domingo, 12 de dezembro de 2010

Gruta

Seu corpo inteiro doía. Ele rastejava. A água fria parecia entrar-lhe na pele, silenciosamente devorando sua carne. Ele tremia. Perdia-se entre o que via e o que poderia ver. Sentia-se grudar em si mesmo, como se fosse uma pasta homogênea sob a silhueta de um ser vivo. A gruta era forrada por pedras pontiagudas. As pontas estavam em todo lugar: onde ele apoiava as mãos, onde apoiava os pés, onde rescostava-se, onde tentava freneticamente dormir. Ele só podia ver a saída no fim das pedras. No fundo, bem no horizonte, o oceano tocava o céu delicadamente. Mas ele não podia ir até lá.

Escrevera seu nome diversas vezes nas paredes.

João João
João João João
João Ninguém

João tinha vários pequenos cortes em seu corpo. Sua roupa esfarrapada mal conseguia cobrir o que o pudor esconde. Seu rosto não era muito vincado. Ali dentro não havia muito sol. Era um rosto amassado, mal construído, perdido na loucura de um homem solitário. Ele arfava.

Tentava se levantar.

Osso sobre osso

poço fundo poço

fosso sobre osso
poço fim colosso

Arquejava, envergava o corpo, grunhia e caía ao chão novamente.

De repente, ouviu alguém.
Estranho.
Não fazia sentido ter alguém ali. Não mesmo.

“João, João, o que procura?
Você, nessa gruta tão escura.
João-menino, olha o mar ali fora.
Há tempos você devia ter ido embora.
João-moço, carrega culpa demais.
São tristezas de tempos atrás.
João-velho, joão-ninguém,
joão-fraco, joão-refém.
Deixou-se cair aqui depois de tanto
e espera da vida mais nenhum canto.
joão-cego, os olhos force!
As entranhas agora você torce.
joão-perdido, joão-sem-rumo
homem fraco, sem força nem prumo.
Eu que te vi nascer
estou aqui e não posso crer.
João, e agora?
Vai esperar a morte que demora?
Vai esperar vazar de seu corpo a hora?
Vai relapidar a gruta que chora?
Não, João, com certeza não.”


João prostrou-se no chão. Seu corpo mal se encaixava nas frestas da rocha recém desnuda. Decidiu jogar um ar mais resoluto para a voz que o interpelava. Fixou a vista com mais calma. Um homem, sentado em uma das pedras confortavelmente o encarava, tranquilo. Usava um terno cinza, bem talhado, camisa branca com abotoadeira, gravata vermelha (um vermelho suave, discretamente rubro). Rosto esguio, queixo largo, barba feita recentemente. Ele encarava João com olhos devoradores. Pareciam consumir as pessoas ao simples relance soslaiado.

“Ei, você é Deus?
Cuida de outros filhos seus.
Esse aqui está em bem.
Não quer ser mais um quem.”

“Não, Deus tem lá um outro jeito.
Eu sou mais eu, jogo simples e feito.
Eu estava lhe procurando há alguns momentos
entre pedras, tristezas e pensamentos.
Mas, do mundo todo, não pensei em procurar aqui.
Fiquei surpreso quando lhe vi.

Oh, João, pronúncia do passado,
loucura de um ser errado.
Deixou-se levar pelo acaso
esse que come carne e deixa atraso.
Vamos, levanta.
A dor será para sua carne manta.”


João estava puto. Tudo estava ótimo. Ele, sozinho, sem ninguém, jogado ao léu sem medo de ser nada. Agora, surgira aquele homem. Cheio de comandos, cheio de dizeres, cheio de querer mudar as coisas. As coisas eram coisas e pronto. Não deviam ser mudadas. Se elas não quisessem ser coisas, teriam surgido de outro jeito. Mas eram coisas! Saco. Mas o homem insistiu em ajudar João. Levantou-o pelo braço, suavemente içou-o até que ficasse ereto. João era fraco, o homem era forte. Carregava o corpo desfalecido como se caregasse um peso de papel.

João aproximou-se da saída.
Tremeu.
Seus cortes arderam.
Não. Não... Não! Nãonãonão...

Estuporou a saída.
Seu corpo explodiu em um milhão de sensações conjuntas,
como se ele pudesse cobrir a Terra inteira.
Arreganhou os dentes.

Conseguiu ficar de pé por poucos segundos.
Seu corpo ardeu em chamas,
vomitou.

Falseou, desequilibrou-se.
Caiu no chão e perdeu os sentidos.

Caio Mello
12/12/2010

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