quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Para se viver


Seus olhos já estão cansados,
cegos de tanto ver,
ressecados pelo tempo.
E suas vistas já não veem mais o mundo.
O mundo que encara suas carnes.
As suas pernas já não andam,
movem-se fracamente
numa vã tentativa de reproduzir um passo.
Depois do caminhar,
não há trilha que se escolha só.
Os braços já não sustentam mais
o peso das crianças.
Não aguentam mais o produto, a fúria.
Os pulsos não têm mais a mesma fibra.
Os dentes perderam o prumo
e a alvura.
As mãos fraquejam,
os dedos dóem,
as unhas crescem,
as juntas ardem.
Os calos destacam-se.
A xícara de café treme ao levantar-se da mesa.
A pele do corpo despenca,
desprende-se da carcaça e perde sua elasticidade.
As pálpebras teimam
em ficar semiabertas.
Nunca o mundo será visto do mesmo jeito.
Não vê as mesmas cores,
não sente como sentia,
não vive como vivia.
As pessoas que amava deixaram sua vida.
Algumas dessas pessoas morreram.
Outras vivem na carne, mas morrem na alma.
Uma ou duas decidiram sair
deliberadamente da sua vida
e contra isso nem o vento nem o destino têm força.
Os ouvidos perderam algumas notas.
Aquele agudo magnífico na orquestra,
o grave do baixo...
Os ruídos permanecem abafados no mundo interior.
Os pulmões já não aguentam o mesmo ar,
ardem por dentro e cospem por fora.
O tempo, implacável, nem sequer respeita
o suspiro do casal apaixonado.

Eis que seu corpo morto decreta-se vivo.
E você está morto.
Afinal, a morte não põe medo a quem está morto.
Enche de falta de vontade quem está ainda no mundo.
Está falho, ruidoso. Maculado.
Descrente de um dia feliz.
Impaciente, inconstante, inválido.
Um incapaz no auge de sua capacidade.
Os verbos que você construiu não foram ouvidos.
Os dias gastos foram apagados pelo cotidiano.
O mundo faminto busca, com suas garras de leão,
mais um ser que se deixe fisgar na Terra.
Sem apocalipse, nem apoteose, nem funeral,
enterra-se mais um corpo num fim de tarde.
Este, foi. Um dia era. Amanhã finalmente será.
E chão há de comer um último prato.
O último almoço, a hora do chá,
o brunch mal digerido de um dia de negócios.
Os lábios foram costurados.
Sim, amarrados por dentro.
E o defunto sorri.
O corpo, decrépito, sorri com os lábios,
mas não com os dentes.
E os que ainda vivem amarram bem a boca
para que o morto não conte para os mortos
como os vivos morrem e os mortos vivem.
Aproveitam anos e anos e anos de puro tédio, ócio,
e refletem sobre a vida.
Cometam sobre as estrelas, sobre os dias, sobre as noites.
Comentam sobre a falta de ar.
A pressão obrigatória.
O sentimento de perda mal construído.
O bater do relógio ao avesso,
afinal, na morte,
ficamos cada dia ainda mais jovens.
Em vida, quiséramos ser alguém.
Só esquecemos que, primeiro, precisamos ser.

Caio Mello
08/08/2012



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