terça-feira, 5 de julho de 2011

Um na história

Marco era um forte. Carregava feijão, soja, milho, cimento, madeira, maçã, laranja. Usava terno de vez em quando. Noutros dias, suava muito e subia o morro com facilidade. Aos domingos, ia na missa rezar pra Deus nossinhô deixar sobrar o que se faltava naqueles tempos. E, quando sobrava, era mesmo muito chamapanha que pulava alegre nos copos, espumando de felicidade.
Marco andava pela avenida larga um sol de inverno. O terno não fazia muito incômodo naquele Julho, mas em Janeiro ia fazer muito mais. Sol de verão come a gente de dentro pra fora. O sapato ecoava seu andar no reflexo dos prédios grandes.
Marco cansou de fazer barulho. Era pouco, quase nada. Decidiu ser prédio. E foi prédio por uns bons três meses. Velhinhas passavam manhãs inteiras em suas varandas jogando buraco. O cachorro cavava seu buraco ali no jardim. O porteiro dormia sem dó nem piedade na portaria. Depois acordava, vermelho. O faxinero aplicado deixava os móveis reluzindo como novos. Era atento, talentoso e tranquilo.
Marco cansou disso também. Ser prédio era muito estático. Então quis ser música. Foi a roda de samba que tocava no bar do Zé Pedro aos sábados depois do almoço. Todo fim de mês, tinha feijoada, samba e pinga aguada pra não matar os beberrentos da região. Mas o valor cobrado era o mesmo.
Marco, enfim. Ser música era muito efêmero também. Queria mais que isso pra sua vida. Vestiu terno novamente. Levantou os braços, abriu bem as mãos. Os prédios começaram a dançar ao sabor do vento. Uma brisa de proa fazia rodar de leve o catavento ali na janela do menino-joão com seus doze anos didade recencompletos. Os para-raios, as parabólicas, os paranóicos de plantão: todos giravam muito receosos ao ver o mundo lá embaixão pontinho por pontin tintin por tintin.
Marco foi montando um dominó delicado com os prédios. Colocava-os enfileirados de longo, postos em sequência nas grandes avenidas. Mandou por sete pedágios em cada rua de São Paulo e mandou matar os CETs. Agora só se andava a pé. Aboliu a falta de cerveja, a falta de futebol nas terças, a falta de amor entre pai e filho e a falta dada por chamada oral no dia antes da prova.
Marco virou sol, então, e iluminou aquilo que havia criado. Banhava as crianças saudáveis andando descalças pelas ruas abarrotadas de jardins enormes perto de prédios bem cuidados. Os paranóicos continuavam presos em suas casas “a inflação volta, minha gente! Espera só pra vê! Não põe dinheiro em conta, não!” eles guardavam todo o dinheiro que tinham dentro de uma meia que ficava debaixo da cama, perto da asa de galinha ressecada na virada de ano pra trazer dinheiro.
Marco vestiu seu terno mais uma vez. Abriu o capital de sua empresa de bonecos de palha na bolsa de valores. O IOF ia atrapalhar suas vendas pros gringos, mas já valia a pena só de abrir. Tudo que abre parece que ganha ar novo. Casa aberta, open sale, open bar... Juntou dinheiro e comprou sete quilos de feijão para sete bebezinhos gordos que precisavam comer. Era a crise contemporânea da obesidade.
Marco virou chuva e caiu de leve em cima de seu povo. A mininada no meio da rua assim dançando bonita com a roupa encharcada. Marco era verão também, pra gente pequena frio não tem. Banhou o carro da velhinha que nem sabia mais dirigir. Ficava ela fumando seu pitaco com vontade. Tinha bochechas gordas e tetas magras. A minhoca surtava ali, tentando saber se nadava que nem cobra ou se viva como tatu.
Marco brotou do chão mais uma vez. Com força, vigor, desejo. Seus galhos iam subindo subindo assim bem depressa. Envolveram um portão novinho num prédio chique de madama de grife. Tinha flores pra todos os lados. Nos galhos, nas folhas, no chão, nas pessoas que passavam. Mas a grife da moda era cinza. Marco não teve dúvida: engoliu de vez a frufru sem dar satisfação a ninguém. Assim era mais fácil e a situação exigia medidas drásticas.
Marco fez um muro bem grande na frente de um prédio sério. Pintou o muro todinho de branco, com superfície bem lisa. Escreveu num bicadinho do canto só “eu sou brasileiro e não sei mais o que fazer de novo”. Eis que se responde por um qualquer na mesma noite “rouba, cheira, mata, cuida do teu. É assim que mindim”. E depois mil pessoas escreveram em mil palavras diferentes pra mil amigos poderem comentar. Ninguém comentava, só curtia. Marco tirou foto do muro e mandou no e-mail de todinho mundo da cidade. E até pros gringos também, mas eles são burros e não entendem nada do que tá escrito. Only when you treat them like “my sir”. A melhor resposta que Marco encontrou foi “Você é um só. Não nasceu dois, nem três. Deixa que de pouco pouco a gente se arranja. Olha pra ti um pouco mais. A gente tenta fazer a nossa parte e você promete fazer a sua.”
Marco largou o terno. Botou um saco de feijão no ombro e seguiu tranquilo.

Caio Mello
05/07/2011

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