quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Haikai para ser lido no dia 31 de janeiro de 3023



Vocês não se esqueçam
de lavar as suas mãos
antes de comer.

Caio Mello
13/12/2012

Quando acordamos antes da hora



Murmuram as luzes os seus desejos.
Segredam, a golpes baixos, uma vontade diversa.
Do que sabem os prédios? Os ternos?
Incautos transeuntes perdem-se na torpe urbe.

Eu sei Eu sei Eu sei
Não sei Não sei

Os canos são cobras.
Na tela, um fantasma.
Temos medo da noite, ilustre dia perscrutante.

Roloprecursor
Sorroloprecor
Roto morto

A acidez desse dia tão feliz.
O mundo, às avessas, balança na janela.
Corre o risco de perder o sentido.

Faça-se o discurso
Ditem-se as rosas
Prepare-se o melhor feijão possível
Queimem-se as caixas

Mas uma insinuação perpassa a manhã.
Nuves, poucas, bailam no vento.
Esperança.

Vê, na tua vista, o fundo de teus olhos.
A vista, a vala, o comum.
O óbvio repentino equanto sorri.
Ser é verbo és.

Caem blocos de granito do céu.
Tudo elétrico, perplexo.
As janelas sambam.

Limpe-se a rua.
Pintem-se as portas.
Cortem-se os galhos sobressalentes.
Faça-se o necessário.

E os olhos se abrem escancarados para o mundo.

Caio Mello
13/12/2012

Flácido



Algo em mim decanta.
Perco o brilho, permaneço nas sombras.
Sinto-me na gruta, obscuro.
Meus olhos perdidos brilham na noite.

Uma parte de meu corpo tornou-se puída, gasta.
Um canto está velho em mim.
Vou perdendo gradualmente minhas aptidões.

Meus olhos segredam,
meus dedos se perdem,
meus montes de areia
fogem com o vento.

Mergulho em mim mesmo
na madrugada revolta.
Meu corpo, fluido, desfaz-se no mundo.
Desnecessito de tudo, carente, porém, de um milagre.

Os homens não são feitos uma vez só.
São diversas e repetidas vezes feitos, construídos,
remodelados. Perdemos o barro, a lama,
a alegria. Caem braços, pernas, pulmões.

Tal qual estrela-do-mar, nossas partes ressurgem.
Mas já não são as mesmas de antes.
São algo diverso... Conteúdo enigmático
que teima em não se adaptar ao corpo.

Essa nossa máquina cotidiana de pulsar sangue
rejeita suas partes vindouras.
O paradoxo da reconstrução.
E fico eu, incompleto.

As peças incoerentes de uma máquina que
nunca poderá ser construída.
As tintas ressecadas que
nunca comporão um quadro.

Negam-me, a olhos bem abertos,
a poesia. Arte incoerente e solitária.
Repito-a eu, resoluto. Social, mundana,
participativa, nunca sozinha. Nunca.

Mas não posso fazer olhos ressacados me darem respostas.
Cada um pinta o universo com as cores que deseja.
Optamos por assistir o que vemos
e construímos um sonho individual.

A arte morre na alma cética.
Infeliz, manca, a alma segue supostamente incólume.
Contudo, é incapaz de ver a mácula no estofo de seu peito,
no coração sofrido que tem medo de viver.

O medo espalha-se como fogo na palha.
Ele sobe, ele corre, ele engole.
Deturpa meu corpo, cega meus olhos,
cala-me a alma.

Caio Mello
13/12/2012

domingo, 9 de dezembro de 2012

O verme



A noite é longa, fria e putrefeita.
Em cada corpo, rasteja um inseto
guardando a carne tal como seu teto.
O verme-rancor nos traz a maleita.

Medonho é carregá-lo como um feto,
acreditando em atos desta feita.
Quem foi que disse que a vida é eleita?
Nós roemos nosso sonho abjeto.

Nós somos o esterco
do bezouro rola-bosta.
Tu perdes, eu perco
dessa vida, nossa aposta.

Entranhas são cerco:
tristes de nós, sem proposta.
Não verás o acerto
me devorar pelas costas.

Eu sinto esse bicho em meus intestinos,
eu o sinto nos pulmões e nos sonhos.
Ele passa sentimentos medonhos
através de olhos pequenos e finos.

Aniquilá-los, matá-los proponho.
Acabar com o estilo de vida equino:
finalmente extirpar esse inquilino!
Para acabar com o mundo enfadonho.

Caio Mello
09/12/2012

sábado, 8 de dezembro de 2012

Vamos contar o que nunca se conta



Contar o tempo é uma ideia absurda.
Dividir a existência em pequenos compartimentos
não faz o menor sentido.

Antes que a lógica atingisse tal noção,
o mundo simplesmente existia.
As coisas viviam, tomavam seu tempo.
As plantas cresciam porque era natural que crescessem.

Os indivíduos (humanos ou qualquer outra definição)
comiam quando tinham fome.
Eles não comiam a cada três horas, como diz a boa dieta.
Eles comiam quando achavam necessário.

As sensações parecem divididas em pequenas células impermeáveis.
Hoje vou ficar até duas e meia da tarde na casa da Joana.
Depois disso, vou pegar meu carro e consigo chegar em casa
até três horas da tarde. Assim consigo ver o jogo.

Estamos compactando quem somos.
Perdemos a primórdia sensação do caminhar.
Sabíamos que o mundo era mundo. Víamos o sol e a lua.
No seu vagar natural, seguindo uma dada sequência.

Perdemos um pouco da arte da admiração.
Antes, não tínhamos a ideia de tempo.
Agora, não temos tempo de ficar contemplando a vida.
Precisamos utilizar nossas cápsulas de tempo.
É contraditório dominar, porém nunca possuir.

Numa dada época da história, o homem descobriu que,
se soubesse calcular melhor a distribuição de suas tarefas ao longo do dia,
conseguiria executá-las com mais rapidez e pragmaticidade.
Com isso, evoluímos.

Mas esse próprio conceito nos traiu.
Nossa crença na otimização da vida, tornou-nos viciados.
Hoje, não podemos mais abrir mão de nosso tempo.
Precisamos fazê-lo durar, fazê-lo existir.

O cotidiano precisa ter um significado coeso, lógico,
programático. Tudo em seu devido tempo.
Acordamos no mesmo horário, almoçamos no mesmo horário,
trabalhamos quase sempre nos mesmos horários,
nossos almoços em família têm horário,
nossa novela predileta tem horário.

Sabemos sempre que horas são.
São sete horas. Sim, sete.
Mas elas são o que?
São momentos de prazer, de regojizo, de loucura?
Elas são apenas... horas? Mais nada?
Foi para isso que inventamos a divisão de nossas vidas?

Outro conceito alterou-se com a noção de tempo.
O que significa, hoje, viver muito?
Ele viveu muito: morreu com oitenta e nove anos de idade.
Morreu com muita idade, tempo avançado.

Mas será que a senilidade representa viver muito?
Viver não é simplesmente empilhar tijolos
e contá-los verticalmente.
Um, dois, três, quatro...
Não. A vida não era assim. E não deveria ser.

Precisamos fazer ainda outro cálculo:
viver muito deve significar
a quantidade de alegria, conquistada ou despendida,
ao longo de uma existência.

Saberemos apenas quem viveu muito através
de seus sentimentos e de seus atos.
Viver muito significa estender a mão,
significa levar seus sonhos ao extremo,
significa amar e ser amado.

Nós esquecemos como o mundo era um oceano de sensações.
Perdemos completamente a ideia do fluir constante.
Possuímos uma previsão absurda de nossas tarefas.
Podemos, inclusive, predizer nossa própria morte com
um razoável grau de precisão. Sabemos lidar com o tempo.
Morremos nos suspiros do bater dos segundos.
Vazamos a cada instante, a cada girar de engrenagens.

A vida sempre existiu, bem antes do homem.
É ridículo acharmos que podemos, hoje, dominá-la.

Caio Mello
08/12/2012