domingo, 10 de maio de 2020

Broto


Parte 1 – Bracejar

Uni as mãos em prece
            e bracei na terra
macia
                        em posição de pinça
semeando o solo com teu futuro

Não era de mim te dar vida
            pois já te habitam os raios
Mas adveio-me para ti
                        o primeiro caule

Também não houve regular rega
porque a natural pluviometria
            há de ser inconsistente

Brotaram-te
            ladinos como onças
entrelagalhos
                        e eu os caçava pela manhã
            desenhava-lhes a rota
para traçar vértice
            entre minhas folhas e tuas veias

Parte 2 – Chuvar

Se eu pudesse
            descrever a dor daquela manhã
Ao sacar meus olhos e lançá-los em tua direção

Não estavas mais completa
                        Arrancaram teus galhos
Sobrou-te a cepa

Quão ruim é o homem para escalpelar teu tronco?

Parte 3 – Remar

Continuei saltando meus olhos em tua direção
ao meu despertar
            fluindo fé
                        e criei rumos como fazem as formigas

Não sei se foram as lágrimas
            ou as palavras

Mas bem sei que no segundo solstício de inverno
desde que te deceparam quase todo o tronco

                        Rachou-te o toco grosso
e brotou entremeado e verde
pequeno caule
            torcido e franzino

mas presente

E eu, que achei ter visto a morte,
voltei a ter-te com boa prosa
pelas manhãs

Caio Bio Mello
10/05/2020




O Maquinista


Para meu sobrinho Arthur

Ensinaste-me o enorme valor
das pequenas coisas.

Uma tarde no piso de madeira
a construir trilhos em sequência
desimportante para onde
mas importante com quem.

És o melhor em urdir caminhos
e me mostraste
que talvez a vida seja mesmo cheia de curvas
sem que precisemos saber por que.

Quem me dera ter teus trilhos
tê-los todos
hoje
para que eu pudesse montar caminho
até tua janela
assim permitir
ouvir teus conselhos sobre a vida
e reaprender como se existe.

Mas, por agora,
sei que não podemos nos rever.
Então, guarda teus conselhos com carinho
que logo já volto e te dou meus ouvidos.

Até lá, não te esqueças de fechar a porteira
e de guardar teus trens no fim do dia.

Caio Bio Mello
01/05/2020 (quarentena)

Adubo


Terra
            chão
                        o piso de meu pé
onde finco
                        enraízo e sinto
                                   conjunto

Solar esfera
            de meu canto
                        onde meu rebanho pasteia
            em que me banha o solo
                        arreganha o caule
                                               e brota a flor

Minhas marcas em léguas
                        para onde sozinhos se calçam os sapatos
            poeira sã que sei o cheiro de longe

Canto do mundo
            meu mundano profundo

Terra minha.

Caio Bio Mello
01/05/2020



domingo, 5 de abril de 2020

Pan Demia


De início,
apenas eram
notícias nos jornais,
cifras e números.

Não se temia
aquilo que era silêncio
e invisão,
abiótica capa lipoproteica.

Mas, de um bote feroz,
sem aviso nem pudor,
a moléstia pandemizou as vidas.

A palavra era precau-solidão.
Como se isolar, se cada humano é arquipélago?
Consobreviver era preciso.

Os números tornaram-se rostos
amigos
memórias.
O vírus inumano
 inumou.
Portas fechadas e covas abertas
de raso silêncio.

Não nos deixaram sequer lamentar nossos mortos.

Contudo,
tempos depois,
romperam fármacos.
A posologia da esperança.
Finalmente vacinada,
voltou a vida a viralizar.

Foi possível, então, retomar as ruas.
Os vivos inalaram a existência
como se fosse ópio o próprio ar.
Existir era júbilo.

E, depois de satisfeito o regozijo,
aos poucos a rotina
urdiu os ânimos
dia por dia
mês por mês
            até que os imunizados esqueceram
                        que sofreram tanto
e que puderam enxergar, ao menos por um minuto,
            que a vida é linda e estar vivo é estado de exceção.

Caio Bio Mello
05/04/2020



domingo, 2 de fevereiro de 2020

Encanto


Se pudera
            tê-la
em minha tela
                        tê-la-ia
                                   capta
Sereia
            na areia
                                   seria
             ela
minha bela.

Caio Bio Mello
02/02/2020

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Dia dos namorados

Um. Dois. Três passos.
Sim.
Essa era a distância exata.

Avoca a cava
            enquanto cavoca.
A cabeça da pá submergindo repetidamente.
                        Um respiro a cada terra.

Mas atenção! Há de limitar-se
à profundeza do profano
            o suficiente para encontrar o humano.

Sim. Bem rasinho. Dois palmos
                        (mas foram tantos planos)
Algo surge no meio da terra e dos gravetos.
            Pequenos pontos
brancalgo(dão).

Ele se ajoelha, como se bravejasse a reza.
            Mas não há cristão, nem carpideira.
Hoje não é dia do Senhor.
É dia de festa.

Com gestos delicados,
ele vai desquebracabeçando o vulto.
            Agora já se veem os braços, as pernas, o tronco.

A última etapa é emergir o rosto.
            Ele sente o cheiro,
                        um misto de terra fresca e saudades.

Desesparramada, estava ela lá.
Parecia exatamente como da última vez que haviam se visto.
            (o efeito da saudade)

Ele levanta uma pálpebra com o indicador e a outra com o polegar,
            num gesto fugaz concomitante.
No fundo de ambos os globos oculares,
            já não existe o pretume (aquele de costume).
Há uma névoa cinza.
            Tão cinza
            e tão névoa
            como se uma aranha fizera do olho morada
            e ali pitasse um fumo.

Oi, querida, disse ele.
            Caçou-a em seu colo, trazendo seu rosto junto ao peito.
O curioso é que, antes, ela parecia ser leve como pluma.
                        Agora, o peso era outro.
Mas não se comenta o peso de uma mulher, pensou.

Abriu a porta do carro, estacionado ao lado.
            A vaga-luz interna do veículo varreu a terra revirada.
Uma cova reaberta, útero puerperal.

Sentou-a no assento de passageiro.
            Colocou o cinto de segurança
                        (todo cuidado é pouco quando se ama).
Entrou também no carro. Girou a chave e o motor pipocou.

Vem, meu amor, tem um bar novo que quero muito te mostrar.
E acelerou.

Caio Bio Mello
16/01/2020

sábado, 7 de julho de 2018

Nas beiras

Dei início ao cômputo
            da alcateia.
Somei passos, patas e rosnados.
                        Antes que concluísse, desgarraram-me.
            Não fui são para saborear a carne que caçaram.

Solitário, então, rumei às praias.
            Categorizei os grãos por densidade, cor e polimento.
                        Perfilei-os, inclusive.
Súbito subiu a maré, desfez-me o cálculo.

Por empreender, cantei os pássaros.
                        De início, apenei-me e pensei que voava.
            Mas não. De chumbo, desabei.

Ao fundo do oceano, calculei cardumes.
            Segregava-os, seguia o fluxo.
                        Eram cem, mil, milhões.
            Todavia, enrijeci, desguelrado. A um novo continente arrastou-me a corrente.

Em terra, somei flores para um velório.
            Apertei meus beiços ao lagrimar.
            (só choram os que têm direito)
Senti que a saudade vencia.

 Calcei sapatos, costurei botões, almocei às pressas.
            Esgueirei na mescla multidão.
                        Expurgaram-me do coletivo abarrotado.

Trôpego e esfarrapado, mendiguei.
            Espalmei minha miséria, mas não aplacaram minha fome.
Ao revés: em minhas mãos, devolveram-me as minhas lascas
                        e passei a madrugada fria, sob o fito das estrelas urbanas,
no vão intuito de coser a pele, o sangue e os órgãos.
            Desamanheci morto.

Caio Bio Mello
07/07/2018