segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Lili e Lalá



Disseram-me
que a vida é curta.

Eu respondi
que a vida é um ovo.

Parte I – A Família

            Lili era uma garota muito bonita. Tinha catorze anos de idade e grandes cachos morenos. Ela morava com seu pai, Alberto, e com sua mãe, Gabriela. Seu pai era já mais velho, advogado de respeito na cidade que vivia imerso em seus cabelos grisalhos no auge de seus setenta anos. Sua mãe era mais nova, um sorriso ainda agarrado à juventude de seus quarenta.
            A menina sentia-se muito sozinha, pois não tinha irmãos. Sua única companhia era a sua cadela Lalá. Um vira-lata vistoso, com pelo dourado. De longe, até parecia um pastor alemão. Grande, bonita, Lalá entretia a menina em suas tardes. No colégio, Lili fazia muitos amigos, mas nenhum deles conseguia chegar sequer as pés de Lalá. O animal tinha algo de belo dentro de si, de poderoso. Lalá compreendia Lili de um jeito muito simples. Sentava-se ao lado da menina e ouvia por horas as histórias mais mirabolantes que Lili criava. Sereias, monstros, pássaros, deuses... De noite, os pais deixavam Lalá deitar na cama junto com Lili.

Parte II – O Sonho

Alberto, o que trazes na mente?
Trazes o sonho, o dizer, o desejo?
Estás, mesmo, vivo?
Consideras a vida o distinto sabor de teus dizeres?

Para. Olha o mundo ao redor.
Escuta o que diz teu peito.
Esta vida tão longa, tão completa, tão nonsense.

Viveste agora já o suficiente para quebrarmos a ordem
natural do mundo.
Vivemos. Vives. Vês.

Agora terás a chance de vivenciar
o que muitos ignoram.

Abre teus olhos para nunca mais fechá-los.
Estás livre.

Parte III – O Acidente

            Lili estava na sala de sua casa sentada, assistindo televisão. Lalá dormia a seus pés, com os olhos bem fechados. Gabriela entrou na sala.

Oi minha filha, tudo bem?

Tudo mãe... Eu to aqui assistindo tevê com a Lalá. Mas eu acho que ela já dormiu...

E por que vocês não vão um pouco lá fora brincar? Tá um dia lindo hoje.

Pode ser!

            Lili acordou Lalá e levou-a para a rua. As duas brincavam no jardim da casa. A residência ficava numa região um pouco mais afastada da cidade. Condomínios de alto padrão.

João vinha dirigindo seu carro
pela rua estreita.
Não podia enxergar direito.
Muito uísque, cachaça boa...
Quem sabe do sonho quando estamos acordados?
Quem sabe se estamos acordados de fato?
O que é o sonho?
A direção parecia tão longa...
As curvas pareciam tão curtas.
Muito.... Suaves.

Lalá
            Lalá
                        Lalá
                                   Lalá
                                               Lalá
                                                           Lalá
Lá onde os meus olhos já não se enxergavam

As vistas se perderam.
Um borrão dourado cruzou a apertada rua.
O pé, desreflexo.
Dentes cerrados.
Mãos buscavam desconexamente
a marcha
o freio
o espelho
e o poste.
O veículo chocou-se rapidamente.
Um último ganido.

            A menina chorava. A primeira visão concreta de sua vida. Sua amiga, sua companheira, morta. Como a vida poderia ser tão cruel? Foram anos de treinamento, foram anos levando a cadela para passear, foram anos de carinho... Tudo isso perdido em segundos. Os séculos de natureza, milhões de anos de Universo e a vida tão frágil. Tudo aquilo que parecia muito bem desenhado, muito bem construído perdera-se com apenas uma roda. O homem estranho batera o carro. Saiu cambaleando, perdido. Vomitou no chão. Por que ele falava tão enrolado? Por que ele não conseguia pensar direito? Será que fora o impacto da batida?
            Gabriela escancarou a porta da casa e gritou por sua filha.

Lili! Lili! Minha filha, minha menina!

            Mas Lili não respondia. Ela não estava nem um pouco machucada. Não cortara nem sequer a ponta de seu dedo. Mas por dentro... Havia um rasgo no seu peito. O mundo não fazia o menor sentido. Como as coisas poderiam funcionar daquele jeito? Como a lógica do universo poderia ser tão cruel? Nada se encaixava.
            A dor.

Parte IV – O Funeral

Uma pá de terra
outra pá de terra.
Os pelos dourados
a noite os encerra.

Vão descendo lágrimas.
Não chore Lili,
sorri outra vez.
Não fiques aqui.

Procura de novo
de novo, de novo
a vida nascendo:
nascendo de um ovo.

Parte V – Alberto

            Era domingo, sete horas da manhã. Lili estava sentada na mesa da cozinha, mexendo seu cereral com uma colher. Sua mãe estava tomando banho. Ao seu lado, seu pai lia o jornal. No chão, não havia mais ninguém.
            Alberto olhou para a porta. Gabriela ainda estava no chuveiro, ele podia ouvir a água descendo. Olhou ainda mais uma vez para ter certeza. Dobrou, cuidadoso, o jornal. Olhou para o rosto da filha.

Lili, olha pra mim.

            A menina levantou os olhos.

Oi, pai.

Lili, se eu contasse um segredo pra você, você saberia guardar esse segredo muito bem?

Sim, pai, você sabe que eu nunca conto nada pra ninguém. Lembra daquela história da gente roubar a pizza do vizinho? Eu nunca contei pra ninguém, nem mesmo pra mamãe. Você pediu, eu não contei.

            O pai começou a sorrir, lembrando-se da história.

Que bom, que bom. Então, eu preciso te contar uma coisa... Você já parou pra pensar sobre a vida, minha filha? Já parou pra pensar na ordem natural das coisas?

Eu sei lá, acho que não. Não gosto de ficar pensando sobre essas coisas. Ainda mais depois do que aconteceu.

E se eu te contar que a vida não precisa seguir numa direção só? E se eu te falar que as coisas podem mudar de sentido de vez em quando?

Se você fala, eu acredito, pai.

Eu posso inclusive te contar que... As pessoas não precisam nascer só uma vez. Ela podem nascer várias vezes, continuar vivendo e brotar de novo. Assim como brotam as plantas. A gente só precisa ter cuidado com o que faz. Então eu quero que você, nessa noite, feche seus olhos e pense com bastante força na Lalá.

Pai, não vamos falar sobre ela, por favor.

Calma, Lili. Faz o que eu to te pedindo. Quando você for dormir hoje de noite, pensa o máximo que conseguir na Lalá. Pensa nela de volta.

            E assim fez Lili. Quando a menina foi dormir naquele dia, pensou em Lalá o máximo que conseguiu. Pegou-se repentinamente chorando pela morte de sua amiga. Chorou tudo o que podia, até suas costelas doerem de tanto soluçar. Ela chorava baixinho para que sua mãe não ouvisse. Queria fazer como seu pai lhe tinha dito, queria chorar sozinha a morte da cadela.

            Alberto fechou os olhos.

Nossa vida é cheia de labirintos,
nada na contramaré do oceano.
Nós somos feitos de papel humano,
mas dos animais não somos distintos.

Nosso tempo é só aquilo que eu sinto,
o tempo é esfera, ele não é plano.
Ele é um engodo, ele é um engano.
A nossa morte é da vida um instinto.

Se sendo engodo, por que começar
tal crime de fazer cessar a vida?
Melhor tê-la esticada como elástico.

Caminho para sempre sem partida,
como se a vida nos fosse de plástico.
Viver o avesso do labirintar.
           
            No dia seguinte, Lili foi acordada por latidos no seu quarto. Por latidos. De Lalá.

Caio Mello
19/11/2012

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