sábado, 23 de junho de 2012

Margem de lucro


E ele escancarou os próprios olhos.
Quis verter o mundo todo
numa só vista.

Abriu-os tanto que ambos caíram ao chão.
O corpo, desnorteado, tateou o piso gelado da cozinha.
Ele via! Ele via!
Só não podia compreender...

Via borboletas, asfalto, uma baleia, paquidermes.
O diafragma começou a se contrair
no que inicialmente parecia um soluço,
mas acabou por se tornar uma risada.

Então os olhos ganharam braços, perna e cartola.
Ambos sentaram-se em uma mesa de um bistrô
numa noite de garoa fria na cidade de São Paulo.

Um deles puxou assunto

E a bolsa, o que você acha?

Vai mais ou menos... Essa oscilação está de matar!

Acendem um cigarro amigável.
E o corpo continuou tateando o chão da cozinha.

Eu só te digo uma coisa: essa história toda do euro... Deus que nos acuda!

De fato, meu caro! Espero que a crise não atinja o Brasil. Poderíamos inclusive chegar ao ponto de dois olhos sentarem-se num bistrô para falar sobre a bolsa.

O corpo parou de procurar os olhos por um instante e espirrou.
Continuou a busca.
Finalmente, a mão esquerda esbarrou na janela do bistrô.

O polegar encarregou-se de quebrar o vidro.
Em pouco segundos o corpo já tinha o olho esquerdo em mãos.

Mas, ao invés de devolvê-lo a sua cavidade normal,
o corpo, por engano, engoliu o olho.

Impressionante! Agora ele podia se ver por dentro!
Seus medos, seus sonhos, sua ambições...
Tudo ali exposto como numa loja de roupas caras.

A luz foi apagando-se conforme o olho caía mais no estômago.
Então, tudo fez-se escuro.
Um único facho de luz foi aceso.
Era uma lanterna e ela apontava para ele.

Agora tinha olhos de volta.
Vestia camisa, calça jeans e botas.

Entrou na sala um homem muito grande, muito sério.

Oi, homem.

Oi, quem é você?

Eu sou a tristeza que você sente. Você me tem todos os dias da sua vida, me carrega nas suas costas quando vai para o trabalho, me leva no parque aos domingos.

Mentira! Você sabe que minha vida é mais do que isso.

Se é mais do que isso, por que você não me mostra? Assim eu vou ter inclusive menos trabalho para fazer.

As minhas alegrias são.. São...

A falta de tempo? O apetite voraz? A arrogânica?

Me deixa!

Assim que foi proferida a última frase,
os olhos da tristeza caíram no chão.
Eles começaram a chorar,
pedindo a morte.

A tristeza decompôs-se rapidamente diante do homem.
Um esqueleto sentava-se em sua frente.
Ele continuava a fumar seu cigarro e a arrumar seu topete.

Sabe, homem, as pessoas têm uma ideia muito errada sobre a morte.

E qual é essa ideia?

As pessoas acham que a morte é um dia, um momento, uma fase. Mas não é. A morte nos devora de mahã, de tarde e de noite. A morte se agarra a nós mesmos. Morremos todo dia um pouco, ração próvio-fixa da carne, desilusão em demasia.

Nenhum olho estava ali.
Nem mesmo um olho conseguiria inundar aquela sala.
Inundando-se, o homem pseudo-cego, quase se afogou.

E encontrou-se em meio a seus pedaços,
o imediatismo da comida roncava no estômago.

Caio Mello
23/06/2012

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