sábado, 29 de outubro de 2011

Alberto


Seu olho mal conseguia se abrir. Suas pernas doíam a cada movimento. Seus braços não, seus braços doíam bem menos. Tinha uma respiração frenética, descabida, descontrolada. Lembrava parcialmente de onde estava. Afogava-se no ar.

Uma menina de verde
corria bela
com seus laços no cabelo
bonita como o vento...

            A parede olhava-o com os olhos fechados. Um pedaço do teto parecia querer cair em sua cabeça a qualquer instante. Suave infernalmente. Queria se levantar, mas não tinha forças para nada... Começou a ter uma convulsão na cama. Tremia, babava, sofria. No meio de seu ataque, caiu no chão. Barriga virada para baixo, bochecha espremida entre a face e o chão sujo.

Alberto, olha pra mim. Olha pra mim.

Ãhnm? ... Aaaaiii...

            Um poça de sangue começava a se formar em sua frente. Alberto fez força para virar seu pescoço e olhar para a voz que lhe chamava. Constatou, estarrecido, que... Não era possível.
            Um ser humano, impossível saber se homem ou mulher, estava parada de pé do lado da cama. Parecia ser um copo saudável, a não ser pelo fato de que ele não tinha pele. Seus tendões ficavam à mostra, seus olhos não piscavam, sua cartilagem parecia secar no ar. Mas o indivíduo parecia estar melhor do que Alberto, estava até conseguindo andar...

Olha pra mim. Olha! Sabe o que eu sou? Eu sou você.

            Depois de proferida a frase, o homem sem pele transformou-se em pó e fumaça. Alberto tossiu muito.

De noite e de dia
De baixo pro alto
Da carne pro asfalto
Da morte pra vida
Do es
goto fadado a ser car
ne em outro dia de ve
rão que há de se sofrer.

            Alberto começou a chorar. Não sabia mais o que fazer. No canto da sala, dois olhos dourados e brilhantes começaram a encará-lo.

Alberto! Tu és culpado!
Perdeste há séculos paz
És um morto malfadado
És tristeza, alma que jaz

És o fim da nova Era
Grito rouco, solidão
És o que sobrou da merda
Homem louco no clarão

            Alberto não queria gritar, não dessa vez. Melhor ficar quietinho caído ali no chão, uma hora tudo aquilo ia passar... Sim, era culpa sua. Erro seu, falha desumana. Mas ia passar, de fato, sempre passava... Os olhos continuavam falando, agora em uma língua escandinava que ele não sabia qual era. O teto começou a derreter e a escorrer pelas paredes. Alberto chorava até doerem seus olhos e pulmões. Continuava no chão.

CHEGAAA! CHEGA! CHEGA! AAAAHHH...
Num so eu, caraio! Porraaaaa... Me deixa, me deixa!
Ela morreu? Morreu.
Mas todo mundo morre... Todo mun-mundo morre uma hora...

Então, morras tu também.
Já falhastes na missão.
Errastes muito na vida,
Deixaste a menina morta.

            A menina de vestido verde entrou no quarto, sorridente. Então, seus olhos secaram, sua pele foi-se desfazendo, ela era de carne também. E os olhos na parede eram agora de fogo, brasa ardente. A menina gritava também, não parava de gritar. O corpo da menina derreteu como o teto derritia, sobrou ao chão um monte de ossos e o vestido. O laço voou-se com o vento.
            Alberto girou seu corpo no chão, fechando-se em posição fetal com o rosto virado de costas para a ossada da garota. Os olhos pararam de pegar fogo, mas continuavam a encarar o homem.

Há coisas, ó homens,
que não cabem explicação.
Há razões, tristezas,
devaneios de noites em claro
que perpassam qualquer sentido físico que podemos lhes dar.
Cabe à metafísica, último subterfúgio
de uma ponta sequer que nos resta de consciência,
inundar nossos olhos e tentar explicar o que vemos.

            Alberto não resistiu, ajoelhou-se, olhando para a ossada. Quis tocar nos ossos... Mas quando encostou o primeiro dedo em um osso, o vestido entrou em chamas e os ossos também. Os olhos da parede riram uma risada gutural, sarcástica.
            Alberto sentou-se na cama. Seu mundo rodava sem fim. Na rua, um carro dirigido por um elefante passou rápido. Colocou um copo no canto da parede para impedir que o teto começasse a escorrer até o chão. A mesa estava repleta de seringas usadas, cápsulas de comprimido, cigarros novos, bitucas de cigarro, colheres sujas, isqueiros... Uma garrafa de whisky vazia emitia um som de sapo. Alberto atirou a garrafa na parede na direção dos olhos.

Então tudo ficou escuro.

            Alberto gritou mais uma vez. Ninguém parecia se importar. Correu para o banheiro lavar os seus olhos para ver se conseguia voltar a ver. No caminho, bateu a cabeça com força na porta do banheiro. Caiu no chão, sentindo sua cabeça latejar e o sangue quente correr-lhe pela testa, escorrer pela sua boca... Lambeu o sangue de leve. Bom.

Janela. Janela.
Sua solução.
Janela. Janela.
A libertação.
Janela. Janela.
Seu último não.
Janela. Janela.

            Alberto não queria mais ouvir àqueles olhos na parede. Podia vê-los podia senti-los, mas não queria nunca mais escutá-los.

Em certo sentido
se tinham razão,
ele era culpado
e...
Janela. Janela.
Sim, tinham razão.
Janela. Janela.

            Alberto respirou fundo. Abriu o máximo que podia seus olhos. Não havia mais menina, nem ossos, nem homem sem pele, nem teto escorrendo, nem olhos na parede. Havia somente uma meta última que sintetizava toda sua existência, a completude do que lhe faltara por tantos anos. Sim. Ótimo, ótimo...

Alberto
abriu a janela
e
            deixou-se cair
do mais alto andar
                        que sua consciência
                                                           jamais havia adquirido.


Caio Mello
29/10/2011

Nenhum comentário:

Postar um comentário