domingo, 31 de janeiro de 2016

Minha triste Arlequina

Eis o gélido fim de laços pardos
desta presa marionete arlequina
que nunca foi ótima dançarina
e viveu na alcateia dos bastardos.

Pois basta puxar certos fios e fardos
para logo deixá-la na ruína.
Tão fácil enganar essa menina...
O pior: se deu a trabalhos árduos

por toda vida, mas sem recompensa.
No fundo, no fundo, sabe que é presa.
Mas como vencer os laços do medo?

Melhor viver a vida tal brinquedo
e esquecer de onde vem toda a tristeza.
O que a prende mesmo... é jeito que pensa.

Caio Bio Mello
31/01/2016

Outra pele

Esse não é o meu quarto,
o meu não era tão abafado.
Essas não são minhas roupas.
Gosto de roupas coloridas
(minha cor predileta é laranja)
e aqui só vejo preto e cinza.

Não é possível. Esses também não são meus livros.
Nunca leria uma prosa mastigada.
Onde guardaram meu Bukowski?
This is Li Po laughing
underground

Isso não está certo.
Eu me incomodo. Não é minha casa,
minha estante, meu canto.
E esses dedos? De onde surgiram?

Essa pele não é minha. Não são meus óculos!
Nada disso é meu. Esse corpo. Essa casa.
Eu nem mesmo respiro desse jeito...

Isso não está certo. Não tem graça.
Quem fez isso?
Por favor, não faça isso durar mais do que já dura.
Me tirem daqui!

Caio Bio Mello
31/01/2016

Aperto

Há algo que me incomoda sobremaneira
nos apartamentos.
Eles não têm terra. São feitos de cimento.

O chão é cimento, o teto é cimento,
as paredes são cimento. Tudo é cimento.
Não existe nenhum piso de terra
que me deixe respirar.

Cimento e canos nas tripas.
Nós precisamos de terra,
ao menos um pouco e
eu nunca pisei num apartamento com terra.

Isso me incomoda.

Caio Bio Mello
31/01/2016

O Jornal da Manhã

O viciado inala, com uma nota de real,
as cinzas da história
            e amanhã as manchetes serão em rubro sangue.

Caio Bio Mello

31/01/2016

sábado, 30 de janeiro de 2016

Vida sintética

Os nossos heróis são descartáveis.
Não duram mais do que um mês
nas televisões de domingo à noite
e depois caem na obviedade.

São os profissionais do nada:
maior atirador de bolas de basquete em um minuto
maior comedor de ovos crus em dez segundos
maior destaque de uma aptidão sem utilidade.

Cultuamos a vida perfeita da boa-forma
e criticamos quem trabalha demais:
para ter saúde é bom ter a mente fresca.

Nos espelhamos na ilustre família
dos comerciais de margarina.
Os pais (sempre heterossexuais) sorridentes,
nunca preocupados com o trabalho,
podem dedicar todo seu amor e saúde aos filhos.
Gente muito bonita que nunca se abala pela crise.

Abafamos nossa incompreensão
com compras em grandes shoppings.
Cinquenta calças podem, com toda certeza,
evaporar qualquer lágrima.

Das inúmeras faces que possuímos,
ostentamos apenas uma.
Estamos sempre felizes. Sempre!
Em fotos, vídeos, mensagens, pensamentos.

Estar triste, hoje, é como ter lepra.
Não temos mais esse direito.
Ninguém nunca chora.
E é assim que tem que ser.

Temos todo o direito de comer
até nos empanturrarmos,
mas não temos o direito de ser gordos.
Gordo? Displicência.

Tomamos shakes, tônicos, sucos detox.
Gastamos dinheiro num carro,
para dirigir até a academia e correr numa esteira.

Engolimos um quarto de remédio antes de deitar,
só para esfriar a cabeça...
A metrópole faz muito barulho à noite.
Carros, ônibus, bares. Distúrbios do sono.
Um mês depois, meio remédio.
No fim do ano, um inteiro para pregar os olhos.

E, ao longo do dia, as olheiras se aprofundam
e estamos quase apagando na mesa de reunião.

Buscamos
no ócio do trabalho
a labuta da arte.

E, nos fins de semana,
nada é divertido sem entorpecentes.
Álcool, uma ganja, uma bala, um doce.
A loucura é só mais um estado de existência.

Talvez fosse bom nos perguntarmos,
um dia, quem sabe:
como foi mesmo que chegamos aqui?

Caio Bio Mello
30/01/2016

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Moribund

Kill me.
But kill me slowly.
Hear me groaning untill I die.
Do it. Do it now.

Caio Bio Mello
29/01/2016

Meus insetos

Insetos povoam meu corpo.
Eu os ouço e repito.
A aranha em meu crânio,
que caminha sobre meu cérebro.
            Não há dor, com certeza não.
Mas posso senti-la.

Ao respirar, teias em meu pulmão.
                        Uma tosse seca.
            Um besouro sommelier prova meu sangue.

As vísceras do caos, intrapartidas.
Sinto a ruptura de mim mesmo,
agora, gesto a peritonite do desgosto.
(quanto tempo ainda me resta?)

O estômago forrado por vespas raivosas.
Todas ferroando-me por weltschmerzen.
 Um gosto ácido sobe à boca. Gastrite.
            Nada me alimenta, tudo me devora.

Por trás dos globos oculares,
                        as formigas teimam em repassar vídeos
daquilo que nunca vi, mas gostaria de ter vivido.
Vivencio o sonho inconcreto em voltas cada vez mais dolorosas.

Aquele silêncio. Aquele olhar. A recusa.
Minhas tripas são feitas em sequência ilógica e incompleta.
Abrissem-me os médicos, abismar-se-iam.

            As larvas deslizam por tudo. Me devoram ao engordar.
Porém, jamais chegam ao estado borbólico, morrem abafadas
            subcutaneamente. Não as culpo – o mundo é nefasto.

No palato, vive um escorpião,
que teima em ferroar minha língua a cada frase de efeito,
                        a cada prazer no verbo.
Saem-me palavras oblíquas.

Todos esses seres podem conviver comigo.
Não me importo. Nada que me impeça de existir.

Mas há um que me corrói, que me verga, que me devora.
Desse inseto eu não posso vencer.

Ele rasteja fora da carne. É inefável.
Uma quimera de solidão, angústia e insensatez.
Um parasita persistente, que vence qualquer vermífugo
ou ideia brilhante.
Este... é o verme da alma.

Caio Bio Mello
29/01/2016