Seu
corpo era alvo
como
o segundo tom da aurora.
Cada
detalhe seu era de uma delicadeza indescritível.
Seu
vestido era branco,
pintado
com tons de azul e rosa.
Fitava
o mundo com dois grandes olhos
desenhados
por mãos perfeccionistas.
A
bailarina de porcelana
fazia
parte de um balé itinerante muito famoso.
Em
todas as cidades por onde passava,
o
povo todo dizia: “Onde está a pequena
bailarina?
Aquela fada de olhos bonitos”.
Então,
as cortinas vermelhas se abriam,
no
fundo uma música doce,
e
a delicada bailarina surgia
em
seu palco de madeira,
tal
qual a mesa de um mágico.
Ela
fazia leves movimentos,
balançava
o pescoço,
abria
e fechava os dedos.
Logo
depois, as outras bailarinas entravam em cena
tomando
o grande palco
e
rodopiavam sem piedade,
retornando
ao chão no grosso impacto dos pés humanos.
A
bailarina de porcelana sempre quis dar piruetas no ar,
assim
como suas colegas, mas era logo reprimida.
Seu
corpo extremamente frágil não aguentaria
o
impacto de voltar ao chão, no fim do salto.
Seu
pequenino pé não sobreviveria a uma única pirueta!
E
assim... Os espetáculos continuavam.
A
bailarina sempre abria as apresentações,
cativando
o público com sua singeleza.
Mas
ela, por dentro, não se sentia completa.
Faltava
algo em si: jamais seria uma bailarina de verdade.
Com
o tempo, ela desenvolveu a habilidade
mais
cara a todo artista: aquela de esconder o que realmente sente
e
mostrar ao público o teatral sentimento do mundo.
Por
fora, a bailarina de porcelana era uma estrela brilhante,
pulsando
sua luz para as crianças e as famílias,
fazendo
apresentações emocionantes.
Mas
por dentro... Por dentro ela se desmanchava, se derretia.
Ela
passou a sorrir com os lábios, mas não com os olhos.
Suas
colegas até notavam, tentavam animá-la e mudar de assunto...
Mas
nada poderia fazê-la se alegrar mais do que um rodopio!
Diversas
gerações de integrantes do balé itinerante
tiveram
o privilégio de se apresentar com a bailarina de porcelana.
Por
décadas e mais décadas o povo se apaixonou
pela
pequena artista de entranhas delicadas.
Ninguém
entendia a enigmática bailarina.
Passava
semanas sem falar com ninguém.
Apenas
comparecia aos espetáculos,
mas
não queria receber rosas, nem das autógrafos ao público.
Um
certo dia, a bailarina de porcelana
surgiu
alegre, cantante e expansiva.
Apareceu
no palco antes do show começar,
deu
pequeninos abraços em seu público
(todos,
ao tocá-la, tomavam um cuidado gigantesco
para
que nada de mal acontecesse).
Nesse
dia, ela distribuiu risadas,
deixou-se
estar com as crianças e fez todos baterem palmas.
Então,
a música começou. Dessa vez, mais intensa.
A
cadência rápida da batida dominava a bailarina.
Ela
começou a fazer gestos rápidos, baixar e subir a cabeça,
era
quase leve como um pássaro....
O
público delirava: a bailarina jamais
havia
feito apresentação tão maravilhosa!
Gesticulava,
pedia palmas,
batia
o compasso perfeito da música.
Ela
tomou fôlego. Um pé depois do outro,
esticando
as pernas o máximo que pôde.
Foi
ganhando velocidade, projetando-se para frente.
O
pé direito deixou o chão.
Seguindo
o ritmo, o braço direito projetou-se para cima
num
gesto de alcançar o paraíso.
Pouco
depois, o pé esquerdo também deixou o chão, no fim do salto.
Já
no ar, de braços abertos,
a
bailarina de porcelana estava em êxtase.
Ela
sorria um ar de infinita liberdade
na
imagem mais precisa do conceito de inspiração.
O
vestido girava doce junto com seu corpo.
As
pernas maravilhosas se projetavam
como
se finalmente estivesse longe de correntes,
amarras
ou prisões.
E,
logo depois, o pequeno corpo de porcelana
foi
novamente tragado ao palco.
Nem
por um segundo a bailarina deixou de sorrir.
Ela
estava eufórica.
O
público, desesperado, não sabia como reagir à cena.
Era
lindo, simplesmente maravilhoso.
E,
ao mesmo tempo, desesperador.
Uma
criança soluçava, sufocada em seu próprio choro.
O
primeiro pé a tocar o chão foi o direito.
Um
curtíssimo grito fino de dor subiu pela garganta da pequena bailarina.
Mas
ela não se deixou abalar. Abriu ainda mais os dedos
e
aumentou seu sorriso.
Ao
olhar para baixo discretamente, descobriu que seu pé se esfarelava.
Pequenos
cacos de porcelana rolavam pelo palco,
como
flocos de neve no começo do inverno.
Ela
não se deixou perder o equilíbrio. Até o fim, manteve a pose.
O
próximo foi o pé esquerdo. Ela se desfazia rapidamente.
Depois
as pernas. O torso.
Já
perdida entre o sonho e a realidade,
em
apenas poucos segundos, a doce bailarina
despedaçou-se
em mil cacos de porcelana pelo palco.
O
seu rosto tocou suave o chão.
Um
sorriso genuíno, de lábios, olhos e estrelas,
foi
visto logo antes do rosto se desconstruir.
Essa
foi sua melhor apresentação.
Caio
Bio Mello
28/08/2014