João acordou
de sobressalto. Abriu os olhos. Estava deitado no chão no meio da rua. Sim,
devia ser o sonambulismo mais uma vez. Ele estava com frio. Uma garoa caía fina
em seu corpo. Suas roupas estavam ligeiramente molhadas. Sentou-se, pensando no
dia anterior. Balançou a cabeça, levantou-se do chão.
Foi
andando até o bar mais próximo, ia tomar um café para esfriar a cabeça. Na
entrada do bar, João parou, estarrecido. Sentado solitário na primeira mesa à
vista, havia um bolinho de limão tomando seu whisky 15 anos. Tinha cara de
carrancudo. Coçava o queixo incessantemente com a mão direita.
João
não sabia o que fazer. Ficou sem reação.
Em mente vazia
A mentira cheia
verdade metade
não disse certeza
já disse que foi
não disse quem foi
quando a vida fora
João
piscou diversas vezes os olhos. Decidiu sentar-se com o bolinho de limão. Ao se
aproximar, reparou que todos os indivíduos naquele local eram também bolinhos
de limão. Ele não sabia o que falar. Todos agiam tão naturalmente que João não
conseguia sequer duvidar do quão quotidiano parecia aquela situação. Mesmo
assim, continuou decidido a sentar-se com o bolinho que tomava whisky.
Oi, posso sentá aqui?
O
bolinho olhou para ele com a cara de um veterano da Segunda Guerra Mundial.
Pode.
Então, esse uísque aí é dos bons?
É.
João
passou um certo tempo falando com o bolinho. Conversaram sobre a bolsa de
valores, a alta do dólar, a crise do euro... O bar foi enchendo. Cada vez mais
bolinhos povoavam o local. Até que uma hora João não resistiu e perguntou.
Cara, como você consegue falar? O que tá acontecendo nessa porra? Você
é um bolinho de limão...
Eu sou o quê? Cê tá maluco, seu filho da puta? Eu tenho por acaso cara
de bolinho de limão? Eu sou gente como você. Porra, cada pergunta que me fazem
numa mesa de bar, viu... Espera um pouco... Eu... Sou diferente de você...
Eu... EU SOU UM BOLINHO DE LIMÃO!!
E,
no exato momento em que o bolinho descobriu sua verdadeira existência, houve um
barulho repentino e muito alto que assemelhava-se a um POP e o bolinho deixou
de ter vida, passando a ser um bolinho de limão morto. Ou melhor, um bolinho de
limão normal.
Uma
senhora bolinho de limão da mesa ao lado reparou que um sujeito acabara de
morrer e gritou muito alto. A confusão começou a crescer no bar e muitos
bolinhos começaram a se aglomerar sobre o corpo morto com gosto de limão.
João
aproveitou o momento para sair correndo do bar. Conforme andava pela rua, via
mais e mais bolinhos de limão andando como se fossem pessoas, agindo como se
fossem pessoas... Ele estava atordoado. Até que um bolinho de limão encapuzado jogou-o contra a parede.
Maluco, passaê a grana que eu to mandando! Senão eu te enfio a faca e
arranco teus intestinos!
Cara, como você pode querer me roubar? Você é um bolinho de limão!
Eu sou o quê??
O ladrão deixou a
faca cair no chão. Caiu de joelhos, tremendo. Em pouco minutos, tinha se transformado
num bolinho de limão. João estava com fome, agarrou o bolinho e comeu-o com
vontade. Estava muito gostoso.
To preso no mundo
num mundo não mundo
to preso num forno
assando bolinhos
não é de verdade
nem é de mentira
preciso fugir
procurar pessoas
alguém que me entenda...
Por
três dias e três noite João foi vagando pela cidade, sempre contando a verdade
para alguns bolinhos para roubar-lhes o dinheiro e comprar comida. Era o crime
perfeito: bastavam algumas palavras e ele já tinha um assassinato feito, sem
ter que sujar suas mãos de sangue, nem mesmo de fermento. Passou um tempo
refletindo sobre que deveria fazer...
Ficou odiando os bolinhos por muito tempo por se passarem por pessoas sem nunca
entender que realmente eram bolinhos. E o que teria acontecido com as outras
pessoas? Se os bolinhos dominavam o mundo, o mundo deixara de existir?
E
como ganhar a vida? Como arranjar uma namorada se todos agora eram bolinhos de
limão? A única habilidade que ele tinha era saber da verdade... E como ele
poderia usar aquilo em seu próprio proveito?
João teve uma ideia.
Se
ele conseguisse dizer para uma quantidade muito grande de bolinhos ( por
exemplo uma cidade inteira) que todos eles eram apenas bolinhos, todos
morreriam ao mesmo tempo. Ele, então, teria muita comida porque teria muitos bolinhos
para comer e teria um atentado terrorista perfeito: melhor que antrax, melhor
que o atentado às torres gêmeas, melhor que o cavalo de Tróia. Então, poderia
levar para os grandes governos do mundo sua ameaça de matar mais bolinhos em
troca de controle político e econômico. Claro, tudo isso supondo que o mundo
inteiro era feito de bolinhos de limão, o que já não parecia uma ideia absurda
àquela altura.
João
decidiu colocar seu plano em prática. Havia uma grande empresa de
rádio-televisão que passava um noticiário todo dia às dezenove horas. Era um
programa muito popular, passava nas tevês e tocava nas rádios da grande maioria
das famílias-bolinhos daquela cidade.
João
chegou em frente ao prédio da emissora. Contou para o segurança da entrada que
ele era um bolinho. Logo morreu. Contou para a recepcionista que era um
bolinho. Logo morreu. Contou para o ascensorista que ele era um bolinho. Logo
morreu. Fez uma pausa para comer o bolinho ex-ascensorista. Entrou no set de
filmagem do telejornal. Berrou VOCÊS SÃO
BOLINHOS DE LIMÃO, NÃO PESSOAS! Todos os bolinhos caíram atordoados no
chão.
A
maioria deles já havia morrido... O programa começaria em dez minutos. João
vestiu terno e gravata. Pigarreou. Esse seria seu primeiro programa de
televisão na vida inteira. Pena que tinha de ser desse jeito.
O
bolinho-Jorge, diretor de produção do telejornal, ainda não havia morrido.
Estava no chão, lutando contra a sua consciência.
Eu sou um bolinho de limão, eu sou um bolinho de limão... Isso não pode
estar certo. Eu sou um bolinho de limão. Bolinhos de limão não podem estar
vivos. Aquele homem parece realmente um homem. Sou muito diferente dele. Se não
sou igual a ele, não sou um homem. Se não sou um homem, sou algo diferente...
Se ele é um homem, deve conhecer a realidade, deve saber o que é certo e o que
é errado. Se ele é um homem, eu não sou um homem e ele sabe o que é certo e o
que é errado, isso quer dizer que a afirmação está correta: eu sou um bolinho
de limão. E bolinhos de limão não têm vida, portanto... Não, calma.
Raios intergalácticos
de dimensões paralelas
homens nus
carregando sacas de carvão
pássaros vermelhos cruzam
o fim de tarde
Calma, calma. Isso não pode ser tudo, eu estou limitando demais a minha
visão Se eu fosse apenas um bolinho de limão, desde o princípio eu não poderia
ter qualquer forma de pensamento... Nossa, sinto minhas entranhas mexerem-se junto
com a farinha que me fez... Se eu tive qualquer forma de consciência, quer
dizer que não estou no mundo da consciência. Se eu estivesse, não teria vida
jamais. Se eu sou realmente um bolinho de limão e tenho vida, isso quer dizer
que minha existência depende plenamente de um sonho. Se isso é um sonho, a vida
não é real. Se a vida não é real, não posso basear meu raciocínio em qualquer
concatenamento habitual de fatos. Tudo aqui é flexível e qualquer resposta pode
ser aceita!
Nesse exato
momento, o bolinho de limão parou de sofrer. Primeiro, tranformou-se em um
bolinho de arroz. Finalmente, tranformou-se no deus Shiva. O deus-Shiva-Jorge-ex-bolinho-de-limão-ex-bolinho-de-arroz
levantou-se, desligou o sistema de transmissão ao vivo e parou em frente a
João.
João ficou
ainda mais chocado ao ver Shiva diante de si.
João, eu era um bolinho de limão. Mas agora eu sou Shiva. Já fui até um
bolinho de arroz.
Mas Shiva também não existe, isso quer dizer que você vai morrer de
qualquer jeito.
Muito pelo contrário: se eu existo, e se eu ainda existo, isso quer
dizer que estamos num sonho. E, se estamos sonhando, o único que não existe
mesmo aqui é você...
Eu o quê?
Nisso,
João soltou um grito horrível de pavor e caiu morto no chão.
Caio Mello
14/12/2011
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