O Padre era
mais um homem comum. Ao contrário do que poderia entregar seu nome, seu ofício
não era eclesiástico, muito menos celibatário. Era Rafael Padre, muito chamado
na infância de “a mulher do padre” nas brincadeiras de quem chegaria por
último.
O
Padre tinha algumas manias. Afinal, qualquer um de perto pode ver-se preso num
emaranhado nada simples de necessidades psicológicas inúteis. Ele acordava todo
dia cinco e meia da manhã, ia para a cozinha, preparava café bem preto e bem
quente (porque de doce já temos a vida), comia um pão na chapa com seu café e
depois partia para seu trabalho. Ao chegar no serviço, fazia a barba no
banheiro. Sentava-se em sua baia. Toda vez que se levantava, tinha que contar
necessariamente seus passos até o lugar desejado. Se errasse, tinha que alargar
ou encurtar os passos para nunca perder a previsão. Assim sentia-se mais
seguro. Além disso, sempre subia o prédio de escada, pulando o segundo e o sétimo
degrau do lance que tinha pela frente. Fumava metodicamente seus cigarros até
que a brasa atingisse o filtro. Não podia passar do filtro nem parar antes
dele. E sempre fumava exatamente um maço por dia, nem mais nem menos.
O
Padre era visto como um homem muitas vezes limitado. Quando conversava com o
chefe e andava ao mesmo tempo, suava desesperadamente para conseguir não deixar
transparecer sua necessidade de contar seus passos. Mas era evidente sua
teimosia. O chefe ainda parava, voltava, remendava o caminho só para tentar
fazer o Padre sair de seu eixo. Mas ele nunca saía. Suave, sofria, quase
dançava, mas nunca deixava de contar seus passos.
Todos
duvidavam muito do Padre. Mas em uma coisa ele era muito correto: remédios. Era
hipocondríaco desde que nascera. Dores nas costas? Gripe? Febre? Padre tinha
sempre um remédio para receitar para os colegas de trabalho, amigos e
familiares. Claro que a medicina estava além dos seus conhecimentos, mas ele
tinha um conhecimento básico que obtera através de anos de auto-medicação.
Foi
então que deu-se o caso.
Um
dia o Padre não apareceu no trabalho. Como
assim o Padre não veio? Comentavam todos. Ele deve estar com algum tipo de doença muito séria, não é possível...
Ele veio aqui até naquele dia que foi atropelado por um carro. Sentou com a mão
ensanguentada fingindo que nada tinha acontecido e voltou a trabalhar... Até
seu chefe ficou preocupado.
No
fim do dia, os colegas de trabalho decidiram aparecer na casa do Padre para
saber como ele andava. Não faltava um curioso pra saber que fim se dera ao
pobre. Poderia estar morto, congelado, novamente atropelado, baleado... Enfim,
tudo. Talvez até enforcado pelas linhas metódicas que criara em sua medíocre
vida.
Quando
chegaram no apartamento, a porta estava aberta. Uma prima do Padre, que também
era Padre mais que freira, estava sentada na cama. O coitado estava deitado,
com os olhos fechados, suava excessivamente. Os colegas ficaram compadecidos da
figura. Tão fechado, tão calculista e agora entregue à sua própria carne...
Logo
veio o médico analisar o Padre. Meu Deus,
ele tem doencite crônica... Só vi essa enfermidade ocorrer duas vezes em minha
vida! Num senhor de oitenta anos e agora no Padre! E agora? O que fazer? Olha, eu realmente não sei... Nem com todos
os meus anos de medicina, nem com todos os livros que gastei meus olhos pra ler
vou conseguir decifrar o corpo desse homem. Melhor já encomendá-lo pra mãe de
santa ou bispo ou rabino ou rábula ou rébulo... Enfim.
Os colegas
entristeceram-se com a notícia. Era o fim do Padre, tão cedo... Mas a prima
continuou indo na casa do primo. E alguns colegas acabaram ficando mais na casa
do Padre porque também não desejavam ver uma pobre alma sofrendo assim tamanho
tempo sem uma roda razoável de pessoas para velar pela partida vindoura de sua
alma.
Eis
que, numa quente tarde furtiva, o Padre acabou ficando sozinho no quarto com
seu amigo Alberto. A prima havia saído para comprar comida, os demais colegas
estavam no escritório cobrindo a labuta do Padre e de Alberto. A janela
entreaberta deixava entrar a brisa morna. O Padre suava muito. Abriu os olhos
trêmulos, encarou Alberto, dizendo numa voz fraca e rouca
Alberto... Alber! To... Albeeerto...
Oi, Padre, oi! To aqui, cê não precisa ficar sofrendo, calma...
O Padre agarrou a
camisa de Alberto. Trouxe-o para bem próximo de si. O cheiro ácido de suor e
substâncias decompostas inundava o corpo do homem.
Cê precisa me fazer uma coisa... Em... Em- em segredo! E tem que ser
agora!
Claro, claro, claro! Só me fala o que é e eu te ajudo.
Assim... Olha: abre a seg-segunda – Ai que dor – abre a segunda gaveta
do meu criado mudo. Lá você vai encontrar um frasco de 100ml de cor rosa...
Traz ele pra mim, pelo amor do nosso Deus!
Alberto não
demorou muito para achar o frasco. O Padre não teve dúvida: virou o mais rápido
possível o líquido do frasco para dentro de sua boca e engoliu de uma vez só.
Ficou olhando furtivamente para os lados. Parecia frenético, estressado,
desesperado. Não queria que ninguém descobrisse que havia bebido daquele frasco
além de Alberto.
O
fato passou a ficar na mente de Alberto. Porém, logo outro fato muito mais
notório ocorreu. O Padre melhorou rapidamente, ganhou forças novamente e voltou
à sua vida metódica. Claro que agora ele até conseguia dar alguns passos a mais
quando conversava com o chefe – talvez tenha descoberto que com o sem a
contagem a vida iria acabar de qualquer jeito. Enfim, ele estava bem.
Alberto
ficou remontando tudo que havia acontecido... E, logo após Padre tomar o frasco,
ele melhorou a galope. O que seria que... Não era possível! Numa pausa para um
café, quando os dois se encontravam sozinhos na cozinha, Alberto puxou assunto:
Então, Padre! Cê melhorou mesmo, né? E foi tudo muito rápido, né?
Foi... Foi mesmo.
Aposto que tem a ver com aquele frasco que eu te dei. O que cê
descobriu que a gente não, Padre? Nunca vi ninguém melhorar assim tão rápido...
O que tinha lá dentro, hein? Eu te ajudei, acho que agora cê podia me ajudar
também, né...
O Padre foi
ficando branco, cada vez mais branco... Não conseguia falar. Gaguejou muito,
saiu correndo da cozinha e sentou-se em sua mesa, solitário. Mas isso não
adiantou de nada, só fez aumentar a curiosidade de Alberto. Este, num outro fim
de tarde, pressionou muito o Padre para fazê-lo contar o que sabia. Disse que contaria
para todos do feito se ele não liberasse a fórmula mágica.
Tudo bem, eu falo! Calma, Calma... Você coloca leite de magnésia, uma
pétala de rosa, duas gotas de leite...
E assim foi o
Padre abrindo o jogo com o Alberto.
Foi então que
deu-se o caso.
O filho de
Alberto começou a ter suadeiras, o corpo todo tremer... Os médicos ficaram meio
na dúvida. Mas o homem sabia o que fazer. Chamou a mulher e disse vá lá e compre tudo o que estiver nessa
lista, sem falta. A dona foi, muito curiosa do resultado. O menino bebeu o
líquido, contorceu-se na cama, urrou de dor e passou a noite vomitando. Na
manhã seguinte, estava ótimo. Mas nisso é óbvio que a mulher de Alberto
(doravante chamada Alberta para facilitar a nomenclatura) quis saber da
fórmula. E Alberto contou.
Foi então que
deu-se o caso.
A prima de Alberta,
que se chamava Maria, era uma mulher muito rica da cidade de São Paulo. Teve
problemas sérios de bulimia, era anoréxica e não sabia bem como lidar com tudo
isso. A prima, apesar de afastada já há anos de Alberta, quis revê-la em seu
momento difícil. Chamou a prima em casa, deu-lhe muitos presentes e disse que
precisava de ajuda naquele momento difícil. Alberta já sabia muito bem o que
fazer. Passou no supermercado, comprou os itens de sua lista, colocou a
proporção certa e deu o frasco à sua prima, prometendo resultado.
Maria bebeu o
frasco num só gole. Suou muito pela noite, teve diarreia por dois dias
inteiros. Mas logo melhorou. Eis que o médico de Maria viu o frasco vazio ao
lado da cama. Eu não receitei nada disso,
reclamou o indignado. Mas Maria, de primeira, não quis explicar. Então o
médico, que se chamva João, ameaçou contar à mídia os problemas de Maria com a
cocaína. Maria chorou por um momento, mas logo entregou a fórmula secreta para
o médico.
João comprou
os ingredientes em grande quantidade. Tinha-os em seu escritório, mas cobrava
caríssimo para uma consulta que chamava de “especial” e somente nessa consulta
liberava um frasco do segredo. Muitos famosos começaram a comparecer no
consultório de João.
Foi então que
deu-se o caso.
Um traficante
muito rico do Rio de Janeiro estava com problemas muito sérios. Tinha crises de
pânico, sentia-se enjoado o dia inteiro, não sabia mais como se medicar. Um dos
famosos tratados por João, o médico de Maria prima de Alberta mulher de Alberto
amigo do Padre, era também viciado em drogas e comprava-as com o traficante do
Rio. Este tinha a alcunha de Torto. Esse tal Torto ficou sabendo do seu cliente
que um famoso médico de São Paulo miguelava uma fórmula secreta em seu consultório
e cobrava caríssimo pela iguaria.
Lá se foi o
traficante, fazendo de torto e direito, tirar satisfação com o João. Numa
noite, logo após a última consulta, João foi surpreendido pelo Torto. Este
entrou logo atirando na sua perna Me
passa logo aquela merda de remédio que cê regula pros pobre, mas libera pros
rico! João, que nunca nem sequer tinha visto uma arma em sua vida, liberou
logo os remédios.
O Torto tomou
um frasco de um gole só. Teve dores de cabeça e inchaço nas mãos. Mas logo
estava melhor. Ameaçou mais uma vez o médico e conseguiu a fórmula do poderoso
líquido.
Foi então que
deu-se o caso.
Júlio, diretor
geral de uma grande empresa farmacêutica, ficara sabendo que havia no mercado
um novo líquido que já vinha sendo inclusive intitulado de “O elixir da vida”
devido à performance singular do remédio. Contatos. Sim, a vida é feita de
contatos. Então Júlio, que tinha o telefone do Torto já no seu speed dial ligou, perguntando Ei, Torto, que bagulho é esse novo que
lançaram agora? Onde foi que tu achou essa parada? O traficante responde Achei foi a caixa de Pandora. Vou soltar o
diabo na terra. Mas posso te vender por um preço bom. Negócio vai, negócio
vem e o preço foi altíssimo. Quase uma ilha inteira perdida na costa
brasileira. Mas o valor tinha que ser pago.
Júlio foi logo
enviando seu produto para os laboratórios. Eles testaram em ratos, macacos,
cães, cães farejadores, macacos de circo, gaivotas, pelicanos e tubarões. O
efeito foi positivo. Obviamente cada animal tinha uma reação inicial diversa,
mas logo eles melhoravam. Alguns deles morreram, mas era questão de afinidade
biológica e mero desvio da média. Nada com que se preocupar. A coisa já havia
sido testada na prática e ninguém havia morrido. Pra que gastar, então, mais
dinheiro com testes? Só para maquiar o elixir, a farmacêutica trocou a
coloração de rosa para azul.
Foi então que,
certo dia, o Padre deparou-se com um comercial muito curioso na televisão. Um
homem muito sério e poderoso, usando terno e gravata, chamado Júlio bradava ao
mundo todo a descoberta do remédio que revolucionaria a história da humanidade.
Anos de anos de prática médica e ninguém sabia o significado exato de seu
remédio. Era a cura para a a AIDS, para o câncer, para a elefantíase, para a
vida. O Padre ficou pálido. Levantou-se correndo e foi direto para a sala do Alberto.
Alberto me escuta! Lembra daquele frasco que eu te pedi pra pegar pra
mim quando eu tava em casa sofrendo?
Ahnm... Lembro sim, Padre... Ô, cara, mas por que isso agora?
Cê contou pra alguém dele???
Não, claro que não...
Ufa! Então tudo bem... Deixa eu te falar a verdade, então. Sabe aquela
fórmula que eu te falei? Era tudo mentira, invenção da minha cabeça. Eu só não
queria contar pra você nem pra ninugém que naquela época eu tinha mania de
misturar um pouco de água sanitária com água normal e beber sempre no mesmo
horário todo dia... Te contei daquela fórmula maluca só pra te desviar do
óbvio... Mas ainda bem que você não contou pra ninguém, né? Vai saber o que
aquilo faria...
Caio Mello
29/03/2012