sábado, 30 de outubro de 2010

Murilo e Lorena

Lorena estava sentada na mesa da sala de seu apartamento, tomando um café. Olhava para a xícara, já quase vazia, imaginando que as ondas se propogavam no líquido como os pensamentos corriam pela mente. A mesa, verde e redonda, parecia aconchegante naquele momento, servindo de apoio para um par de braços cansados depois de mais um dia de trabalho. Ela era da área de recursos humanos de uma grande empresa de automóveis. Mas, com toda certeza, não queria pensar no assunto no presente momento. Queria poder não pensar em nada.
Uma chave fez rosnar a porta. Após um leve girar de barulho de trincos, a maçaneta empurrou a madeira. Murilo entrou no ambiente, com seu corpo alto e seu olhar sério. Ele, à primeira vista, parecia estar preocupado. Mas seus passos não pareciam condizer com sua feição. Estes pareciam candenciar-se como se estivessem dotados de uma premissa calculista. Friamente calculista.
Murilo deixou o molho de chaves ao lado de sua carteira em cima da mesa da sala. A mesa dava para a cozinha em que Lorena estava, mas não havia porta separando os dois ambientes. Ele não havia dito uma palavra desde que entrara. Nem havia ela. Murilo desabotoou as mangas de sua camisa, tranquilamente dobrando-as. Seguiu para a cozinha, levantou o queixo de Lorena suavemente com seu indicador e deu-lhe um beijo breve nos lábios sujos de café.

Tudo bom com você, Lo? Tá com cara de cansada. Hoje o trabalho deve ter sido duro.

Sim, foi bem cansativo.


Murilo sentou-se em frente à moça, olhando-a nos olhos. Ela segurou a xícara de café, sorveu o conteúdo já semigelado, mantendo a vista em seu namorado que surgia por cima da cerâmica. Murilo cruzou as pernas, inclinou-se para trás e cruzou também os braços atrás da cabeça. Estava pensando se tomaria café ou não.

E você, Mu? Tá com cara de pensativo. Eu daria muito dinheiro pra saber o que se passa aí dentro. Lorena sorriu brevemente, só com o canto direito de seus lábios. Mas aí eu acho que perderia a graça, né? A diversão tá no jogo do sabe-não-sabe.

É, também acho. Mesmo assim, eu não tava pensando em nada de especial. Acho que isso estraga um pouco a brincadeira, né? Eu só tava pensando se ia tomar um café ou não. Mas aposto que eu fiz cara de quem tava pensando numa cura pra AIDS. Ou foi só o seu instinto de psicóloga aflorando nesse momento?

Pode ser. Pode ser que não. Acho que um pouco dos dois. Tipo, acho que não dá pra gente ficar diferenciando o que é do que devia ser.


Murilo parou por um instante. A conversa parecia ter se desmontado brevemente. Ele se decidiu por tomar o café. Nesse ponto, Lorena já havia terminado o café. Ele levantou-se, foi até a máquina de café, pegou a xícara que estava secando no escorredor, terminou de secá-la e serviu-se.

Lo, cadê o açúcar?

Tá aqui na mesa, amor. Vem, eu ponho pra você.


Murilo sentou-se de novo. Lorena pegou a xícara de café, trouxe-a para si. Colocou uma colher de açúcar. Ficou em dúvida. Ele não disse nada. Colocou mais um terço de colher. Depois mais meia colher.

Linda, por que você tem que servir açúcar desse jeito? Você bebe café todo santo dia. Uma hora ou outra você já devia ter aprendido quanto açúcar tem que por pro café ficar razoável.

Ai, deixa de ser chato, vai. Você e seus cálculos. Mil gráficos, mil dinâmicas de grupo para ponderar a possibilidade de um ataque terrorista no Brasil que faria a Bolsa cair mais de mil pontos.

Nossa, calma! Eu tava só falando do café.


Murilo levantou-se, piscando ligeiramente os olhos diversas vezes. Foi até a gaveta, caçou uma colher para mexer o café e voltou para a mesa. Lorena deslizou a xícara até ele. A mesa parecia ter crescido de tamanho em poucos segundos. Silêncio. O tintilar da colher batendo na xícara falava mais do que os dois juntos. Ele tomou um gole do café. O sabor fez-lhe reter as bochechas como se tivesse tendo uma contração involuntária. Lorena aprumou-se em sua cadeira, olhando-o de frente. Cerrou a face.

Nossa, aposto que você fez essa carinha só porque fui eu que pus o açúcar. Se tivesse sido você, o café estaria bom.

Deixa de doce, vai, Lo. Se fosse eu, eu teria colocado uma colher e meia como eu sempre faço todo santo dia de manhã quando a gente toma café juntos. E sempre fica o mesmo gosto. Você que nunca reparou.

Eu que nunca reparei? Eu que sempre acordo mais cedo do que você e já vou arrumando o café. Você fica na cama se remoende sei lá do que.

Ah, esse papo de novo? Você vai me desmerecer de novo? Semana passada foi a mesma coisa, é o meu trabalho que não presta, é eu que não sei cuidar dos meus sentimentos, é eu que só penso no trabalho, é que não consigo dividir o que é amor e o que é necessidade.

Amor, sério, deixa pra lá. Não quero entrar nesse assunto de novo, eu tava meio magoada naquela semana.

Magoada? Você tava na TPM, isso sim! Meus amigos só quando bebem conseguem falar as coisas na minha cara. Você não tá muito longe deles, não. Só que não precisa de bebida pra soltar o verbo, precisa de uma dose de hormônios alucinados pra começar, né?

Murilo, se controla, sério. Cê tá me tratando como se eu fosse um monte de carne, como se eu fosse um animal que não sabe se balizar a não ser através de instintos. Vamos parar por aqui.

Não, sério, agora já começou. Tem que ter um fim. Cê não pode só ficar escondendo, deixando as coisas por debaixo do pano e dizer que tá tudo bem. Não tá tudo bem, cê sabe disso! Saco.

Você teve um dia tenso no trabalho, ralou o carro essa semana, tá com a cabeça cheia de coisas. Olha o jeito como cê me tratou só por causa de um café. Talvez isso tenha a ver com a ideia que seu pai-

Para com isso, Lorena! É isso que me irrita em você, caramba! Nossa, que desespero! Olha só pra você mesma. Tudo o que eu faço faz parte de uma grande análise psicológica que cê faz de mim. Sabe como eu me sinto? Sabe? Parece que eu sou um rato de laboratório, girando em círculos para passar sede e fome e você poder me dar comida só quando estiver escrito na tabela “como os ratos reagem quando estão com fome”.

Ah, tá! E depois sou eu quem desmerece o trabalho dos outros! Murilo, cê é um bruto, mesmo. sabia?! Tudo que eu estudo em psicologia, tudo que eu monto de teorias, de análises, comentando como lidar com o meu próprio relacionamento sem ter que necessariamente passar por um crivo formal, nada, nada disso faz sentido pra você? Acho que não, né. Aliás, acho que você nem sequer presta atenção no que eu falo. Deve passar na sua cabecinha machista que isso é coisa de mulher, que não serve pra nada.

Aí você tá exagerando, sério. Eu não sou machista, cê sabe disso. E não me venha com aquela análise que “toda nossa sociedade é machista”. Cê que tá me chamando de bronco.

Bronco, que seja! Porra, Murilo. Tudo pra você é engavetadinho, tudo quadradinho, cabendinho em caixinhas imaginárias. Até quando você mastiga você é metódico, caramba! Nhac, nhac, nhac, engole. Sempre o mesmo barulho. Sempre! Corta em pedaços iguais, analisa os pedaços, e depois come. Que saco! A vida parece óbvia perto de você.

E a sua obviedade é não fazer sentido nunca, Lorena. Meu, tô ficando cada vez mais sem paciência com você, sério. Mas essa loucura vem de família, sabe? Se eu tivesse conhecido seu pai antes de você, a gente não taria junto agora. Já pensou? Aquele ortopedista alucinado, só ficava brisando a ver navios. Porra, que saco.

Agora vai meter o pau na minha família? Pois saiba que a casa em que cê dorme foram eles que ajudaram a custear! E o seu pai? Que que aquele pé-rapado perdido no mundo deu pra gente até agora? Um abraço e um olho torto pro meu lado.

Quer saber?! Eu vou embora. Não quero ficar nisso a noite toda. Amanhã a gente se fala com mais calma. Vou pra casa do velho pá-rapado que cê tá tanto xingando, nessas horas só ele mesmo que me entende. Merda.

Ah, agora vai fugir, é? Cê reclama que eu não ponho o assunto, reclama que eu não quero discutir nada e agora vai embora? Embora? Cê é um cagão, isso sim! Não tem coragem de me aguentar por uma noite inteira depois de brigar comigo. Fujão. Bunda-mole. Se você ainda for o homem pelo qual eu me apaixonei, você fica. Não posso acreditar que cê tá virando um covarde.

Que covarde, que nada. Deixa de ser doente. Miolo-mole. Cê é muito casca-grossa, quer resolver tudo na hora. A gente tem que sentar e pensar com calma, saco. Não adianta sair por aí dando patada. Não vou deixar que essa bosta descambe por causa de uma porra de um café. Eu to saindo.

Vai, bundão, vai mesmo. Vai. Amanhã a gente vai ver quem vai me ligar depois de uma noite de sono muito mal dormida. Brigada, sério mesmo. Cê acabou de arruinar minha semana. O trabalho já tá foda e cê ainda me vem com essa agora. Haja paciência, viu. Estúpido.

Tchau.


Murilo agarrou apressadamente seu molho de chaves e sua carteira. Olhou para a mesa. Os olhos de Lorena estavam vermelhos e ela estava ofegante. Mas não dizia nada. Ele olhou para a xícara de café na mesa, completamente cheia. Correu até a cozinha, agarrou a xícara, virou o café na pia e lavou-a apressadamente. Olhou fundo nos olhos de Lorena enquanto soltava um longo suspiro. Duro. Era duro como rocha. Areia eram os fatos. Abriu a porta e foi embora sem dizer nada.
Lorena levantou, arrumou as mangas da camisa. Tremia por dentro. Até suas pernas tremiam. Mas, por fora, parecia um bastião da liberdade. Tentou servir-se de mais café, mas suas mãs tremiam demais. E também havia o açúcar. Ele encarava-a taciturnamente. Ela guardou-o no armário num movimente abrupto. Sentou-se deixando lágrimas verterem sobre sua face, mas impedindo que os soluços dominassem o seu corpo.

Caio Mello
30/10/2010

2 comentários:

  1. Caríssimo Doutor Caio Mello,
    Ontem, um psicopata entrou em meu apartamento. Suas intenções: roubar-me tudo o que fosse valioso. Acontece que não tenho nada. Apenas um maço de cigarros e uma estante lotada de uísques das mais variadas marcas.
    Então, decidi conversar com ele. Bebemos e fumamos por toda a noite. E quando menos percebi, eu tinha acabado de conseguir um novo amigo. Sim!
    Pois se formos parar para pensar, de psicopata, todos temos um pouco.
    Sincieramente,
    Ramones Del Pacheco Della Manchita Messi.

    ResponderExcluir
  2. Caríssimo Doutor/Artista/Escritor-prosador-poeta Caio Ferraz de Mello,
    És tu, meu grande amigo! Por isso digo-te, que após esse longo hiato -em que fui descobrir as drogas, ainda recônditas, porém notórias, de um pacato vilarejo húngaro (desbravado pelo grande explorador inglês Sir Richard Francis Burton) denominado Kocs- retorno finalmente a esse site, no entanto, agora, com a minha alma revigorada por alcançar o Geist. Bebamos em memória a Hegel! Viva a dialética! Fumemos!
    Sincieramente,
    Ramones Del Pacheco Della Manchita Messi.
    Ps: Peço-te desculpas, se me excedi em meu relato. É pedir muito ao um pobre espírito iluminado, que se contenha perante um descobrimento de êxtase metafísico.

    ResponderExcluir