sábado, 3 de março de 2012

Decreto real


Decreta o rei o fim de tudo.

Não haverá mais pães de queijo
para se comer às pressas ao cruzar a avenida.
Não haverá mais o chá das quatro,
nem o bule nem a chávena.

Não se pode mais dizer obrigado,
nem por favor, nem por obséquio.
Nem mesmo se for com hora marcada.

O juros não mais existem.
A usura nunca foi mais pecado do que é hoje.
O dinheiro nem papel pode ser.

Como atitude posterior,
não haverá nem sequer as horas para serem marcadas.
Os dias, os meses, os anos...
O transcorrer do tempo não pode ser mais mensurado.
Quebrem-se todas as ampulhetas.

Do céu e do inferno não se fala mais.
Somos carne tal qual o é um coelho
ou um antílope ou um paquiderme.

Não se pode mais usar roupa.
Lã, algodão, seda...
Pele de animal está na lista
das coisas mais proibidas.

As padarias devem ser fechadas.
Toda a massa de pão restante
deve ser entregue aos gatos e aos ratos
para que devorem qualquer
traço que ainda sobre do estado da arte.

A própria arte também há de não existir mais.
Livros serão queimados em praça pública,
filmes serão deletados e destruídos.
Quem for encontrado com instrumentos musicais em casa,
submeter-se-á a um processo de aniquilamento mental.

Não se deve mais pensar com veemência.
O respirar deve ser mantido com atenção.
A deglutição também não pode ser esquecida.
Mas o sexo é supérfluo.
(hoje há fertilização por outros métodos)

O nascer do sol não deve mais se chamar
nascer do sol. O sol sempre nasceu desde que o mundo é mundo
e não é a falta de uma simples palavra que vai
impedi-lo de continuar.
O nascer do sol deve ser contemplado somente
e qualquer suspiro em excesso será punido.

Os meios de comunicação serão todos desativados.
Nada de celulares, internet, e-mails...
O desligamento será conduzido pelo fim do acesso
à energia elétrica.

Não haverá mais energia.
Quem for encontra com qualquer pilha restante
dos tempos antigos
também será condenado.

Não devem mais ser consultadas as
enciclopédias. Mesmo porque
tal vocábulo possui cunho vernáculo
descabido. É exagero.

Não será banido o amor
porque isso seria impossível.
Será banida, todavida,
a palavra “amor”.
Amar será a simplicidade
e a cumplicidade de duas pessoas
introduzidas na vida cotidiana.
Dizer “eu te amo” fica proibido.

Também está proibido o casamento.
As intituições de estabilidade social só
serão mantidas se assim desejarem ambas as partes.
Se o homem e a mulher, ou o homem e o homem,
ou a mulher e a mulher decidirem manter exclusividade entre si,
fica garantido esse direito pelo rei.
A trangressão será punida com a morte.

Não serão permitidos mais enterros.
O ocaso existencial deve ser encarado como a chuva,
como o vento fresco da manhã,
como o orvalho.
Morrer significa apenas mais um passo.

Devem ser mantidos apenas os primeiros nomes.
Sobrenomes são considerados supérfluos.
Indivíduos manterão relações de parentesco
através da proximidade e da espontaneidade.
O sentimento de amor, ainda que não expresso com tal palavra,
deverá ser facilmente identificado para que se forme um parentesco.

Os jardins serão mantidos.
A beleza das plantas e dos animais
não pode ser dispensada.

O raciocínio será diluído.
O que sobrar de todos será
o âmago do que nos fez homens.
Fica proibida qualquer posterior tentativa de explicação
da humanidade.
Ser é fato incontestável.

Assim dita e promulga o rei.
Publicação no Diário Real em 03 de Março de 2012.
Ditante diligente Caio Torres Ferraz de Mello.
CUMPRA-SE.

Nenhum comentário:

Postar um comentário