segunda-feira, 10 de abril de 2017

Reencontro

Saem os mortos da cova.
Conheço o cheiro, já vi, já conheci.
Eles mantêm os mesmos modos
de quando vivos.

O primeiro senta-se à mesa comigo e
tomamos uma caipirinha de cachaça com limão.
Pergunto-lhe por que tivera tantas restrições comigo.
Ele não soube, não quis me responder.
Aquele era um assunto entre vivos
do qual ele não poderia participar. Mas eu ainda o culpo.
Culpo-o por momentos de solidão, de assombração, de incompreensão.
Ele não tinha o direito de manter aquele discurso.

À segunda, peço perdão. Falha minha.
Eu ainda era jovem naquela época, eu não saberia o que dizer.
Também digo que a memória refresca mais
quando eu lembro de um sabor. A associação é reconfortante.

Com o terceiro, tomamos uísque, pelos velhos tempos.
Nós rimos por muito tempo. Ele sempre fora bom de piadas.
Digo a ele, também, que os vivos lhe têm saudades.
Eu tenho saudades. Mostro-lhe aquele outro poema que escrevi. Ele gosta.

O quarto me pergunta, curioso, como é a vida de adulto.
Eu rio, digo que é bem pior do que a juventude mais tenra.
Sabe, a grama do vizinho sempre parece mais verde.
Ele sente falta dos esportes.
No final do diálogo, dou-lhe um gentil abraço naqueles alvos ossos
quase sem carne. Bom amigo.

Mas é o quinto quem mais me impressiona.
Ele senta-se à mesa comigo.
Em mim já correm na nuca o uísque e a cachaça,
mas ainda posso notar
que seu rosto é rubro e que, em seu peito,
ainda pulsa um coração.

Eu, cético, não quero diálogo com ser vivo.
É a Noite dos Mortos. Ele ri e debocha:
Eu ainda vivo, mas foi sua vida quem me enterrou
naquela cova rasa com pouco ar para respirar.

Há mortos que não devem voltar à vida.

Caio Bio Mello
09/04/2017

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