segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Anfiurbe

A névoa negra
espalhou-se pela rua.
Engoliu as casas, engoliu os homens.

Sobrou a um canto
um punhado de vontades empoeiradas,
de versos não cantados, de vontades reprimidas.

E a Noite seguia rumo
em seu estertor
que se fazia possante, roncava, ribombava,
explodia em fúria e reinava novamente.

E o Sol sempre tropeçava em algum degrau da escada
e não conseguia chegar a tempo:
rompia mais uma vez a Noite.

Não estava frio. Era frio.
Era sempre frio e mais frio, um frio sem fim
que gelava a alma dos poucos que corajavam sair de suas covas.
O verso cálido de quem tem medo de cantar.

E o silêncio invadia a cidade com suas águas de veneno.
Um cão tinha seus olhos vidrados em uma tevê de cores vivas
que passava imagens de decrépitos e pálidos jornalistas.
Notícias eram risadas irônicas naqueles tempos.

Tudo tremia silenciosamente por dentro.
Chacoalhavam as coisas de leve, repentiamente sós.
Os detalhes pareciam querer ruir a qualquer instante,
desabando sobre o marasmo estuporador.

Os homens andavam febris.
As crianças andavam cabisbaixas.
Os velhos não morriam para não terem que viver.

Um véu de incapacidade cobria os ânimos.
O mundo parecia não fazer mais sentido.
Era uma grande multidão de homens sós.

Sozinhos, isolavam-se cada qual em seu canto.
Jogados a um canto como o punhado de vontades empoeiradas.
Em nenhum canto havia canto de alegria.

Ninguém mais cantava.
Cantar doía o coração.
O teatro da vida havia desencarnado suas vontades,
liberando os medos mais profundos
das coragens libertas.

Todos tentaram.
Haviam tentado diversas vezes,
haviam até reinterpretado a vida em seu sentido mais amplo,
haviam buscado novas certezas.

Mas a verdade avassaladora voltou a subjugar os ânimos.
Contra a verdade não havia contra-argumentos.
A realidade era aquela, contra a qual não havia luta.
Tudo o que sobrava dos tempos bons era um suspiro.

E pesadelos.
Muitos pesadelos sobravam nas mentes inertes,
vontades reprimidas de passados distantes,
de vontades já perdidas.

Os fantasmas não eram assombrações.
Eram o próprio homem.
O indivíduo não sonhava mais,
sofria com o seu querer desprovido de concretização.

Chorar também já não surtia efeito.
A vida, em outras terras, fazia sentido.
Mas ali não. Ali vivia-se de sonhos.
E os sonhos eram pesadelos.

E, sobre tudo isso,
junto a nuvens cinzas,
vivia um par de olhos
a tentar entender o que dera errado
em tão curta vida.

Caio Mello
22/11/2010

Um comentário:

  1. Caríssimo Doutor/Artista/Escritor-prosador-poeta Caio Ferraz de Mello,
    És tu, meu grande amigo! Por isso digo-te, que após esse longo hiato -em que fui descobrir as drogas, ainda recônditas, porém notórias, de um pacato vilarejo húngaro (desbravado pelo grande explorador inglês Sir Richard Francis Burton) denominado Kocs- retorno finalmente a esse site, no entanto, agora, com a minha alma revigorada por alcançar o Geist. Bebamos em memória a Hegel! Viva a dialética! Fumemos!
    Sincieramente,
    Ramones Del Pacheco Della Manchita Messi.
    Ps: Peço-te desculpas, se me excedi em meu relato. É pedir muito ao um pobre espírito iluminado, que se contenha perante um descobrimento de êxtase metafísico.

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