domingo, 20 de maio de 2012

Jazigo


Janelas imensas segredam a noite. Fora, frio. Dentro, frio. As escadas deslizam silêncios. Um corrimão nunca utilizado. O lustre esforça-se para não despencar, dependurando-se do teto em sua luta por uma nesga de vida. Arcos góticos parecem engolir a poeira vorazmente. Anjos escupildos nas paredes choram as gotas infiltradas. A luz é parca. O tapete um dia já fora vermelho. Hoje, manchado. A lareira sempre apagada. Uma tora de madeira jogada em seu ventre. Tora? Madeira? Talvez um formato discreto de um fêmur. Poltronas arratam-se milenarmente. Vermes povoam seu interior. Livros devorados por traças amontoam-se calados na prateleira. Já não contêm mais verbos, substantivos ou sonhos. As capas descrevem o andar oco do quotidiano burlesco. Fotos em preto e branco desbotam-se na estante. São pessoas nos retratos? Veem-se somente vestimentas atrasadas. Os rostos perderam-se na virada dos séculos. Houve quem visse ali nenhum rosto em dia algum nas madrugadas invadidas pelo ranger das portas. As colunas estalam sua madeira carcomida. Ali, nem mesmo os cupins arriscam-se em habitar. Quadros antigos retratam naturezas mortas. Tons lúgrubes incendeiam o recinto. O vento passa uivando pelos espaço que domina, sedento por possuir. A rachadura na parede escala diariamente o pé direito alto. Vai incessante, nervosa, almejando o teto para poder ver o céu. O piso de madeira já perdeu muitos de seus tacos. É um sorriso desdentado, aquele não-querer ser visto por medo da feiúra. Baratas rolam os restos de pele amontoados nos cantos do grande cômodo. Uma vela caída partira-se em dois. Agora nunca mais poderá acender coisa qualquer.
            Ele abre a porta repentinamente. Olhos saltados. Mãos trêmulas. Ofegante. Rasteja com as pernas oscilantes no seu andar ignoto. Não sabe se para ou se vai. Não sabe de nada. Nunca soube. Os pelos de sua nuca saltam. A barba enorme. Ele baba pelo canto da boca, sua gosma derrama-se pela barba e goteja pelo chão. É o banquete das baratas. Seus pés são crostas rachadas em diversos pontos. Seus dedos não se encontram, são marcas de sujeira num chão ainda mais sujo. Ouve-se um estalar mais alto. Ele desespera-se, volta pela porta de onde veio. Abre uma fresta. Olha de soslaio, tornando logo a fechar. Não vê nada. (Não entende que nunca vai achar nada) Aquieta-se por um instante. Abre a porta de novo. Limpa o ranho do nariz. Fala sozinho por um minuto ou dois. Sua camiseta rasgada um dia já fora azul. Agora não se sabe mais. As unhas das mãos só não são maiores porque começaram a se quebrar quando ele passou a arranhar a parede. É magro. Esquálido. Alguns fios branco cortam sua cabeça, buscando um dia conseguir fugir daquela figura do qual nasceram. Ele se senta numa quina da sala. Abraça as pernas. Começa a repetir a mesma palavra inúmeras vezes. Vai vai vai vai vai vai vai... Balbucia descabimentos. Dialeto próprio, loucura individual. Nenhuma resposta. Ninguém. Nem um livro, nem um sofá, nem uma barata. Morde o dedo indicador de leve. Gira os olhos em suas órbitas. Começa a chorar. Ainda nada. Desespera-se. Bate os braços no chão, nas paredes. Arremessa uma almofada imunda na parede. O tecido não aguenta, o conteúdo esparrama-se pelo chão. Ele cata os flocos, culpando-se pelo infortúnio. Soluça. Chora. Soluça. Nada reage. Para. Vai até a estante. Encontra um detalhe entre dois livros. Um pequeno vidro. Pedaço antigo de espelho. Relutante, deixa-o onde o encontrou. Vaga pelo cômodo por mais alguns minutos. Encara a quina reluzente do pedaço de espelho. Agarra-o rapidamente. Vira o rosto, querendo escapar do objeto que o cativa. Não resiste. Mira seu próprio rosto.
            Um grito rouco de desespero na noite fria. 

 Caio Mello 
20/05/2012

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