sábado, 23 de outubro de 2010

Multilado Mutilado

Ele abria os braços numa convulsão de incerteza. Seu corpo doía enquanto as ilusões passavam-lhe pela mente. Era revolto ou estava revolto? O ser era subjugado por sua vontade incessante de buscar a meta-síntese de toda sua ideologia. Ele fora idealizador de suas ideias? Fora ele quem construiu seus pensamentos? Todos de pé, cantando juntos a plenos pulmões hinos calculados para levar multidões à loucura. Utilizavam-se dos sentimentos individuais para tornar uma massa em um instrumento uníssono. Gritavam, berravam, suavam juntos. Ele havia parado para pensar sobre o assunto há não muito tempo. Os debates que havia tido com seus colegas, todas aquelas discussões fervorosas travadas no calor dos diálogos teriam sido pré-modeladas? Ele fora incitado a crer incondicionalmente. E, talvez, não o percebera.
Sentia-se pouco, morto, defunto de alma plastificada no turbilhão de corpos loucos. Pensa. Mata. Culpa. Pensa. Mata. Pensa. Mata. Matáquina. Máquina. Vazio. Belicado. Sons loucos de balas rosnando ao vento da terra. Terra? Terra de quem? Terra de nós. Vários nós que acabou tendo em seu raciocínio. A chuva descia-lhe pelos olhos enquanto arfava.

Sentia falta de casa.
Mas não entendia mais o que era casa.

Todos
modos
somos
loucos
e nunca mais ser.

Ver os gráficos.
Ver os dados. Maquiados.
Veros dados. Verdados. Verdades.

E tudo parecia mais concreto ao se aproximar da totalidariedade do Governo. Este era tudo, estava em todos, via tudo. Ele falhava, ofegava. O frio fazia-lhe tremer o corpo inteiro, com medo de puxar outro suspiro dentro daquela roupa molhada. Fazer o dever. O dever de fazer concatenava-se com sua vontade de seguir batalhando. A meta-síntese! Sim! Não poderia nunca abrir mão dela. A Revolução alçaria voo em seus braços e não haveria um homem sequer que não tremesse frente ao seu ideal.
Os outros eram ruins. Não era uma questão de ponderabilidade. Governos não são ponderáveis. São objetos que, de tão complexos, não podem ser formatados em visões subjetivas. A verdade do Governo era baseada em estatísticas. E seus homens eram estáticos. Mas não podiam ser estáticos! Como assim? Uma ideologia perfeita jamais poderia condizer com a imperfeição dos homens.

Matar os homens.
Sim, todos eles!
A ideologia era perfeita,
os homens que falhavam!

A máquina governamental era inquestionável.

Livrar-se de toda a população.
Livrar-se da carne e da imperfeição.
Matá-los para salvar a nação.
Os homens, todos, insensatos são.

Enquanto digladiava com seu raciocínio imperfeito, chilreavam os arredores com vontade. Ele já não tinha vontade. Estava num estado de torpor perene, constante disparar do peito sem limites. Ser era atirar. E a bala, alçada pelas mãos do Estado, tomava vida própria e tornava-se uma mártir da Revolução. Sim! Viva o Governo! Se os homens são tão imperfeitos, ele tinha amplas possibilidades de deixar de existir sem que houvesse sérias consequências para o andamento saudável do Estado de que era súdito.

Agarrou sua arma com força.
Respirou fundo.
Levantou-se.

Gritou,
correndo em direção à
noite.

Caio Mello
21/10/2010

2 comentários:

  1. Muito bom, Bio.
    Me questionei essas mesmas coisas pelo caminho.
    E hoje cheguei nas mesmas conclusões que você.
    Geniais as descrições.
    Geniais as metáforas.
    Condizem muito com o momento.
    Lindo o texto.
    Beijos,
    Aninha Capozzi

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