domingo, 12 de junho de 2011

Flocos de mamutes

O rato com pernadepau, peruca de cabelos brancos cacheados e trajes de nobreza entrou no recinto. Muitos mamutes permaneciam na plateia, irrequietos. Estava um clima tenso dentro da sala. Não era um sinal de respeito à Vossa Excelência, nem uma sobriedade de jogo de truco. Não. Era um momento difícil mesmo.

Rato pernadepau
tum tum tum
Rato pernadepau
mut mut mut
Rato rato rato
tum tum tum

O rato foi mancando até a sua grande e acolchoada cadeira. Silêncio, disse ele. O martelo estava pesado. Vossexcelência começou a falar:

Ó João, meu Joãozinho,
como vai esse caminho?
Como vei aqui parar?
Eu que sempre acreditei que você era um bom moço, de boa família, de bons grados, de bons modos, de bons ares, de boas moças. Mas não, não, NÃO! NÃO! Ai, estou ficando sem ar. Guardas! Abram a janela, por favor. Isso, melhor assim.


João estava sentado na mesa à frente ao rato pernadepau. Estava sério o garoto. Tinha traços fortes, barba cerrada e mãos algemadas à cadeira. Sentia no fundo do peito uma vontade indizível de gritar, de dizer ao rato que fosse ao inferno com sua peruca branca cheia de piolhos.

Você sabe qual a sua acusação, garoto?
Sabe?

Existe em nosso pulsante
uma série de engrenagens
que foi tu, seu meliante,
que fez umas afanagens.

Tu roubaste, tu furtaste
tu quiseste completar
tu deixaste só as hastes
do que era salutar.

Tu foi pouco, tu foi fraco
tu não foi assim tão forte
tu fincaste agora um marco
onde tu verás a morte.

Pergunte aqui aos mamutes:
Vós deixais ele viver?


Os mamutes não pareciam muito certos de sua resposta. João continuava ali sentado com as mãos amarradas. Como assim, culpado? Tudo o que tinha era uma pequena peça em seu bolso direito... Uma engrenagem circular. Mas, sim, havia furtado. Não lhe pertencia a engranagem. E peças assim fazem coisas funcionar, fazem homens viver, fazem mentes trabalhar e fazem bater corações. Corações. Ou melhor: coração.

Ó, rato. Eu não quero saber do seu papo. A coisa não é tão simples quanto parece. Você já teve fome, muita fome? Você já acordou desesperado no meio da noite, com dor de cabeça, sentindo seu estômago tão vazio que você não consegue sonhar? Sonhar, cara, sonhar. Eu não sonho mais. Só respiro. Sou carne velha, carne mal passada. Passada pelo tempo, por esses sentimentos excruciantes que eu tenho. Eles me prendem a cada fim de tarde, vedam meus olhos ao nascer do sol, me afogam toda vez que tento entrar no mar. Não foi culpa minha. Vocês vivem me falando que eu tenho outra opção. Falam que a sociedade vai resolver seus problemas, falam que cada ser consegue achar seu lugar no mundo. Bom, e o meu? E minha grande chance? Cadê? Eu dei um jeito.

UM JEITO?


O rato gritou muito alto, levantou sua mão para cima e abriu os dedos. O teto da sala alçou voo e sumiu. Uma neve fina começou a cair em cima dos presentes no tribunal. O sol brilhava oblíquo no findomundo.

Tu chamas isso de jeito? A tua imprudência, tua indiferença? Malfadada sina tenho eu de cuidar de espúrio como ti. Ó, céus. Ó, mares. Que já vivi tanto eu, hoje, deprimo-me com o mundo roto que se verte perante minhas vistas cansadas. Tu disseste que passa fome. Olha bem nos meus olhos. Se tens fome, eu sou comida. Devora-me o tempo, calcina-me o presto escorrer do tempo. A clepsidra banha seus segundos com meu sangue que se esvai. Sou pó.
Não me digas que não compreendo.
Já ganhei minhas marcas.
Porém, indelével mesmo só o tempo.
O resto é vento e se perdeu.
Jovem tolo, não gastes tão cedo
o que Deus lhe deu com tanto agrado.

João começou a tremer de frio. Não sabia mais o que falar. Não podia entregar a engrenagem de volta. Os mamutes pareciam indecisos ainda. Alguns dele se mexiam nas cadeiras, outros tentavam esconder a angústia jogando a longa trompa na frente do rosto.
O rato soltou um longo suspiro. Tamborilou os dedos em cima da mesa de madeira. Levantou um pedaço da peruca, coçou a cabeça. Ajeitou a peruca de novo. Cocçou o nariz. Ajeitou seus pelos do bigode. Ficou encarando João. Sacou um charuto de sua gaveta, agarrou um floco de neve e puxou a fumaça de leve com o canto da boca. Voltou a falar:

Você sabe que, nesse tribunal,
não há acusação.
É só eu, você e
nossos amigos gordinhos aqui do lado.

Não tem muito o que fazer, sabe?
Furto é furto, roubo é roubo.
Pelo menos você não matou ninguém
nem nada...

Um dos mamutes balançou a cabeça, quase acreditando no rato. Mas outro mamute sentia-se mais inquieto. Por que matar o garoto por tão pouco? É, mas as tradições diziam que era assim, né... Não era bom irritar os deuses. Mas quem disse que tradição precisa sempre ser igual? Quem disse que os deuses não queriam ver uma evolução de vez em quando? Mas evoluções não se dão desse jeito tão direto, duma vez só. Não. As coisas evoluem paulatinamente, pé ante pé. Esse negócio de sair correndo é coisa de estabanado. Melhor ir devagar e sempre. João exasperava-se.

Memutes, pelamordi Deus!
Cês têm que me ouvir alguma hora.
Pensa bem.

Uma vida vive só
corre solta escuridão
uma corda sem um nó
e se esquece num só não

O que se fazem meus dedos
já não tenho consciência.
Eu só vivo os meus medos
e não tenho paciência.

Pensem-se como um garoto
que já já vai balançar
e só mais um corpo morto
que essa forca vai levar.


Um dos mamutes levantou-se vagarosamente. Coçou sua barriga prazerosmente.

Vossexcelência...
Entenda bem.
O garoto.
É.

Entende?

Por obséquio.
Sim.
Me entende?


O rato fez uma cara de desconfiado. Colocou os pés em cima da mesa. Levantou o nariz em tom desafiador. Aquele bando de gordos estava ficando mole com o tempo... Fosse dez anos atrás, o garoto já teria virado presunto. Mas e se ele mesmo tivesse abrandado um pouco? E se ele mesmo já não tivesse mais tantos coelhos na cartola para tirar na hora certa? E se ele estivesse amolecendo com o tempo? Não podia. Era juiz. Juízes devem ser imparciais. Sentir era errar ali dentro. Um floco de neve caiu em cima de seu nariz.
Sim. Definitivamente estava ficando mais frouxo. A balança pendia para um lado. Agora que ele já estava ficando mais velho, lembrava-se de seus tempos quando novo. Ele podia olhar fundo nos olhos de João e ver a si mesmo nitidamente. Era um perfeito arquétipo de si mesmo no corpo de um humano. É, as coisas realmente estavam mudando... O mamute inclinou a cabeça, querendo acelerar a conclusão. O rato começou a discursar:

É, João, liberdade. Instinto selvagem, com certeza. Já sei que essa peça furtada não tem mais volta. Uma vez tirada, tem gente que nunca mais acha. Tente levar pra ela de volta, não suma no mundo assim tão fácil. Também não arranque tudo de uma vez só, senão você enjoa. e, por favor, não deixe nem o tempo, nem eu, nem os gordos trombudos te dizerem quando é que tem que acabar. Vai embora, vai.


As correntes caíram da mão de João.

Caio Mello
12/06/2011

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