariamente saber o fim.
Porém, ao fecharmos os olhos para o mundo, abrindo-os para nós mesmos,
veremos a nós na imensidão.

E teremos vivido.

Caio Mello
26/08/2012

domingo, 19 de agosto de 2012

Relato de um viajante


Eu estava à procura de respostas. O caos da vida interessava-me. O ato de viver na urbe, assim tão depressa, não era capaz de sufocar minha natural tendência ao infinito. Eram, talvez, poucos segundos diários de abstração. Porém, para além daquele conteúdo mínimo, eu não podia ser mais objetivo. Não conseguia. Minha carne me impossibilitava. Minha própria natureza buscava mais respostas.
            Então, onde buscar respostas? Nos buracos do mundo? Na falta de razão? Numa estante de livros? Num caminhão de lixo? Talvez as perguntas fossem um bom começo. O meio para atingir meu objetivo veio de um modo muito mais simples do que eu acreditei que seria. Choco-me com a lembrança.

            Uma porta.

            Encontrei-a no final do corredor da minha casa. Um corredor comprido, com vários cômodos e tapete vermelho. Nas paredes, algumas fotos de minha infância. Aquela com mais sorrisos, a outra um tanto mais séria.
            Era uma porta, de madeira, de fato. Não era pintada, não tinha detalhes rebuscados e sua maçaneta era de um tom cinza fosco. Abri-a. Eu agia naturalmente. Podia sentir o seu fecho como o bater de um coração. Era um fecho complexo, de vários pinos e proas. Segurei suavemente sua maçaneta. Girei-a. Estava aberta!
            Entrei no cômodo. Pequeno, mas com um pé direito alto. Paredes de pedra. Uma janela bem grande, fechada, com vista para um vasto bosque. Não havia muitos móveis. No centro da sala, havia um divã. Deitado, encarava-me o rei.

Olá, Caio. Como está?

Bom dia, Vossa Excelência.

Pode me chamar de Rei.

Bom... Rei, eu estou procurando respostas na vida. Sabe... Eu descobri que tenho uma forte tendência às manhãs de sol. O mar, a areia, as praias... E os sorrisos das crianças também. Os paquidermes admirados na África por sabedoria natural.

Eu entendo sua vida.
Consigo ver sua tela.
Também já vejo a partida:
Precisa de um barco a vela.

Pois bem, ó Rei, se é de seu mistério e de sua incongruência fornecer-me um barco a vela, aceito-o de bom grado.

Caio, faça bom proveito.

Farei, ó Rei.

            Deu-me o Rei seu melhor barco a vela. Era humilde, franzino, pintado de branco com laterais azul. Sentei no barco assim que pude. Comecei a atravessar o mar. Eu procurava saber dos ventos, mas não sabia que rumo tomar. Procurava sentir as distâncias, vivenciar os cálculos, refazer as minhas vontades. Mas, mesmo assim, não sabia para onde ia... Provimentos tinha de monte: muita comida e muita água. Além disso, algumas árvores brotavam em alto mar. Eu podia amarrar o barco a elas e parar para comer frutas.
            Depois de três meses, três dias, três horas e três minutos no barco, avistei uma pequena senhora sentada num pequeníssimo banco de areia em alto mar. Encostei para conversar:

Olá, senhora.

Menino, menino! Toma cuidado, menino! Teu barco é franzino! E o mar é bravio! É bem mais do que qualquer rio! Cuidado! Vai acabar navegando para o lugar errado!

Calma, senhora. Eu sei para onde estou indo.

Sabe mesmo? Tem certeza? Você está perdido. E quem vaga muito é vagabundo. Você está no umbigo do mundo!

            No mesmo instante em que ela falou Umbigo do Mundo, houve uma mudança no fluxo das águas. Descobri que, na verdade, a velha sentada num banco de areia era somente o nariz de uma baleia gigante que logo emergiu. Ela encarou-me por um minuto e meio. Depois, mergulhou. Tive tempo ainda de ver seu vulto sumindo nas profundezas do mar.
            Segui ainda mais uma meia hora no mesmo sentido. Encontrei, enfim o umbigo do mundo. Um redemoinho gigantesco, sem fim, que muito parecia com uma descarga. A água convergia toda para um só centro. Meu pequeno barco não poderia fazer qualquer frente àquela força colossal. Eu lutei contra. Demais. Sem o menor sucesso.
            Fui arrastado para o leito do oceano. Lá debaixo, o mar fazia forma de funil. Eu podia ver o sol bem em cima, no horizonte. O chão abriu e eu bati minha cabeça.
            Quando acordei, estava em uma gruta enorme. Fazia muito calor lá dentro. Um monstro enorme, na forma de um cachorro, correu em minha direção. Antes que me atingisse, transformou-se num homem. Olhos de fogo, dentes de besta. Terno e gravata.

Olá, Caio!

Belzebu.

Tinhoso, Cão, Coisa-ruim, Carudo... Me chama como quiser. O que é que cê veio fazer aqui? Fica me enchendo a paciência. Odeio quando gente viva vem pra cá. É uma lambança, uma encheção de saco depois ficar prestando contas pra lá em cima. Eles ficam me pergutando “E aí, o que aquele cara foi fazer no Inferno? Seu Diabo maldito, para de ficar caçando alma viva”. Bla bla bla bla... Eu não te quero aqui, entendeu?

Entendi.

Sabe o pior? O pior é que eu nem posso te mandar pro inferno. Cê já tá no inferno! Viu que ironia sem a menor graça? Seu maldito.

Não foi culpa minha. Eu desci pelo umbigo do mundo.

É... O Umbigo é um lugar bem acidentado, não é sempre que a gente cai onde a gente queria através dele. Uma vez eu queria dar uma passadinha no Purgatório e aquela porcaria me mandou pra a Nova Zelândia. O que é quase a mesma coisa, né... Enfim, você tem que sair daqui. Ponto.

E como eu faço pra sair?

Espera um pouco... Eu já sei por que cê tava querendo vir aqui... Cê é aquele fulano cheio de perguntas, não é? Cheio de “eu sou foda, eu quero saber, o mundo é uma merda”. Cara, na real, cê é imbecil. Vai arrumar um emprego, larga essa merda de ficar brisando. Ninguém aguenta mais essa bosta! Que saco! E cê sabe que o caminho pro Inferno tá cheio de boas intenções. Cê fica nessa de “Eu vou mudar o mundo”. Dá mais uns oitenta anos e cê vai voltar pra cá. E eu to te falando isso na moral. Porque o que eu mais odeio nesse mundo é poeta no inferno. Os caras chegam aqui cheios de versinhos achando que podem ficar floreando essa merda. A gente queima eles até a ponta dos dedos doer. Assim, eles param de escrever. Depois, cortamos a língua fora e eles param de falar. De vez em quando a gente manda uns de volta pra terra porque a língua cresce de novo. E isso é um saco. Que deus não saiba disso! Eu vou te dar o que cê procura porque eu sei que a sua resposta não vai ser tão boa assim. Cê vai ficar tão chocado, mas tão chocado, que nunca mais vai querer escrever uma letra na sua vida. É o seguinte: eu vou te dar essa corda. Ela é especial. Cê vai jogar ela na Lua numa noite de lua cheia. Depois disso, você vai saber o que fazer. Só não pode ficar lá em cima depois do sol nascer, senão você torra e morre, entendeu?

Entendi. Obrigado.

Não precisa se obrigar. Um dia sua alma vai ser minha por obrigação. Todos os poetas nasceram perdidos. Todos!

            Eu peguei a corda que Belzebu me deu. Escalei um buraco enorme para sair do Inferno. Rezei muito naquela noite, pedindo para nunca mais voltar para lá. O cheiro de enxofre era terrível. Era lua nova. Eu sentei-me na grama e fiquei encarando o céu por vários dias. As estrelas me alegravam todas as noites.
            Veio a lua cheia. Já na primeira noite do ciclo, atirei a corda para cima. Perfeito! A Lua estava presa. Comecei a subir.

Eu subia
subia
subia
ubias
biasu
iasub
asubi
subia...

            Infelizmente, já no meio do caminho, o sol começou a nascer.Eu não tinha muito o que fazer. Se eu me jogasse lá de cima, morreria na certa. Se eu continuasse na minha subida, não teria tempo de chegar à Lua antes que o sol nascesse para ficar no lado escuro da Lua. Não tive dúvida. Enrolei minha mão numa camiseta, fechei os olhos, esperei o sol começar a nascer. Enquanto ele ainda estava laranja e fresco, agarrei-o e guardei-o em meu bolso. Era quente, mas eu podia aguentar.
            Chegando na superfícia lunar, encontrei João, O Brasileiro que queria ir à Lua. Ele não era um homem de muita prosa. Ele olhou para mim e disse:

Caio, de verdade, não faz isso. Não vale a pena você levar algumas discussões até o fim, sabe? Tem umas coisas na vida que a gente não precisa saber. Tanta gente por aí segue sua vida sem se perguntar. E você faz perguntas demais! Quem muito quer, pouco ganha! Toma cuidado com os seus desejos. Eu acho que, um dia, você ainda vai acabar ficando louco com tudo isso. Essas perguntas, essa ânsia em que você vive... Você vai encontrar coisas que não deseja.

João, por favor, me ajuda. Eu só quero algumas respostas.

            João me levou até a sua casa. Lá, descobri que ele havia construído um canhão gigantesco.

Eu construí essa canhão aqui para conseguir voltar pra Terra caso sentisse saudades. Mas, até hoje, não tive vontade nenhuma de reecontrar ninguém. Sou um cara muito cético com as coisas. Não acho que as pessoas valham a pena. Por isso, sou feliz aqui na Lua. Ela me ama como jamais alguém me amou. E esse canhão é forte o suficiente pra te mandar para além da Terra: para o centro da Terra.

Mas eu já fui lá pelo Umbigo do Mundo e encontrei Belzebu...

Não, Caio! O Umbigo da Mundo pode te levar pra diversos lugares. Além do mais, o inferno não fica no centro do mundo, fica no Texas!

            Eu coloquei um capacete e entrei no canhão. João me deu um gole de pinga para sentir menos dor com o impacto. Ele contou... Três, dois, um... Senti uma força gigantesca em cima de mim, senti que eu mesmo saía do meu corpo numa velocidade jamais experimentada por ninguém. O capacete era muito forte. Bati a cabeça no chão quando entrei no solo. Desmaiei.
            Acordei num ambiente escuro. Achei que não era um cômodo, pois sentia uma brisa passando. Era uma brisa característica de espaços muito abertos. A única coisa que iluminava o local era uma luminária pendurada por um cabo que se perdia na escuridão. Logo abaixo da luminária, uma mesa rústica de madeira. Uma cadeira de ferro de cada lado da mesa. Cadeiras sem braço. Um homem estava sentado na mesa. Eu não podia ver seu rosto porque estava acobertado pela sombra gerada pela luz da luminária incidindo sobre sua cabeça. Decidi interpelá-lo:

Deus, é você?

Não, Caio, não sou Deus. Longe disso. Ele merece muito mais respeito.

Quem é você, então?

Eu sou o Bio.

            Fiquei sem reação.

Mentira.

Verdade.

Mas eu sou o Bio.

Qual é seu nome, mesmo?

Caio.

Então, como você pode ser o Bio e o Caio ao mesmo tempo?

Mas Bio é o meu apelido...

Eu posso te apelidar de qualquer coisa. Posso te chamar de Cafú agora e você vai passar a ser o Cafú. Mas o Bio sou eu.

Não, não é possível! Eu andei tudo isso para encontrar... O Bio?? É sério?

Quem você esperava, a Madonna? Pensa bem, cara. Quantas pessoas têm a oportunidade de conversar com si mesmas desse jeito? Isso aqui nunca mais vai acontecer na sua vida...

Nossa, mas sei lá... Tinha tantas coisas que eu queria perguntar para tanta gente por aí no mundo... Tantos enigmas que eu criei dentro de minha mente! Um mar de insanidades que tentei desvendar... Eu fui cobrindo o mundo de questões, listei-as e me preparei tanto tempo para essa viagem. Que coisa!

Para de enrolar, Caio. E tem mais um detalhe que eu preciso te dizer: você só tem direito a me fazer uma pergunta.

Como assim, Bio?!

E você tem só um minuto para decidir qual vai ser a sua pergunta. Começando... Agora! Escolhe logo!

Calma, espera, por favor! Por favor!

            Congelei.

Trinta segundos... Quinze. Dez! Vai, agora! Qual a pergunta?!

Calma!

AGORA!

Tá, bem, Bio, calma! Lá vai a pergunta: o que você acha do Caio?

Ele parece ser um cara bastante feliz.

Ótimo.

Agora você precisa ir embora. Anda naquela direção.

            Eu andei na direção indicada pelo Bio. Envoltei-me na escuridão mais perpétua que já vivenciei. Busquei no escuro uma certeza. Encontrei uma maçaneta. Abri-a. Eu estava no corredor da minha sala. Fechei a porta e fui para a cozinha. Eu estava com fome.

Caio Mello
19/08/2012

domingo, 12 de agosto de 2012

O sonho hereditário

Pai,
quando a gente sonha junto,
meus olhos brilham.

Caio Mello
12/08/2012

A história do Reino de Pedra


E aquela região era governada por um Rei
notório por sua rigidez.
Sabia as leis do reino de cabeça, dizia-as a quem quisesse ouvir
e fazia correr a todos a notícia de que a ordem seria mantida.

Boatos havia sobre a condição física do Rei.
Ele nunca adoecia, nunca sangrava,
nunca sentia frio, nem fome, nem sede.
Os olhos eram buracos fundos.

Era o melhor guerreiro.
Sabia manusear a espada, o escudo, o arco-e-flecha
e muitas outras armas de batalha.
Ele nunca sofrera sequer um arranhão na guerra.

Um líder paradoxal. O quotidiano era muito mais estável,
as pessoas podiam prever a paz e a economia;
mesmo assim, era o Rei notório pelo seu agir despótico,
irrefutável e imperioso.

Um dia, o Rei caiu de seu cavalo em uma batalha.
Um médico foi logo requisitado para ajudar o líder.
Qual a surpresa do doutor! O coração do Rei era de pedra.
E, em suas veias, corria cascalho.

Todo o povo teve medo.
Sem saber o que falar,
todos vivos se calaram.
Procuravam entender
onde foi que o rei trocara
coração por uma pedra!
Ninguém podia falar,
nem chegar perto do assunto.

Mesmo sendo duro e gelado como o inverno, o Rei de Pedra
conseguiu casar com uma mulher muito bonita.
Ela ela loira com os cabelos da cor do sol
e com olhos da cor da floresta.

O Rei deu à sua amada uma esmeralda.
Combina com seus olhos, dizia ele.
E o povo, assustado, ficou pensando no rebento
que sairia do ventre da mãe com o sangue de Pedra.

Mas o seu menino nasceu saudável,
da mãe ganhou os olhos de esmeralda
e do pai ganhou sangue pedra calda.
Ele tinha uma força admirável.

O jovem menino já lutava junto ao pai.
Corriam pelos campos de batalha lado a lado.
O Rei de Pedra não sei deixava abater,
o filho teria a educação pela Pedra.

Quando o menino ficava
bem sozinho no seu quarto
enfim podia chorar.
Molhava o chão de tristeza,
molhava os olhos de mar.
Por que ser da realeza
sem razão de apaixonar?
Mas seu pai nunca chorava,
muito menos dava abraço.
Lutava com o menino,
calejava todo o corpo.

Eis que um dia a guerra sem fim abateu o Reino de Pedra.

            Pai e filho embrenharam-se em lutas eternas. O sangue cobria os pastos da região. O Rei de Pedra não abria mão de seu povo. Era déspota, era forte, era impenetrável. Flechava corações desapercebidos, tinha-os em suas mãos. Seu exército era limitado, mas o Rei sabia muito de estratégia. Seus guardas trabalhavam por fé, devoção e voracidade. Queriam ser tão fortes quanto o rei.

Dizem que uma espada chegou a atravessar
o peito do Rei de Pedra.
Mas o corte ficou cego, o combatente perdido
e o Rei nem sequer grunhiu de dor.

A tal guerra não tinha mais fim.
A Morte dizia vai morrer sim.
E foram poucos que ficaram vivos,
mais outros permaneceram ativos.

O rei levava seus homens até o limite.
Treinava-os dando-lhes um medo tão enorme
que qualquer outro medo no mundo
seria apenas mais uma verdade.

Quebrava-lhes os dedos para que
tivessem firmeza no punho.
Impedia-os de dormir demais
porque o sonhar era perigoso.

E, assim, o Rei de Pedra
conseguiu manter seu Reino vivo.
Lutou com cada homem seu,
suou, cortou, suspirou... E venceu.

Mas não houve comemoração.

Na derradeira batalha,
travada numa grandiosa tarde de terça-feira
com nuvens prateadas no céu,
o Rei passou por dificuldades.

E, no exato momento de conhecer seu algoz,
o Rei foi auxiliado pelo filho.
O Jovem Esmeralda atirou-se no fio da espada
e o seu peito virou bainha.

O Rei, mesmo educando o menino pela dureza,
não conseguiu transformar o seu coração em pedra.
Um curioso peito de carne batia um sangue de cascalho.
E presto cessaram as esmeraldas de brilhar.

Rei segurou o menino.
O trouxe perto de si,
apertou-o junto ao peito.
Segurou-o por um dia
inteiro, sem se mexer.

Depois, fitou seu rosto gelado.
O Rei de Pedra
desolado
não sabia o que fazer.

Quem soube foi seu rosto.
Do canto de seu olho, na beirada da vista,
correu pela face, como que fugindo de soslaio,
uma lágrima de mercúrio.

Caio Mello
12/08/2012