sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Amor - primavera



Autopsicografia
                                   
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Fernando Pessoa


            Maria é uma garota especial. Eu não sei direito o que, e nem mesmo como, acontece... Mas o que eu sei é que estamos conseguindo criar algo novo. Sim, novo. Alguma coisa de leve, que me estufa o peito e alivia as costas. Nós sentamos no bar, tomando um copo de cerveja cada. As horas vão passando e passsando... E eu consigo me esquecer de vários problemas, da pressão da faculdade, do trabalho...

Oi, Gabriel! Tudo bom?
Faz algum tempinho que a gente não se vê, né?
Você vive aí nessa sua correria...
Parece que nem tem tempo pros seus amigos!

Que isso, Maria, não me fala uma coisa dessas.
Não tem coisa melhor nessa vida do que amigos!
Cê sabe... É a faculdade, dá um trabalhão danado,
mas a gente sempre dá um jeito.

            A gente sai com o pessoal. De vez em quando, eu vou lá na Psico. De vez em quando, ela vem aqui. É tudo bem perto, mesmo... A gente senta, fala da vida... Acho que é bom de vez em quando falar da vida, né. Pensar, colocar as ideias em ordem.

Eu entro na festa.
Ela tá do outro lado.
Vejo ela com as amigas...
Quanta mulher junta de uma vez só!

            Eu fico pensando... Pensando... A vida é bem longa, né? Daquele tipo de coisa que, na idade que eu to agora, acho bem difícil encontrar um fim pras coisas... Tipo a morte. Sim, a morte. Morrer deve ser tão chato. Mas é tão longe morrer que eu nem sei o que é isso... Então, se eu tenho todo esse mundaréu pela minha frente, por que correr? Vamos sem pressa...

Vou lá falar com ela.
Oi, oi! Tudo bom, Maria?
Olha quanta amiga junta,
caramba.

Vou pedir uma cerveja pra cada
um.

Olha só quem tá aqui! O João! Nossa, faz tempo que eu não vejo esse garoto, vixe... Quanto história a gente já passou junto!

Como vai o meu amigo?
Tanto tempo sem se ver
já faz mal pra relação.

Cara, como vai você?
Tanto tempo assim distante
põe a gente só no papo.

            João foi um bom amigo. A gente passava muito tempo junto quando era pequeno. Um tempo que já não tem volta.

[A alegria, princípio do afeto,
enche nosso peito propenso ao sentimento.
Um ar gelado passa pela porta,
faz-nos ouvir...
O que se ouve?
É o passado que vem esbarrar na minha fresta]

Poxa, que legal falar com o João.
Agora, cadê a Maria?
Perdi ela no meio desse povo todo...
Acho que era bom a gente voltar a conversar...

Nossa, achei ela.
Mas quem é aquele que tá segurando a mão dela?
Será que tá rolando alguma coisa?
Não sei, não dá pra ver direito daqui...

Acho melhor chegar mais perto.
Não, melhor não.
Vou dar uma volta...

            Eu já andei pensando muito sobre o mundo, sabe... O mundo tá todo meio errado. Tem gente certa que morre e gente errada que vive. Tem gente que passa fome, gente que sofre de doença desde a infância e tem gente que acaba sozinho. Acabar sozinho com certeza não tem a menor graça. A solidão é a maior tristeza da vida. Você para em casa com aquele copo de whisky na sua frente, esperando pra ver se a tristeza passa ou se o sono vem. Qualquer um dos dois que vier mais rápido já ajuda...

Olha que morena bonita que passou aqui perto.
Vou lá conversar com ela...

Oi, tudo bom?

Olha, moço, acho que tem uma amiga sua
vindo pra cá falar com você, não quero atrapalhar...

É a Maria. Brotou do chão feito legume.
Tão rápido que eu até me espantei...
Onde já se viu tamanha pressa!

Oi, Gabriel. Você sumiu tão de repente!

Eu encontrei por coincidência um amigo meu
de infância. Parei pra falar com ele um pouco.  
E, depois, cê parecia bastante ocupada...

Eu? Ocupada? Ah! Nada...
Aquele cara chato veio falar comigo...
Tão sem graça, me irritou bastante.

O tem
po devezenquando
vai passan
do mais deva
gar, bem como eu disse mais cedo. Parece que o Cara lá de cima decide que as coisas precisam realmente parar. 

Fui tudo tão simples
A troca de olhar
O sangue na vista
Momento distante

E, de supetão,
eu tinha a Maria em meus braços,
jogada, pulsante, forte...

Era um desejo contido,
necessário.
Era minha vontade de
sugar cada segundo ao máximo.

E ela adorava.
Parecia se sentir juntada,
colada ao meu corpo,
num contradesejo suave que a devorava também.

Nós dois éramos um.

Caio Mello
07/10/2011

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