quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Bolinho de limão


João acordou de sobressalto. Abriu os olhos. Estava deitado no chão no meio da rua. Sim, devia ser o sonambulismo mais uma vez. Ele estava com frio. Uma garoa caía fina em seu corpo. Suas roupas estavam ligeiramente molhadas. Sentou-se, pensando no dia anterior. Balançou a cabeça, levantou-se do chão.
            Foi andando até o bar mais próximo, ia tomar um café para esfriar a cabeça. Na entrada do bar, João parou, estarrecido. Sentado solitário na primeira mesa à vista, havia um bolinho de limão tomando seu whisky 15 anos. Tinha cara de carrancudo. Coçava o queixo incessantemente com a mão direita.
            João não sabia o que fazer. Ficou sem reação.

Em mente vazia
A mentira cheia
verdade metade
não disse certeza
já disse que foi
não disse quem foi
quando a vida fora

            João piscou diversas vezes os olhos. Decidiu sentar-se com o bolinho de limão. Ao se aproximar, reparou que todos os indivíduos naquele local eram também bolinhos de limão. Ele não sabia o que falar. Todos agiam tão naturalmente que João não conseguia sequer duvidar do quão quotidiano parecia aquela situação. Mesmo assim, continuou decidido a sentar-se com o bolinho que tomava whisky.

Oi, posso sentá aqui?

            O bolinho olhou para ele com a cara de um veterano da Segunda Guerra Mundial.

Pode.

Então, esse uísque aí é dos bons?

É.

            João passou um certo tempo falando com o bolinho. Conversaram sobre a bolsa de valores, a alta do dólar, a crise do euro... O bar foi enchendo. Cada vez mais bolinhos povoavam o local. Até que uma hora João não resistiu e perguntou.

Cara, como você consegue falar? O que tá acontecendo nessa porra? Você é um bolinho de limão...

Eu sou o quê? Cê tá maluco, seu filho da puta? Eu tenho por acaso cara de bolinho de limão? Eu sou gente como você. Porra, cada pergunta que me fazem numa mesa de bar, viu... Espera um pouco... Eu... Sou diferente de você... Eu... EU SOU UM BOLINHO DE LIMÃO!!

            E, no exato momento em que o bolinho descobriu sua verdadeira existência, houve um barulho repentino e muito alto que assemelhava-se a um POP e o bolinho deixou de ter vida, passando a ser um bolinho de limão morto. Ou melhor, um bolinho de limão normal.
            Uma senhora bolinho de limão da mesa ao lado reparou que um sujeito acabara de morrer e gritou muito alto. A confusão começou a crescer no bar e muitos bolinhos começaram a se aglomerar sobre o corpo morto com gosto de limão.
            João aproveitou o momento para sair correndo do bar. Conforme andava pela rua, via mais e mais bolinhos de limão andando como se fossem pessoas, agindo como se fossem pessoas... Ele estava atordoado. Até que um bolinho de limão encapuzado jogou-o contra a parede.

Maluco, passaê a grana que eu to mandando! Senão eu te enfio a faca e arranco teus intestinos!

Cara, como você pode querer me roubar? Você é um bolinho de limão!

Eu sou o quê??

            O ladrão deixou a faca cair no chão. Caiu de joelhos, tremendo. Em pouco minutos, tinha se transformado num bolinho de limão. João estava com fome, agarrou o bolinho e comeu-o com vontade. Estava muito gostoso.

To preso no mundo
num mundo não mundo
to preso num forno
assando bolinhos
não é de verdade
nem é de mentira
preciso fugir
procurar pessoas
alguém que me entenda...

            Por três dias e três noite João foi vagando pela cidade, sempre contando a verdade para alguns bolinhos para roubar-lhes o dinheiro e comprar comida. Era o crime perfeito: bastavam algumas palavras e ele já tinha um assassinato feito, sem ter que sujar suas mãos de sangue, nem mesmo de fermento. Passou um tempo refletindo sobre  que deveria fazer... Ficou odiando os bolinhos por muito tempo por se passarem por pessoas sem nunca entender que realmente eram bolinhos. E o que teria acontecido com as outras pessoas? Se os bolinhos dominavam o mundo, o mundo deixara de existir?
            E como ganhar a vida? Como arranjar uma namorada se todos agora eram bolinhos de limão? A única habilidade que ele tinha era saber da verdade... E como ele poderia usar aquilo em seu próprio proveito?

João teve uma ideia.

            Se ele conseguisse dizer para uma quantidade muito grande de bolinhos ( por exemplo uma cidade inteira) que todos eles eram apenas bolinhos, todos morreriam ao mesmo tempo. Ele, então, teria muita comida porque teria muitos bolinhos para comer e teria um atentado terrorista perfeito: melhor que antrax, melhor que o atentado às torres gêmeas, melhor que o cavalo de Tróia. Então, poderia levar para os grandes governos do mundo sua ameaça de matar mais bolinhos em troca de controle político e econômico. Claro, tudo isso supondo que o mundo inteiro era feito de bolinhos de limão, o que já não parecia uma ideia absurda àquela altura.
            João decidiu colocar seu plano em prática. Havia uma grande empresa de rádio-televisão que passava um noticiário todo dia às dezenove horas. Era um programa muito popular, passava nas tevês e tocava nas rádios da grande maioria das famílias-bolinhos daquela cidade.
            João chegou em frente ao prédio da emissora. Contou para o segurança da entrada que ele era um bolinho. Logo morreu. Contou para a recepcionista que era um bolinho. Logo morreu. Contou para o ascensorista que ele era um bolinho. Logo morreu. Fez uma pausa para comer o bolinho ex-ascensorista. Entrou no set de filmagem do telejornal. Berrou VOCÊS SÃO BOLINHOS DE LIMÃO, NÃO PESSOAS! Todos os bolinhos caíram atordoados no chão.
            A maioria deles já havia morrido... O programa começaria em dez minutos. João vestiu terno e gravata. Pigarreou. Esse seria seu primeiro programa de televisão na vida inteira. Pena que tinha de ser desse jeito. 
            O bolinho-Jorge, diretor de produção do telejornal, ainda não havia morrido. Estava no chão, lutando contra a sua consciência.

Eu sou um bolinho de limão, eu sou um bolinho de limão... Isso não pode estar certo. Eu sou um bolinho de limão. Bolinhos de limão não podem estar vivos. Aquele homem parece realmente um homem. Sou muito diferente dele. Se não sou igual a ele, não sou um homem. Se não sou um homem, sou algo diferente... Se ele é um homem, deve conhecer a realidade, deve saber o que é certo e o que é errado. Se ele é um homem, eu não sou um homem e ele sabe o que é certo e o que é errado, isso quer dizer que a afirmação está correta: eu sou um bolinho de limão. E bolinhos de limão não têm vida, portanto... Não, calma.

Raios intergalácticos
de dimensões paralelas
homens nus
carregando sacas de carvão
pássaros vermelhos cruzam
o fim de tarde

Calma, calma. Isso não pode ser tudo, eu estou limitando demais a minha visão Se eu fosse apenas um bolinho de limão, desde o princípio eu não poderia ter qualquer forma de pensamento... Nossa, sinto minhas entranhas mexerem-se junto com a farinha que me fez... Se eu tive qualquer forma de consciência, quer dizer que não estou no mundo da consciência. Se eu estivesse, não teria vida jamais. Se eu sou realmente um bolinho de limão e tenho vida, isso quer dizer que minha existência depende plenamente de um sonho. Se isso é um sonho, a vida não é real. Se a vida não é real, não posso basear meu raciocínio em qualquer concatenamento habitual de fatos. Tudo aqui é flexível e qualquer resposta pode ser aceita!

Nesse exato momento, o bolinho de limão parou de sofrer. Primeiro, tranformou-se em um bolinho de arroz. Finalmente, tranformou-se no deus Shiva. O deus-Shiva-Jorge-ex-bolinho-de-limão-ex-bolinho-de-arroz levantou-se, desligou o sistema de transmissão ao vivo e parou em frente a João.
João ficou ainda mais chocado ao ver Shiva diante de si.

João, eu era um bolinho de limão. Mas agora eu sou Shiva. Já fui até um bolinho de arroz.

Mas Shiva também não existe, isso quer dizer que você vai morrer de qualquer jeito.

Muito pelo contrário: se eu existo, e se eu ainda existo, isso quer dizer que estamos num sonho. E, se estamos sonhando, o único que não existe mesmo aqui é você...

Eu o quê?

            Nisso, João soltou um grito horrível de pavor e caiu morto no chão.

Caio Mello
14/12/2011

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