domingo, 3 de junho de 2012

Lince


E havia dentro do homem um canto diferente.
Esse canto era o Lince, que só aparecia nos momentos
mais imprevisíveis.

Quando o homem chorava com o olho direito,
mas o esquerdo continuava seco: era o Lince.
Quando o homem parecia querer atravessar a rua,
mas a perna direita ficava fraca: o Lince.

O Lince não respeitava horário nenhum.
De madrugada, o peito arfava.
Com a gravata no pescoço,
os pelos da nuca eriçavam.

O homem abriu a porta de si mesmo uma vez.
Onde está aquele safado?
Quero achar o peludo, quero devorá-lo também,
assim como me devora.

Mas o Lince não era fácil de se achar.
De olhos abertos, o felino entremeava-se nos sonhos.
Nos desprazeres, no raciocínio lógico, na direção.
Os dedos tamborilavam.

Comer cereais no café da manhã.
Hoje há de ser mais uma tarde.
E quem sabe uma noite...
E, assim, perdiam-se as horas.

[Olhos abertos dentro do armário
Ela não sabia se respirava
Ou se continuava prendendo a respiração
Quem sabe assim ele não veria
Pelo amor de Deus que ele não veja
Um grunhido baixo escapou da garganta
Ele abriu a porta berrando]

No carro, no passeio público.
Ônibus quente. As costas encharcadas de suor.
Uma cerveja para colar as mágoas, amálgama da vida.
Salgados frescos na frente do bar.

O giz sujando os dedos.
Luvas, para quem as precise.
É, doutor, não queria que você me desse essa resposta.
Sim, homem, é o Lince.

Mas nem a medicina pode me salvar agora?
O Lince é o Lince. Não se sabe explicar.
Está aí: como a chuva, como o dia, como o cabelo,
como o vento, como seu cachorro...

E o doutor conhece mais alguém que tenha algo parecido?
Tipo o que, homem? Um paquiderme? Não seja tolo.
Não há nada igual, ninguém que se compare.
O Lince é... Bom, já disse. O Lince é o Lince.

O homem em casa, de novo.
Abraçou sua filha. Apertou-a com delicadeza, feliz.
Deitou-se com sua mulher e
esqueceu as aflições da vida.

Trompetes ecoavam em sua cabeça.
O Lince-maestro, regendo sua vida.
Ópera do fim do mundo,
Wagner de pelos longos.

O homem preocupava-se.
E agora? E agora?
Refletia, olhando o espelho.
Focava-se em sua orelha direita.

Tomou uma decisão muito séria.
Foi para o trabalho mais cedo naquele dia.
Trabalhou feito um cachorro, acabou com todas as pendências
que restavam.

Despediu-se de todos os colegas,
desejando a todos um ótimo fim de semana.
Olhou para a mulher. Disse-lhe sobre o amor. Gigante.
Levou a mulher e a filha para jantar.

Deu para a mulher uma joia e para a filha um ursinho.
Levou as duas para o cinema.
Depois, deixou a mulher e a filha na casa
dos avós.

Pegou o carro, dirigiu até a praia.
O Lince quase o fez não conseguir trocar de marcha.
O homem encontrou seu irmão.
Deu-lhe um abraço forte.
Seguiu para o campo.

No jardim de uma casa bonita,
sentou-se pensativo.
Tomou dois copos grandes de pinga.
Olhou para o céu. Inverno.

Levantou-se, corajoso.
Ficou parado de pé no meio do jardim.
Deixou os pés nem muito próximos
nem muito separados.

Tentava respirar tranquilamente.
Demorou apenas uma hora.
Seus pés já criavam raízes.
Sentia os dedos dormentes.

Era um processo doloroso, afinal,
não era muito de sua natureza.
O dia dormiu e raiou de novo.
Não havia mais homem.

Curto e grosso.
Simples e prático. Foi-se.
Sem mais nem menos,
como sempre quis.

Então o caseiro regou a árvore.
Cuidou-lhe bem,
evitou os parasitas.
Voltou a primavera.

O primeiro fruto cresceu rápido no galho.
Aumentou, parecia apetitoso.
Caiu no chão.
Viu-se tudo.

Era o Lince,
finalmente
livre.

Caio Mello
03/06/2012

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