quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Mundo mariado

Maria não queria muita coisa, afinal, ser criança não era muito difícil. O mundo ainda era uma gigantesca caixa de brinquedo, com nuvens brancas e fofas. A garota corria até suas pernas doerem pelos vastos caminhos que encontrava pela frente. Via o horizonte e queria prendê-lo entre seus dedos, queria entortar a vida com a palma da sua mão. Maria via o mundo com olhos jovens, cheios de cor e vida, sem ainda entender plenamente os meandros que se constróem com o tempo. Tempo? Tempo nessa idade era um empecilho. Adultos não tinham tempo para ela. A comida não chegava a tempo. Diziam que ela ainda tinha muito tempo. Tempo, tempo, tempo. Para que?
O que irritava Maria era o chão seco. Duro. Por que o chão tinha de ser tão seco? E ele era... Como ela poderia explicar? O chão era de pedrinhas bem pequenas que não se encaixavam direito. Vários buracos se abriam no chão batido. De dia, tudo era marrom. De noite, tudo era cinza. De vez em nunca, verdejava um detalhe desnecessário.

A cerca no canto da casa
guardava em seu ferro corroído
o silêncio de homens passados.

Fui eu, hoje não sou mais.
Foi quem? Foi Deus, tempos atrás.
Foi tu que viveu sem paz.

Maria entendia muito das coisas. Sabia quando tinha que se calar, sabia quando podia falar, sabia sair correndo para não levar bronca nem sopapo. O mais importante era saber ficar bem quietinha quando a barriga começava a se mexer sozinha. Maria tinha certeza que tinha um bicho gigante na sua barriga que só se mexia de vez em quando. A menina comia, o bicho parava. Quando faltava comida, o bicho ficava pulando e resmungando. Maria já tentara falar para sua mãe da sua dor de barriga. É normal filha, tu vai sentir isso a vida toda. Então, desde já é bom tu saber.

No topo do céu,
jazia o sol, sereno e celeste
em seu sopro solar.

Arfava a terra em seu silêncio sepulcral
e cantavam suas entranhas:

Não tem carne que fique nesta terra!
A morte vem logo, ela não erra.
Suspirem, oh, homens de pele pouca
que, daqui, só vão tirar vida louca.

Maria até ia para o colégio. Mas as aulas eram muito chatas. O teto da escola era furado, a professora faltava pelo menos uma vez por semana, não tinha água lá perto e também não tinha material escolar. E as letras, então! Eram letras demais. Pra que juntar tanta letra? Quanto menos se fala, melhor. Ficar se perdendo em letras não dá em nada. O bom mesmo era ficar em casa de tarde, vendo passar pela porta da frente o tempo.
A garota tivera mais dois irmãos. Mas agora só tinha ela. Isso era bem ruim. Não tinha ninguém com quem brincar. Talvez era para isso que servia a escola, para trazer amigos para quem não tem irmão em casa. Mas os amigos também não podiam ficar brincando por muito tempo. Eles moravam muito longe.
Qual seria o tamanho do mundo? Maria via terra para todo lado! Para que tanta terra?

O mundo, de seu espaço infinito,
virava os olhos para sua própria carne.
Seu ventre descampado de terra móida.

A seca, berne devorando a carne do mundo.

Os olhos tão pequenos da menina
embalavam a alma do globo
e faziam-no tremer por dentro.
Será que aquilo um dia teria fim?

Maria passava horas olhando as coisas. Não tinham tantas coisas para serem olhadas, mas, cada vez que ela olhava para as mesmas coisas, via detalhes diferentes. Do tipo, a cerca. Um dia, a cerca parecia mais feliz, mexendo seus arames entortados. Noutro dia, parecia a cerca a mais triste coisa de todas as coisas. Quieta, cabisbaixa, silenciosa. Os tijolos é que quase sempre pareciam ser iguais. Eles eram tão duros!
A garota também inventava mil histórias para si mesma. Inventava que conquistava um mundo novo, cheio de comida e água. Sonhava com mil amigos, fazia-os viver as aventuras mais poderosas, enchia-os de carne e força. Sonhar era a única coisa que a impedia de enlouquecer. Sonhar fazia o tempo passar, as coisas passarem, a fome passar.

E Maria sonhava.
Em poucos segundos,
já estava voando para o topo do Universo.

Brincava com as estrelas que via de noite da janela da sua casa.
Sorria, dava risada, comia nuvens com sabor de açúcar.
Construía uma casa feita de tijolos que soubessem cantar
e cantava com eles suas músicas prediletas.

Balançava os braços e o vento balançava também.
Sorria e sorriam as gotas de chuva.
Tudo era simples, tudo era próximo.
E o tempo, no mundo de Maria, desexistia.

E voando pelo espaço afora,
a menina esbarrou no mundo sem querer.
O mundo chorava.

Que foi, Mundo? Por que você chora?

Maria, sonha Maria.
Sonha hoje tua alegria.
Sonha como eu sonharia.

Mas não sonho, Maria.
Eu sei que tu sofres,
sei que passas fome
sei há quanto tempo não come!

Não posso mudar, sou fraco.
Não posso melhorar teu corpo parco.
Não posso outros homens fazer
são esses que vão te crescer.

Quando cresceres, Maria,
verás. Entenderás por que choro.
Eu fui fraco, ainda sou fraco.
Que me perdoe a minha terra.

Maria voava, despreocupada.
O mundo devia ter perdido seu coração
dentro de um qualquer buraco de terra.
Afinal, para que tanto sofrimento?

Meu mundinho, não fique tão nervoso.
Tu é belo, maravilhoso!
Tá vendo? Eu to bem!
A comida? Consigo viver sem.

Eu sei sonhar.
Sei nadar, construir meu mar.
Mundinho, não esquece de amar.

Tu esquece de mim.
Não fala que é mentira.
Tu só pensa nesse tempo, nesse futuro teu.
Pensa em mim, só por hoje.

Pensa que eu to aqui e tu também.
Pensa no meu sorriso.
Pensa na cerca lá perto de casa.

Olha, eu não consigo te mostrar o que é certo,
mas posso te dar a mão.

Vem, eu te ajudo!

Caio Mello
27/10/2010

Um comentário:

  1. Bio tu aprofundaste em meu ser disso posso flar com certeza agora pois não é que de um simples acontecimento na minha vida me surgiu um poema (normalmente se fosse para acontecer algo seria um pensamento filosofico), pois bem aqui postarei ele não se compara nada à tua habilidade mas fica legalzinho depois que eu conto a historia dele:
    Melhores perfumes estão/ Os melhores perfumes

    Atchim!
    Saúde...
    Atchim!
    Saúde...
    Atchim!
    Saúde...
    Obrigado.
    De nada, disse a sorridentemendiga sem os dentes da frente

    Ricardo Bueno

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