sábado, 30 de janeiro de 2016

Vida sintética

Os nossos heróis são descartáveis.
Não duram mais do que um mês
nas televisões de domingo à noite
e depois caem na obviedade.

São os profissionais do nada:
maior atirador de bolas de basquete em um minuto
maior comedor de ovos crus em dez segundos
maior destaque de uma aptidão sem utilidade.

Cultuamos a vida perfeita da boa-forma
e criticamos quem trabalha demais:
para ter saúde é bom ter a mente fresca.

Nos espelhamos na ilustre família
dos comerciais de margarina.
Os pais (sempre heterossexuais) sorridentes,
nunca preocupados com o trabalho,
podem dedicar todo seu amor e saúde aos filhos.
Gente muito bonita que nunca se abala pela crise.

Abafamos nossa incompreensão
com compras em grandes shoppings.
Cinquenta calças podem, com toda certeza,
evaporar qualquer lágrima.

Das inúmeras faces que possuímos,
ostentamos apenas uma.
Estamos sempre felizes. Sempre!
Em fotos, vídeos, mensagens, pensamentos.

Estar triste, hoje, é como ter lepra.
Não temos mais esse direito.
Ninguém nunca chora.
E é assim que tem que ser.

Temos todo o direito de comer
até nos empanturrarmos,
mas não temos o direito de ser gordos.
Gordo? Displicência.

Tomamos shakes, tônicos, sucos detox.
Gastamos dinheiro num carro,
para dirigir até a academia e correr numa esteira.

Engolimos um quarto de remédio antes de deitar,
só para esfriar a cabeça...
A metrópole faz muito barulho à noite.
Carros, ônibus, bares. Distúrbios do sono.
Um mês depois, meio remédio.
No fim do ano, um inteiro para pregar os olhos.

E, ao longo do dia, as olheiras se aprofundam
e estamos quase apagando na mesa de reunião.

Buscamos
no ócio do trabalho
a labuta da arte.

E, nos fins de semana,
nada é divertido sem entorpecentes.
Álcool, uma ganja, uma bala, um doce.
A loucura é só mais um estado de existência.

Talvez fosse bom nos perguntarmos,
um dia, quem sabe:
como foi mesmo que chegamos aqui?

Caio Bio Mello
30/01/2016

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