Eu estava à
procura de respostas. O caos da vida interessava-me. O ato de viver na urbe,
assim tão depressa, não era capaz de sufocar minha natural tendência ao
infinito. Eram, talvez, poucos segundos diários de abstração. Porém, para além
daquele conteúdo mínimo, eu não podia ser mais objetivo. Não conseguia. Minha
carne me impossibilitava. Minha própria natureza buscava mais respostas.
Então,
onde buscar respostas? Nos buracos do mundo? Na falta de razão? Numa estante de
livros? Num caminhão de lixo? Talvez as perguntas fossem um bom começo. O meio
para atingir meu objetivo veio de um modo muito mais simples do que eu
acreditei que seria. Choco-me com a lembrança.
Uma porta.
Encontrei-a
no final do corredor da minha casa. Um corredor comprido, com vários cômodos e
tapete vermelho. Nas paredes, algumas fotos de minha infância. Aquela com mais
sorrisos, a outra um tanto mais séria.
Era
uma porta, de madeira, de fato. Não era pintada, não tinha detalhes rebuscados
e sua maçaneta era de um tom cinza fosco. Abri-a. Eu agia naturalmente. Podia
sentir o seu fecho como o bater de um coração. Era um fecho complexo, de vários
pinos e proas. Segurei suavemente sua maçaneta. Girei-a. Estava aberta!
Entrei
no cômodo. Pequeno, mas com um pé direito alto. Paredes de pedra. Uma janela
bem grande, fechada, com vista para um vasto bosque. Não havia muitos móveis.
No centro da sala, havia um divã. Deitado, encarava-me o rei.
Olá, Caio. Como está?
Bom dia, Vossa Excelência.
Pode me chamar de Rei.
Bom... Rei, eu estou procurando respostas na vida. Sabe... Eu descobri
que tenho uma forte tendência às manhãs de sol. O mar, a areia, as praias... E
os sorrisos das crianças também. Os paquidermes admirados na África por
sabedoria natural.
Eu entendo sua vida.
Consigo ver sua tela.
Também já vejo a partida:
Precisa de um barco a vela.
Pois bem, ó Rei, se é de seu mistério e de sua incongruência
fornecer-me um barco a vela, aceito-o de bom grado.
Caio, faça bom proveito.
Farei, ó Rei.
Deu-me
o Rei seu melhor barco a vela. Era humilde, franzino, pintado de branco com
laterais azul. Sentei no barco assim que pude. Comecei a atravessar o mar. Eu
procurava saber dos ventos, mas não sabia que rumo tomar. Procurava sentir as
distâncias, vivenciar os cálculos, refazer as minhas vontades. Mas, mesmo
assim, não sabia para onde ia... Provimentos tinha de monte: muita comida e
muita água. Além disso, algumas árvores brotavam em alto mar. Eu podia amarrar
o barco a elas e parar para comer frutas.
Depois
de três meses, três dias, três horas e três minutos no barco, avistei uma
pequena senhora sentada num pequeníssimo banco de areia em alto mar. Encostei
para conversar:
Olá, senhora.
Menino, menino! Toma cuidado, menino! Teu barco é franzino! E o mar é
bravio! É bem mais do que qualquer rio! Cuidado! Vai acabar navegando para o
lugar errado!
Calma, senhora. Eu sei para onde estou indo.
Sabe mesmo? Tem certeza? Você está perdido. E quem vaga muito é
vagabundo. Você está no umbigo do mundo!
No mesmo instante
em que ela falou Umbigo do Mundo, houve
uma mudança no fluxo das águas. Descobri que, na verdade, a velha sentada num
banco de areia era somente o nariz de uma baleia gigante que logo emergiu. Ela
encarou-me por um minuto e meio. Depois, mergulhou. Tive tempo ainda de ver seu
vulto sumindo nas profundezas do mar.
Segui
ainda mais uma meia hora no mesmo sentido. Encontrei, enfim o umbigo do mundo.
Um redemoinho gigantesco, sem fim, que muito parecia com uma descarga. A água
convergia toda para um só centro. Meu pequeno barco não poderia fazer qualquer
frente àquela força colossal. Eu lutei contra. Demais. Sem o menor sucesso.
Fui
arrastado para o leito do oceano. Lá debaixo, o mar fazia forma de funil. Eu
podia ver o sol bem em cima, no horizonte. O chão abriu e eu bati minha cabeça.
Quando
acordei, estava em uma gruta enorme. Fazia muito calor lá dentro. Um monstro
enorme, na forma de um cachorro, correu em minha direção. Antes que me
atingisse, transformou-se num homem. Olhos de fogo, dentes de besta. Terno e
gravata.
Olá, Caio!
Belzebu.
Tinhoso, Cão, Coisa-ruim, Carudo... Me chama como quiser. O que é que
cê veio fazer aqui? Fica me enchendo a paciência. Odeio quando gente viva vem
pra cá. É uma lambança, uma encheção de saco depois ficar prestando contas pra
lá em cima. Eles ficam me pergutando “E aí, o que aquele cara foi fazer no
Inferno? Seu Diabo maldito, para de ficar caçando alma viva”. Bla bla bla
bla... Eu não te quero aqui, entendeu?
Entendi.
Sabe o pior? O pior é que eu nem posso te mandar pro inferno. Cê já tá
no inferno! Viu que ironia sem a menor graça? Seu maldito.
Não foi culpa minha. Eu desci pelo umbigo do mundo.
É... O Umbigo é um lugar bem acidentado, não é sempre que a gente cai
onde a gente queria através dele. Uma vez eu queria dar uma passadinha no
Purgatório e aquela porcaria me mandou pra a Nova Zelândia. O que é quase a
mesma coisa, né... Enfim, você tem que sair daqui. Ponto.
E como eu faço pra sair?
Espera um pouco... Eu já sei por que cê tava querendo vir aqui... Cê é
aquele fulano cheio de perguntas, não é? Cheio de “eu sou foda, eu quero saber,
o mundo é uma merda”. Cara, na real, cê é imbecil. Vai arrumar um emprego,
larga essa merda de ficar brisando. Ninguém aguenta mais essa bosta! Que saco!
E cê sabe que o caminho pro Inferno tá cheio de boas intenções. Cê fica nessa
de “Eu vou mudar o mundo”. Dá mais uns oitenta anos e cê vai voltar pra cá. E
eu to te falando isso na moral. Porque o que eu mais odeio nesse mundo é poeta
no inferno. Os caras chegam aqui cheios de versinhos achando que podem ficar
floreando essa merda. A gente queima eles até a ponta dos dedos doer. Assim,
eles param de escrever. Depois, cortamos a língua fora e eles param de falar.
De vez em quando a gente manda uns de volta pra terra porque a língua cresce de
novo. E isso é um saco. Que deus não saiba disso! Eu vou te dar o que cê
procura porque eu sei que a sua resposta não vai ser tão boa assim. Cê vai
ficar tão chocado, mas tão chocado, que nunca mais vai querer escrever uma
letra na sua vida. É o seguinte: eu vou te dar essa corda. Ela é especial. Cê
vai jogar ela na Lua numa noite de lua cheia. Depois disso, você vai saber o
que fazer. Só não pode ficar lá em cima depois do sol nascer, senão você torra
e morre, entendeu?
Entendi. Obrigado.
Não precisa se obrigar. Um dia sua alma vai ser minha por obrigação.
Todos os poetas nasceram perdidos. Todos!
Eu
peguei a corda que Belzebu me deu. Escalei um buraco enorme para sair do
Inferno. Rezei muito naquela noite, pedindo para nunca mais voltar para lá. O
cheiro de enxofre era terrível. Era lua nova. Eu sentei-me na grama e fiquei
encarando o céu por vários dias. As estrelas me alegravam todas as noites.
Veio
a lua cheia. Já na primeira noite do ciclo, atirei a corda para cima. Perfeito!
A Lua estava presa. Comecei a subir.
Eu subia
subia
subia
ubias
biasu
iasub
asubi
subia...
Infelizmente,
já no meio do caminho, o sol começou a nascer.Eu não tinha muito o que fazer.
Se eu me jogasse lá de cima, morreria na certa. Se eu continuasse na minha
subida, não teria tempo de chegar à Lua antes que o sol nascesse para ficar no
lado escuro da Lua. Não tive dúvida. Enrolei minha mão numa camiseta, fechei os
olhos, esperei o sol começar a nascer. Enquanto ele ainda estava laranja e
fresco, agarrei-o e guardei-o em meu bolso. Era quente, mas eu podia aguentar.
Chegando
na superfícia lunar, encontrei João, O Brasileiro que queria ir à Lua. Ele não
era um homem de muita prosa. Ele olhou para mim e disse:
Caio, de verdade, não faz isso. Não vale a pena você levar algumas
discussões até o fim, sabe? Tem umas coisas na vida que a gente não precisa
saber. Tanta gente por aí segue sua vida sem se perguntar. E você faz perguntas
demais! Quem muito quer, pouco ganha! Toma cuidado com os seus desejos. Eu acho
que, um dia, você ainda vai acabar ficando louco com tudo isso. Essas
perguntas, essa ânsia em que você vive... Você vai encontrar coisas que não
deseja.
João, por favor, me ajuda. Eu só quero algumas respostas.
João me levou até
a sua casa. Lá, descobri que ele havia construído um canhão gigantesco.
Eu construí essa canhão aqui para conseguir voltar pra Terra caso
sentisse saudades. Mas, até hoje, não tive vontade nenhuma de reecontrar
ninguém. Sou um cara muito cético com as coisas. Não acho que as pessoas valham
a pena. Por isso, sou feliz aqui na Lua. Ela me ama como jamais alguém me amou.
E esse canhão é forte o suficiente pra te mandar para além da Terra: para o
centro da Terra.
Mas eu já fui lá pelo Umbigo do Mundo e encontrei Belzebu...
Não, Caio! O Umbigo da Mundo pode te levar pra diversos lugares. Além
do mais, o inferno não fica no centro do mundo, fica no Texas!
Eu
coloquei um capacete e entrei no canhão. João me deu um gole de pinga para
sentir menos dor com o impacto. Ele contou... Três, dois, um... Senti uma força
gigantesca em cima de mim, senti que eu mesmo saía do meu corpo numa velocidade
jamais experimentada por ninguém. O capacete era muito forte. Bati a cabeça no
chão quando entrei no solo. Desmaiei.
Acordei
num ambiente escuro. Achei que não era um cômodo, pois sentia uma brisa
passando. Era uma brisa característica de espaços muito abertos. A única coisa
que iluminava o local era uma luminária pendurada por um cabo que se perdia na
escuridão. Logo abaixo da luminária, uma mesa rústica de madeira. Uma cadeira
de ferro de cada lado da mesa. Cadeiras sem braço. Um homem estava sentado na
mesa. Eu não podia ver seu rosto porque estava acobertado pela sombra gerada
pela luz da luminária incidindo sobre sua cabeça. Decidi interpelá-lo:
Deus, é você?
Não, Caio, não sou Deus. Longe disso. Ele merece muito mais respeito.
Quem é você, então?
Eu sou o Bio.
Fiquei
sem reação.
Mentira.
Verdade.
Mas eu sou o Bio.
Qual é seu nome, mesmo?
Caio.
Então, como você pode ser o Bio e o Caio ao mesmo tempo?
Mas Bio é o meu apelido...
Eu posso te apelidar de qualquer coisa. Posso te chamar de Cafú agora e
você vai passar a ser o Cafú. Mas o Bio sou eu.
Não, não é possível! Eu andei tudo isso para encontrar... O Bio?? É
sério?
Quem você esperava, a Madonna? Pensa bem, cara. Quantas pessoas têm a
oportunidade de conversar com si mesmas desse jeito? Isso aqui nunca mais vai
acontecer na sua vida...
Nossa, mas sei lá... Tinha tantas coisas que eu queria perguntar para
tanta gente por aí no mundo... Tantos enigmas que eu criei dentro de minha
mente! Um mar de insanidades que tentei desvendar... Eu fui cobrindo o mundo de
questões, listei-as e me preparei tanto tempo para essa viagem. Que coisa!
Para de enrolar, Caio. E tem mais um detalhe que eu preciso te dizer:
você só tem direito a me fazer uma pergunta.
Como assim, Bio?!
E você tem só um minuto para decidir qual vai ser a sua pergunta.
Começando... Agora! Escolhe logo!
Calma, espera, por favor! Por favor!
Congelei.
Trinta segundos... Quinze. Dez! Vai, agora! Qual a pergunta?!
Calma!
AGORA!
Tá, bem, Bio, calma! Lá vai a pergunta: o que você acha do Caio?
Ele parece ser um cara bastante feliz.
Ótimo.
Agora você precisa ir embora. Anda naquela direção.
Eu
andei na direção indicada pelo Bio. Envoltei-me na escuridão mais perpétua que
já vivenciei. Busquei no escuro uma certeza. Encontrei uma maçaneta. Abri-a. Eu
estava no corredor da minha sala. Fechei a porta e fui para a cozinha. Eu
estava com fome.
Caio Mello
19/08/2012