sábado, 17 de novembro de 2012

Estações



Primavera

Ela lança seus braços para cima.
Ela dança.
Seu corpo belo, suave...
Um sorriso forte e decidido.

Como um raiar de dia,
como um começo novo. Um princípio.
Ela é o sentimento de comer um pedaço de biscoito
logo depois de tomar uma xícara de café bem forte sem açúcar.
Ou melhor: ela é.

Como um detalhe.
Não precisa de muito. Não precisa de muitos.
A sua beleza é rara, interna.
É uma beleza quase selvagem esculpida
numa menina urbana.

Ela acorda de manhã, ainda esparramada na cama,
e já está maravilhosa.
Não precisa de roupas. Não precisa de acessórios.
Não precisa de cinco horas para se produzir.

Ela acorda e está pronta para o mundo.
É como despertar sem nenhum alarme.
Aquela manhã tranquila de domingo,
seus olhos vão gradualmente deixando-se abrir para a vida.
Um primeiro foco, um primeiro cheiro...
E então, os pés voltam para o universo.

Ela é o avesso. A parte contrária.
O desregrar de um mundo paralelo.
Modelo de si mesma, desafio para as outras.

Usa uma camiseta colorida.
No rosto, um olhar meigo.
Seduz devagar, simplesmente.
Deixa uma vontade bem no fundo do peito.
Bem debaixo do pulmão.

Um ar quase arrogante, decidido.
Mesmo assim, envergonhada.
Uma pureza profunda, profana, prolífera.
Montanhas, pradarias, doces, quitutes.
Doce de leite.

Perfeita porque incompleta.

Inverno

No enterro de um pastor-alemão chamado Rex, oito homens vestidos de preto cantam todos juntos. Estão todos taciturnos, todos de preto. De perto, tristes. De longe, sérios.

Já perdeste carne
Já ganhaste terra
Chegaste ao limite
No fundo do poço

Sem bolas azuis
Nem cantos antigos
Nem versos recentes
Nem dias amenos

Deixas as entranhas
Ganhas oceano
Planejas voltar
Não sabes nadar

Olha o teu enterro
Pensa teu defunto
Desfruta teu choro
Desterro da vida

Perdeste o horário
Passaste o limite
Morreste de fome
Por comer demais

Chegam ao evento inúmeros documentos do escritório do cão. Uma pasta com os gráficos do desempenho da empresa em 2010 começa a falar:

Rex, foste como um pai para mim. Construíste meu conteúdo. Disseste o que eu deveria fazer em minha vida. Passaste diversas tardes de domingo ao meu lado. Emociono-me a cada dia, pensando nas noites românticas que passamos no escritório. Você, nervoso com seus prazos, alheio à realidade, escrevia-me com um furor inigualável. Sinto-me lisonjeada de ter tido mãos tão suaves a me escrever.

Um caderno de notas:

Rex, sinto tua falta. Ainda me restam algumas folhas em branca. Meu bojo será eternamente uma lacuna por ter te perdido tão cedo assim. Morreste cedo. Talvez até são demais... Morreste na batalha da vida, na qual estamos todos inseridos. Morreste entre uma linha minha e outra. Aquela frase vai para sempre ficar sem fim. Lembro-me de te ver admirando a vista na janela. Tão bonita a vista daquela janela do trigésimo andar... Mas tu gostavas de tê-la fechada. Não entendo por que...

Chega a cadela viúva:

Rex, vais tarde. Largaste tudo para trás logo cedo. Largaste coisas demais. Tudo demais. A tua gravata era tudo que tinha. O nó no pescoço. O nó na garganta. Por fim... O nó nas tripas... Foste. E ponto.

Joga-se terra no buraco.

Escuridão.

Equinócio

Tudo tem quatro lados. Tem quatro lados tudo.
Tudo.
A vida, oblíqua. Obtusa. Hipotenusa.
O arquétipo do palhaço.

Ele finge ser normal.
Usa máscaras. Gesticula.
Marionete.
Imita a elite, mas jamais será parte dela.
Perdido, ignoto. Subjugado. Sujo. Submúndico.
Raquítico. Dissoluto.

Ele fica na roda da vida.
Constante morte pairando na tela de um computador.
Os prazos, os relatórios, as entregas.
Quotidiano.

Sôfrego nadador antimaré.
Morre a cada dia.
A cada sopro perdido.
A cada dia mal vivido.
A cada morte planejada.
A cada plano morto.

Mas o palco é arte. Todo dia, sorriso novo.
Novas piadas, novos clientes.
Entretenimento.

Triste o palhaço que não tem o direito de ser triste.

Outono

A nossa mente flutua
entre o que desejamo ser e o que já somos.
Somos porque temos de ser.
Ou porque temos ânsia pela vida,
ou porque temos medo da morte,
ou porque fomos coagidos a viver.

Há, para tudo, uma obrigação.
Direito do cidadão, dever do estado.
Sim... O direitobrigação de viver.
A vedação do suicídio.
A negação da morte.
O impecílio suicida.
Agressivo, porém incompleto.

O parâmetro inacabado de todos nós.
Somos feitos da mesma massa.
A massa da nossa alma. A alma atômica, recém-formada.
Ainda graduanda do holocausto.

A vedação da alegria plena.
Os padrões. A moral. A ética. Modos. Moda.
O corpo desfalecido com o peito aberto.
Na cirurgia, ossos padecem.

Pré-Rex.

Solstício de inverno

Não vejo mais o dia.
Não vejo.

Vejo a noite eterna.

Longa.

Gélida.

Meus pés tremem. O coração palpitante.
Mal posso esperar... Preciso ver o dia.
Preciso ver o dia. Preciso!

A fé, a precisão, a necessidade, o vício.
Nós, todos... Sentimos muito.
Perdemos o ânimo, o hábito, o hálito...
Perdemos nossa virgindade.
Somos todos gastos. Castos? Putos.

Verão

No fundo, enxergo o oceano.
Deleito-me com o simples olhar.
Desconecto-me do universo.

Eu não sei. Eu sou.
Sou as estrelas.
O sol, o céu, o sal, o seu.
As mãos abertas.
Pés cruzados.
Cruzamos os portos, Gibraltar rumo à Terra Santa.
Cruzamos o continente.
Oiapoque ao Chuí.

No fundo de mim, espero enxergar a vida.
Linda, maravilhosa.
Não economizo vida.
Gasto-a.
Queimou-a aos montes porque é maravilhosa.
Vou engolindo-a rapidamente.
Sobram-me poucas opções.
Tenho-a nos meus dedos
e ela me tem na mão.

Desfaço-me
Nasci de novo.

Caio Mello
17/11/2012

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