Eu
precisava reencontrar dentro de mim algo que eu pudesse chamar de certeza. Algo
que eu pudesse chamar de verdade. De todos os expurgos que já construíra, este
seria o maior. Naquele tempo, faltavam-me verdades sobre o mundo. Talvez, de
fato, sempre faltarão uma série de verdades sobre o mundo. Mas eu queria saber
sobre o meu mundo. A introspecção através da busca. Eu queria me perder em mim
mesmo, nessa massa líquida a que chamam de consciência.
Peguei
meu carro e fui para a minha casa na praia. Cheguei lá pelo meio-dia numa
semana como qualquer outra. Era uma praia distante, deserta. Como era um dia
útil, não havia ninguém na região. Sempre gostei muito de praias isoladas. Em
certos momentos, o silêncio é mais do que necessário. O sol estava forte.
Preparei um bom almoço para mim mesmo. Comi tranquilamente, em porções pequenas
e numa velocidade razoável. Era preciso fazer as coisas naturalmente. Não muito
rápido, não muito devagar. Nada de aflições. Eu precisava me ver em abstrato.
Depois do almoço, fui nadar no mar. Sozinho. A água da tarde estava quente,
muito boa para se relaxar. A areia entrava-me entre os dedos do pé, como
pequenas bolas de massagem. Pássaros voavam, borrando o sol por instantes.
No
fim do dia, voltei para casa. O corpo estava cansado, mas não estafado. Eu
precisava estar em equilíbrio. Tomei um banho rápido, fui para cama e dormi.
Abri os olhos. O quarto estava iluminado
apenas por uma vela. Estava escuro, provavelmente de noite. Olhei no meu
relógio. Meia-noite. Olhei novamente no relógio. Percebi que ele havia parado,
provavelmente acabara sua bateria. Permaneci na cama apenas por mais dois
minutos. Não poderia ficar tempo demais.
Abri a porta do meu
quarto. Aquela não era minha sala, definitivamente. Eu estava em um lugar
diferente. A lua cheia cobria um campo enorme. Talvez uma pradaria, não sei. No
horizonte, alguns vaqueiros conduziam suas vacas montados a cavalo. O cheiro de
dama-da-noite encheu-me a mente. Meu pé direito formigava, recém-levantado do
torpor do sono.
Percebi que um velho
sentava-se na porta de meu quarto. Por sinal, o meu cômodo era uma casa
independente largada no meio da pradaria.
‘Garoto, boa noite. Que bom que você acordou. Fazia um tempo que a gente
precisava se conversar.’
‘Quem é você? Onde eu estou?’
‘Provavelmente você espera que eu diga alguma coisa bem típica como “você
está me fazendo as perguntas erradas, faça-me as perguntas certas”, mas não é
nada disso que eu vou te falar. Na verdade, não faz a menor diferença falar ou
não quem eu sou. Aliás, se sou um tipo de deturpação da sua própria
personalidade ou se sou um ser humano completamente independente também não vai
fazer a menor diferença. O que importa é que, nesse momento, eu sou. Em
abstrato ou em concreto, ou de modo reflexo. Mas eu sou. E sobre onde você
está: você está onde queria estar. Montou em sua mente um lugar distante e sóbrio
o suficiente para pensar em sua vida.’
‘Eu não quero pensar em nada.’
‘Não quer? Então acorda!’
Abri meus olhos.
Sete horas e três minutos no relógio. Levantei-me. Preparei um café-da-manhã.
Passei três horas andando pela praia. Depois voltei para casa e li um trecho de
um livro. Almocei rapidamente. Passei a tarde toda no mar. Nadei para além da
arrebentação e voltei antes do sol se por. Jantei apenas algumas frutas. Dormi
novamente.
Abri os olhos. Duas e meia da manhã. O
relógio ainda funcionava, eu podia ouvi-lo ruminando o tempo no seu bater de
pinos. Estava escuro, mas eu consegui ver as estrelas da janela do meu quarto.
Podia ouvir as ondas do mar. Saí para ver o que acontecia. Nada. Absolutamente
nada. Nem aquele velho do dia anterior.
Se bem que o
raciocínio era muito confuso. Eu posso deveras ter visto uma pessoa andando a
um quilômetro e pouco de minha casa. Posso mesmo ter ouvido alguém cantar. Mas
é difícil delinear o momento da abstração, o líquido da realidade. Acho que
nunca vou conseguir definir ao certo coisa alguma. Melhor seria mesmo se eu
simplesmente voltasse para a cidade e aproveitasse as minhas férias de outra
forma. Que ideia absurda de se isolar do mundo para tentar me organizar.
Ninguém organiza nada. Somos todos órgãos, usados, puídos, rotos. Não somos
nada.
Lembrei-me de uma dia
na minha infância. Meu pai carregou-me em seus braços fortes e fomos juntos
para o mar. Ele tinha a pele bem queimada de sol, coleção de dias quentes
oriundos de seu serviço. Nossa vida nunca fora simples, nós sempre precisamos
de algo a mais. Sempre precisamos batalhar a cada dia por um pouco de paz.
Todos lutamos. Todos temos que lutar.
Percebi que estava
quase cochilando sentado na praia. Entrei na casa novamente. Limpei-me e dormi
quase instantaneamente.
Abri meus olhos.
Ouvi alguém mexendo nas panelas na sala. Levantei-me tranquilo, troquei-me.
Escovei bem os dentes, fiz a barba. Olhei-me no espelho por alguns instantes.
Nada novo, nada velho. O presente.
Encontrei
o velho no fogão preparando nosso café. Ele me disse:
‘Pronto, agora que você está
acordado acho mais fácil da gente se conversar. Você tinha me dito que não
queria conversar naquela noite. Agora está de dia e tudo fica mais fácil, você
não acha?’
‘Sim, eu acho. Eu estou
procurando... Na verdade, não sei muito bem o que procuro. Se você é mesmo uma
parte de minha mente, eu acho que você mesmo podia me ajudar a limpar o que eu
penso. Que tal?’
‘Você tá maluco? Quem falou que
eu sou uma parte da sua mente?’
‘Bom... Então vejamos... Eu
decidi tirar essas férias porque senti que faltava alguma coisa na minha vida. Faltava aquele sabor no fim do trago de
cachaça, você entende? Talvez a alusão à bebida seja infortuna, mas a analogia
do gosto residual é ótima. Falta aquele deslumbramento. O quotidiano ficou meio
sem graça, meio...’
‘Quotidiano demais?’
‘Isso mesmo! A gente quer ocupar
cada segundo que tem. A gente quer mostrar que o importante é racionalizar o
mundo. Queremos cobrir tudo que existe com aquela certeza de que não perderemos
nada. Nada! Mas isso é uma grande mentira, uma falácia a ser superada pelo
homem moderno. O mundo não pode ser controlado. Ele pode ser deduzido, pode ser
sentido. Pode fazer sentido. Mas não pode ser integralmente descoberto.’
‘Então isso quer dizer que você
tirou essas férias nessa casa de praia porque quer achar alguma coisa? Alguma coisa
nova?’
‘É. Talvez seja isso...’
Eu
estava relutante, mas o velho parecia ter muita certeza no que dizia. Além disso,
fazia bastante tempo que eu não tomava um café da manhã tão bom quanto o dele.
Estava tudo perfeito. Sensacional. Eu estava cansado. Decidi deitar-me na rede
que ficava perto da porta da casa. O velho foi ler na praia.
Abri os olhos. Era hora do almoço. O velho
não voltava mais da praia. Porém, uma moça muito bonita voltou para casa.
Sentou-se em meu colo e me sorriu. Estava ainda molhada, de biquini, como quem
acabou de sair do mar. Sua pele estava queimada pelo sol. Não parava de sorrir.
Olhou-me no fundo dos meus olhos e disse:
‘Sabe... Deve ser exatamente isso que você sente falta. Do amor. Amor
na sua vida, amor nos seus dias, amor nas suas tardes. Você não tem família.
Sua mãe morreu já faz tempo. Seu pai morreu no ano passado. Você é novo e
solitário. Novo. Solitário. Isso não faz bem pra ninguém. É preciso ter amor na
nossa vida, é preciso ter certeza das coisas, é preciso precisar. Precisão.
Entende?’
‘Você fala bem demais para uma menina tão bonita.’
‘Menina não, mulher. Evite trabalhar com esteriótipos. A minha beleza
tem que te atrair, não te subjugar.’
Beijou-me suave nos
lábios. Fomos tomar banho juntos. Deitamos na cama, passamos horas e horas e
horas fazendo sexo. Seu corpo era uma escultura, uma obra de arte, um desejo
reprimido. Talvez eu realmente estivesse precisando de amor. Muito amor.
Adormeci, cansado.
Abri os olhos.
Passei a mão na cama à procura de seu corpo nu. A cama. Vazia. Bateu-me um
pesar forte. Eu queria encontrá-la de novo. Não estava com fome nenhuma. Mesmo
assim, preparei-me um chá especial. Tomei, tranquilo.
Saí
da casa. Um dragão estava parado no meio da praia. Escamas lindas. Era
vermelho. De um vermelho bem forte. Maravilhoso.
‘Oi.’
Ele
me disse, simplesmente. Repondi:
‘Oi.’
‘Sabe, muitas vezes as pessoas
ficam com pesamentos muito fixistas. Ela querem ter a garantia de que pensam.
Querem saber que estão vivas. Mas o
que é ser vivo? O que é estar vivo?
Eu sou vivo? Estou vivo? Tenho vida? Sou um dragão. O quão real isso pode ser?’
‘Não há a menor chance de você
ser real.’
‘Ah, é mesmo? Então me explica
isso melhor. Só estamos eu e você nessa praia. Mais ninguém. Tudo o que você
vê, tudo o que você sente faz parte de você hoje. As coisas podem até continuar
no estado físico das coisas quando você morrer. Mas será que elas existirão de
verdade? Será que a realidade, de fato, não se limita tão somente a você mesmo?
O distante mundo do abstrato está cada vez mais próximo do mundo do concreto. Você
é a sua própria mentira. Eu tenho certeza de que sou de verdade. Por isso, sou
de verdade.’
‘Chega dessa retórica barata.
Você é uma besta mitológica.’
‘Há monstros nas peles dos
homens. Há criaturas recônditas nos meandros mais alucinantes. Há seres
duvidosos em cada um de nós. Em cada um de nós. O mundo é um grande circo. A
normalidade é só uma repetição mais recorrente. Você definitivamente deveria
respeitar mais o diferente. Não somos todos iguais, nem de perto.’
‘Você quer dar uma volta?’
‘Sim, obrigado pelo convite.’
‘Então, que tal andarmos um pouco
pela praia?’
‘Acho agradabilíssimo.’
Caio Mello
20/10/2012