Disseram-me
que a vida é curta.
Eu respondi
que a vida é um ovo.
Parte I – A Família
Lili
era uma garota muito bonita. Tinha catorze anos de idade e grandes cachos
morenos. Ela morava com seu pai, Alberto, e com sua mãe, Gabriela. Seu pai era
já mais velho, advogado de respeito na cidade que vivia imerso em seus cabelos
grisalhos no auge de seus setenta anos. Sua mãe era mais nova, um sorriso ainda
agarrado à juventude de seus quarenta.
A
menina sentia-se muito sozinha, pois não tinha irmãos. Sua única companhia era
a sua cadela Lalá. Um vira-lata vistoso, com pelo dourado. De longe, até
parecia um pastor alemão. Grande, bonita, Lalá entretia a menina em suas
tardes. No colégio, Lili fazia muitos amigos, mas nenhum deles conseguia chegar
sequer as pés de Lalá. O animal tinha algo de belo dentro de si, de poderoso.
Lalá compreendia Lili de um jeito muito simples. Sentava-se ao lado da menina e
ouvia por horas as histórias mais mirabolantes que Lili criava. Sereias,
monstros, pássaros, deuses... De noite, os pais deixavam Lalá deitar na cama
junto com Lili.
Parte II – O Sonho
Alberto, o que trazes na mente?
Trazes o sonho, o dizer, o desejo?
Estás, mesmo, vivo?
Consideras a vida o distinto sabor de teus dizeres?
Para. Olha o mundo ao redor.
Escuta o que diz teu peito.
Esta vida tão longa, tão completa, tão nonsense.
Viveste agora já o suficiente para quebrarmos a ordem
natural do mundo.
Vivemos. Vives. Vês.
Agora terás a chance de vivenciar
o que muitos ignoram.
Abre teus olhos para nunca mais fechá-los.
Estás livre.
Parte III – O Acidente
Lili
estava na sala de sua casa sentada, assistindo televisão. Lalá dormia a seus
pés, com os olhos bem fechados. Gabriela entrou na sala.
Oi minha filha, tudo bem?
Tudo mãe... Eu to aqui assistindo tevê com a Lalá. Mas eu acho que ela
já dormiu...
E por que vocês não vão um pouco lá fora brincar? Tá um dia lindo hoje.
Pode ser!
Lili
acordou Lalá e levou-a para a rua. As duas brincavam no jardim da casa. A
residência ficava numa região um pouco mais afastada da cidade. Condomínios de
alto padrão.
João vinha dirigindo
seu carro
pela rua estreita.
Não podia enxergar
direito.
Muito uísque, cachaça
boa...
Quem sabe do sonho
quando estamos acordados?
Quem sabe se estamos
acordados de fato?
O que é o sonho?
A direção parecia tão
longa...
As curvas pareciam tão curtas.
As curvas pareciam tão curtas.
Muito.... Suaves.
Lalá
Lalá
Lalá
Lalá
Lalá
Lalá
Lá onde os meus olhos já
não se enxergavam
As vistas se perderam.
Um borrão dourado
cruzou a apertada rua.
O pé, desreflexo.
Dentes cerrados.
Mãos buscavam
desconexamente
a marcha
o freio
o espelho
e o poste.
O veículo chocou-se
rapidamente.
Um último ganido.
A
menina chorava. A primeira visão concreta de sua vida. Sua amiga, sua
companheira, morta. Como a vida poderia ser tão cruel? Foram anos de
treinamento, foram anos levando a cadela para passear, foram anos de carinho...
Tudo isso perdido em segundos. Os séculos de natureza, milhões de anos de
Universo e a vida tão frágil. Tudo aquilo que parecia muito bem desenhado,
muito bem construído perdera-se com apenas uma roda. O homem estranho batera o
carro. Saiu cambaleando, perdido. Vomitou no chão. Por que ele falava tão
enrolado? Por que ele não conseguia pensar direito? Será que fora o impacto da
batida?
Gabriela
escancarou a porta da casa e gritou por sua filha.
Lili! Lili! Minha filha, minha menina!
Mas
Lili não respondia. Ela não estava nem um pouco machucada. Não cortara nem
sequer a ponta de seu dedo. Mas por dentro... Havia um rasgo no seu peito. O
mundo não fazia o menor sentido. Como as coisas poderiam funcionar daquele
jeito? Como a lógica do universo poderia ser tão cruel? Nada se encaixava.
A
dor.
Parte IV – O Funeral
Uma pá de terra
outra pá de terra.
Os pelos dourados
a noite os encerra.
Vão descendo lágrimas.
Não chore Lili,
sorri outra vez.
Não fiques aqui.
Procura de novo
de novo, de novo
a vida nascendo:
nascendo de um ovo.
Parte V – Alberto
Era
domingo, sete horas da manhã. Lili estava sentada na mesa da cozinha, mexendo
seu cereral com uma colher. Sua mãe estava tomando banho. Ao seu lado, seu pai
lia o jornal. No chão, não havia mais ninguém.
Alberto
olhou para a porta. Gabriela ainda estava no chuveiro, ele podia ouvir a água
descendo. Olhou ainda mais uma vez para ter certeza. Dobrou, cuidadoso, o
jornal. Olhou para o rosto da filha.
Lili, olha pra mim.
A
menina levantou os olhos.
Oi, pai.
Lili, se eu contasse um segredo pra você, você saberia guardar esse
segredo muito bem?
Sim, pai, você sabe que eu nunca conto nada pra ninguém. Lembra daquela
história da gente roubar a pizza do vizinho? Eu nunca contei pra ninguém, nem
mesmo pra mamãe. Você pediu, eu não contei.
O
pai começou a sorrir, lembrando-se da história.
Que bom, que bom. Então, eu preciso te contar uma coisa... Você já
parou pra pensar sobre a vida, minha filha? Já parou pra pensar na ordem
natural das coisas?
Eu sei lá, acho que não. Não gosto de ficar pensando sobre essas
coisas. Ainda mais depois do que aconteceu.
E se eu te contar que a vida não precisa seguir numa direção só? E se
eu te falar que as coisas podem mudar de sentido de vez em quando?
Se você fala, eu acredito, pai.
Eu posso inclusive te contar que... As pessoas não precisam nascer só
uma vez. Ela podem nascer várias vezes, continuar vivendo e brotar de novo.
Assim como brotam as plantas. A gente só precisa ter cuidado com o que faz. Então
eu quero que você, nessa noite, feche seus olhos e pense com bastante força na
Lalá.
Pai, não vamos falar sobre ela, por favor.
Calma, Lili. Faz o que eu to te pedindo. Quando você for dormir hoje de
noite, pensa o máximo que conseguir na Lalá. Pensa nela de volta.
E
assim fez Lili. Quando a menina foi dormir naquele dia, pensou em Lalá o máximo
que conseguiu. Pegou-se repentinamente chorando pela morte de sua amiga. Chorou
tudo o que podia, até suas costelas doerem de tanto soluçar. Ela chorava
baixinho para que sua mãe não ouvisse. Queria fazer como seu pai lhe tinha
dito, queria chorar sozinha a morte da cadela.
Alberto
fechou os olhos.
Nossa vida é cheia de labirintos,
nada na contramaré do oceano.
Nós somos feitos de papel humano,
mas dos animais não somos
distintos.
Nosso tempo é só aquilo que eu
sinto,
o tempo é esfera, ele não é plano.
Ele é um engodo, ele é um engano.
A nossa morte é da vida um
instinto.
Se sendo engodo, por que começar
tal crime de fazer cessar a vida?
Melhor tê-la esticada como
elástico.
Caminho para sempre sem partida,
como se a vida nos fosse de
plástico.
Viver o avesso do labirintar.
No
dia seguinte, Lili foi acordada por latidos no seu quarto. Por latidos. De
Lalá.
Caio Mello
19/11/2012
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