sexta-feira, 20 de maio de 2011

Descanso final

A pá entra no chão.
A pá sai do chão.
A pá entra no chão.
A pá sai do chão.

O buraco é fundo.
Escuro, calado.
O céu o encara,
perplexo.

Astolfo possui terra debaixo de suas unhas. Estas não são compridas, mas a terra insiste em entrar na carne ainda viva, pensando em um dia devorá-la também. O homem faz a barba todo dia, lava bem as mãos, limpa a sola de suas botas, escova bem os dentes. Não costuma ficar tão suado no trabalho. Já acostumou-se a cavar. Hoje em dia, inventaram até máquinas pra cavar. Onde já sei viu? Que falta de respeito... Ele, não. Cava ainda com a pá. Todo mundo merece um buraco bem cavado.

Na primeira sala,
João já não canta mais.
Está ali, inerte, seco.
Seus olhos nunca mais vão rir de novo.

“De teus filhos, amamos você.
Sentiremos saudades.”
Algumas flores caem no chão.
Pontos avermelhados no piso cinza.

A vela queima de leve.

O corredor permanece escuro. Colocar luz inteira não funciona. Muitos olhos ficariam vermelhos demais. Melhor a meia luz. Astolfo troca a lâmpada pacientemente. Ali, o que não falta é paciência. Milhões de túmulos bem quietos. Talvez um dia ainda falem alguma coisa.

A terra que sai do buraco nunca é suficiente para tapá-lo de volta.

Astolfo planta mais um vaso perto de João Alerto Esteves “amado pai, marido e professor”. Um copo com giz fora colocado no dia anterior.

Na segunda sala,
Rafaela morreu muito cedo.
Dezenove anos de idade,
vítima de um acidente de carro.

O namorado dirigia embriagado.
A vida é uma festa,
enfim.

A menina fazia bem para o cemitério,
tinha traços jovens, bonitos, corpo esbelto.
Trazia uma leveza para aqueles corpos velhos
e rachados.

Pouca gente ficava muito tempo ali. Era um silêncio realmente sepulcral. Nem mesmo os pássaros pareciam querer ficar muito. Era mais que uma crença, era uma constatação. Astolfo não sentia isso. Vivia bem ali. Podia reconfortar os parentes, alimentar os animais perdidos, dar um mínimo de dignidade para alguns indigentes. Gostava muito do seu trabalho. Sentia-se um poeta, um anjo que sustentava a ponte existente entre os vivos e os mortos.

A terra que sai do buraco nunca é suficiente para tapá-lo de volta.

As visitas eram curtas. Quase sempre a mesma coisa: primeiro, uma conversa descontraída. Depois, um desabafo. No fim, lágrimas. Algumas eram curtas, outras eram longas. No fim, resignação.
O lugar parecia enfermo. Era uma doença. A morte era contagiosa. Respirar ali dentro era morrer também. Os corredores guardavam mil almas mal colocadas. Errantes seres de outro mundo que entoavam cantos de semieternidade. Astolfo não tinha muitos amigos. Todo dia se limpava, mas achavam-no sujo. Estava sujo daquilo que os olhos não veem, mas que a alma sente. Sempre ficava uma poeira no fundo de seus olhares. Seus ossos guardavam também teias demais. Cada aranha que ele matava, voltava-se para dentro de sua carne e montava abrigo ali.

Mas Astolfo não ligava para tudo isso.
Sabia das lendas. Sabia das histórias.
Ele mesmo podia jurar que já tinha visto
o Dr. Rodolfo levantar um dia e se espreguiçar.

Mas não contou pra ninguém.
A conversa corre muito rápido
e alguém poderia vir encher a paciência
do Dr. com qualquer programa sensacionalista.

Toda quinta-feira, fim de tarde, Astolfo lia um conto para seus hóspedes. Em voz alta, mas em tom baixo. Voz grave, séria. Não podia ser irônico, nem ácido. Humor negro também não dava certo. Sentia-se ovacionado por dentro toda vez que acabava. Alguns já o apanharam durante o discurso. Ele não se abalou, seguiu com o texto. Não existe nada pior do que história parada na metade.

Astolfo finca novamente a pá na terra.
A terra que sai do buraco nunca é suficiente para tapá-lo de volta.

Caio Mello
20/05/2011

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