sexta-feira, 25 de maio de 2012

O Circo


Há a necessidade de recomeçar. Recomer. Devorar. Comer as paredes, comer o asfalto, comer os motores. Olho para o céu e vejo estrelas. Que coisa. Mangiare. Hora sim. Fazer carne de tudo. Ou todo de aço. De ferro. O vômito. Jorrado indecente nas costas do próximo. O próximo anexo. Os ternos caminhando inoportunos. Aproveitá-los também, dar-lhes o ar da graça, da sua própria desgraça. Um tom lúdico para tudo. As versas e os versos. Jogá-los, malditos formalistas, nessa lata conteudística e quem sabe?
Comer mais uma vez. Estrume de pontas de agulha. Intestino revirado por dentro. Morreu de que? Dizem que morreu com o tempo. Qual tempo? Aquele de tempo. Pouco tempo, sabe? Foi, foi, foi... Acabou-se. Então fazia muito? Uns dizem que fazia muito, outros dizem que nem mais o sol lhe encontrava. Então... Então o que? Repara bem naquele canto... Esse, esse aqui. Uma mordida! Foi devorado! Mas tudo bem, todos  seremos devorados. Talvez naquela onda ali um pouco mais pra cima. Um quê de tudo no que há de pouco. No que se achava certo, correto, necessário. Não há quem seja necessário, nem verbo que dure, nem palavra que sobreviva. Tudo morre! Tudo vira adubo, nutrientes. Vira coisa de novo. Coisa que vira pó que vira plasma que vira próton que vira partícula de Deus. Deus. Encontramo-lo de novo. Eis que, no cume, acabamos devorados também. É um ciclo. Começo, meio, fim, ano, obséquio. Que se fodam os obséquios. Eles viraram cocô. Importa, enfim, desformatar a divisão imbecil feita pela nomenclatura. Isso: chão. Isso: cachorro. Isso: macaco. Isso: teudolito. Isso: encéfalo. Isso: anticrese. Isso: osso. Isso, isso, isso, isso. Quem dividiu as coisas não via a menor graça na vida. Melhor era a época em que tudo era um grunhido só. Ãh significava sexo. Ãh também significava carro chique importado. Era tudo igual. Carne era buraco, era sol, era areia do mar. O desmontar das coisas era muito mais banal. Então, fomos quebrando o mundo em mundos dentro de mundos. Aquelas malditas esferas de nada com coisa alguma. Porque o cão é diferente do cachorro assim como o jacaré é diferente do crocodilo. Para, a criança, quem sabe? É bicho. Bicho é bicho e ninguém vai dizer que não. Palavra por palavra, verso por verso. É tudo igual. No fim, vai tudo goela abaixo mesmo. Um conceito mais extenso, sim. Muito extenso. Dado a formalismos imbecis, ele limitou-se e acabou inútil. Foi então que decidi aproveitá-lo. Pobre conceito, tão esquecido. Eis que uma manhã resolveu nascer e bateu-me nos olhos. Eu os abri dificultoso. Os primeiros raios ainda alaranjados me mostravam a alegria – tocou o despertador. Se tudo assim desperta, despertam também as formigas, os papagaios, os próprios raios foram despertando. Então usei o conceito inútil. Ele inutiliza tudo e, a partir daí, posso recomeçar tudo do zero. Renomeio as coisas, faço delas minha parte, faço-me parte de uma outra coisa. E o conceito devorou tudo. Quando dei por mim, já não sabia ao certo o que era vida e o que era sonho. Perdi o senso, devorei as bordas da realidade que me cercava. Encontrei-me em momentos banais do quotidiano, vivendo uma realidade completamente paralela. E ela fazia sentido demais. Loucura. Devorada também, claro. Um mundo tão vasto! Multiplicado por mil porque tenho asas, pele de couro, sede de camelo, fome de mamute e força de tudo. Comi as bordas de mim mesmo e assim consegui me tornar parte do todo. Fui abrindo meus olhos. E descobri a melhor palavra: liberdade. Liberdade contra si, liberdade contra o concreto, liberdade contra o real, liberdade contra a divisão em nomes! Sendo tudo igual, fazendo-me parte do todo igual, era muito mais fácil pensar. Livre, muito rápido. As ideias caíam em minha frente como cachoeira. E as pessoas vidradas nas coisas mais bizarras da vida. Numa busca frenética por ter mais. E mais. E mais. Elas não entendem da vida. As coisas já são nossas, elas já fazem parte da gente. Não precisamos trazer para mais perto o que já nos é íntegro. Estamos, agora, mais próximos do chão. Ou sete palmos abaixo. Os intestinos proliferando vermes que nos comem. Depois disso, como podemos achar que somos mesmo diferente das coisas? As coisas não parecem ser assi tão coisas. Esse coisismo é limitado demais. Somos coisas também. Somos coisas que se mexem. Então, o que custa devorar outras coisas? Comer, comer, comer. Nesses hiatos que abrimos no dia-a-dia é que realmente nos vemos. Aquela hora sentado no teatro, um momento para tomar banho. No banho, na vida. De praxe. Quem vai pensar em outra coisa senão em tudo no banho? Banho: melhor refeição do dia. Então, refletimos. E vimos o reflexo forte, porém fosco: somos nós. Somos nós? Mesmo? Ou então o que deveríamos ser? E o próprio ser, dele não se há definição realmente esclarecedora. O que é ser real? É pensar? Então, ao morrer, deixamos de pensar. E os mortos são irreais. A realidade é falsa. Somos coisas, sim. Essas coisas que pararam um dia e fizeram uma festa todas juntas. Aquele balada. Uísque cowboy. E por aí as células se reuniram e todo mundo já sabe no que deu. Aquela tal sopa de letrinhas primordiais. Anos e anos na mesma coisa. Ou não. Talvez a pedra não fosse pedra se não devorássemos suas essência. E nosso ato de devorar é devoto de uma abstração bizarra que constata diariamente a metafísica. Negar a metafísica é simplesmente negar a existência de tudo. Se não há coisa além de coisa, não há quem devore coisa, não há quem pense na coisa. Então a coisa nem sequer existe. Pois ela não se sabe como coisa e, ainda pior, não há quem lhe diga ser coisa.


Caio Mello
25/05/2012

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